“Pode ter muitos defeitos, mas…”. A expressão é popular, mas aplica-se também à Web Summit, a famosa conferência de tecnologia que por estes dias 'invade' a cidade de Lisboa. Se por um lado é muito difícil falar diretamente com alguns dos oradores (são 1.206, no total), às vezes acabamos por encontrá-los sentados ao nosso lado noutra conferência qualquer.

Foi o que nos aconteceu esta quarta-feira. François Candelon, diretor-geral do Boston Consulting Group (uma das maiores consultoras do mundo), tinha falado na terça-feira sobre a revolução digital. Mais, tinha lançado um alerta: “À beira da catástrofe: um século XXI digital sem a Europa”. No fim, as perguntas que queríamos fazer eram muitas. Um dia depois, sem mais nem menos, ali estava ele, sentado mesmo à nossa beira — da catástrofe à conquista, em menos de 24 horas.

Já não o deixámos escapar. Numa conversa que demorou mais 35 segundos do que o tempo que o especialista nos tinha dado (dez minutos), tirámos algumas das nossas dúvidas.

O ponto de partida foram os dados que Candelon tinha apresentado na véspera. Depois de uma avaliação de grande escala feita pela empresa de consultoria de Boston, em que foram entrevistadas cerca de cinco mil empresas dos Estados Unidos, China e Europa, foi calculado o índice de aceleração digital. O que é? Uma medida da maturidade digital das empresas.

Mais concretamente, mede o grau com que as empresas estão a “acolher a revolução digital e integram estas novas tecnologias no dia a dia”, na "estratégia de negócio", na "digitalização dos procedimentos nucleares das empresas", no "envolvimento em ecossistemas de parcerias" que potenciam estes processos, explicou Candelon.

Quais foram os dados que mais os surpreenderam neste estudo?

O mais impressionante foi o facto de a China estar no topo em praticamente todos os níveis. Das empresas pequenas às grandes. A única exceção é em relação às empresas de maior dimensão, em que são os EUA a dominar. A Europa está bem cá em baixo relativamente às pequenas e médias empresas; nas de dimensão um pouco maior, a Europa tem níveis baixos, mas com uma diferença menos acentuada; e, para as empresas de grandes dimensões, de novo muito cá em baixo.

No outro dia, um artigo do Gatestone Institute dizia que as empresas norte-americanas não deviam fazer tantas parcerias com a China para evitar que o país domine cada vez mais o setor da Inteligência Artificial (IA). Concorda com essa visão?

Acho isso um pouco perigoso para o Ocidente. O que se passa é que os Estados Unidos neste momento estão a tentar isolar as tecnologias: a China, por um lado, e os EUA e o resto do mundo, por outro. Quando estamos ligados, sabemos o que os outros estão a fazer. Se não estamos conectados, se calhar no curto prazo os outros sofrem um pouco, mas a seguir vão acabar por encontrar um rumo diferente.

A Inteligência Artificial foi tida em consideração no estudo que apresentou? Há alguma especificidade nas diferenças regionais em relação à IA?

Sim, a IA faz parte do estudo - além disso, temos um outro relatório feito com o MIT sobre o tema. Em termos gerais, não há muitas empresas a acolherem a IA. Mas, no grupo das empresas que lideram nesta área, há organizações chinesas e norte-americanas, e poucas europeias.

Então, também nesta área a Europa está menos desenvolvida?
Não é que esteja menos desenvolvida. O problema é que criamos grandes talentos na área da IA e depois eles vão trabalhar para empresas norte-americanas.

Porque é que isso acontece?

Penso que é porque as empresas europeias não estão a investir o suficiente. Não estamos a aceitar a mudança: criamos regulação, somos relutantes em relação ao investimento… Um dos meus colegas esta manhã esteve a falar sobre a computação quântica e a explicar que a questão não está nos valores que são canalizados para estes tópicos a nível governamental. O que é diferente na Europa é o facto de as empresas privadas não estarem a abraçar estas áreas. Não há ninguém a investir verdadeiramente naquilo que é necessário para a computação quântica. Os EUA têm muitas empresas a trabalhar nesse campo. O mesmo se passa na China. E na Europa ninguém. É uma vergonha.

Na terça-feira, na conferência, disse que este é um facto preocupante. Por que é que é preocupante?
Se recuarmos até ao final do século XIX e pensarmos que havia países a investir nos primeiros automóveis. Imagine o que seria os países europeus dizerem na altura: “Não, não, isto é novo. Não queremos investir. Somos mais dados às ferraduras para os cavalos”. Não pode ser assim.

Quais são as implicações desta falta de investimento?

As nossas empresas não criam riqueza e não temos emprego sustentável. Os países europeus estão a tornar-se subdesenvolvidos.

Essa é a sua visão do futuro?

A minha visão é que temos tudo o que é necessário para ser bem sucedidos, se nos unirmos e se aceitarmos a mudança.

O que quer dizer com “unirmo-nos”?

Precisamos que a Europa seja um mercado único.

E não é já?

Já tentou fazer negócio em diferentes países? As regulamentações são diferentes, os sistemas de impostos são diferentes, é preciso ter 25 ou 26 subsidiárias… Para investirmos à escala necessária, precisamos de ter um mercado único forte. O que não é o caso, neste momento. A Comissão Europeia - e não só, porque a responsabilidade também é dos nossos governos - devia garantir que estamos unidos. Essa é a única maneira de criar riqueza, e portanto emprego.

Para que outras áreas críticas devíamos olhar para “apanhar o comboio”?

É preciso envolver os atores necessários para criar um ecossistema que ajude as empresas tradicionais a digitalizarem-se.

Quem deve fazer parte desse ecossistema?

Empresas como a OVH, por exemplo [empresa francesa que disponibiliza servidores, software e infraestruturas para armazenar, gerir e redimensionar dados]. Mas também podem ser empresas norte-americanas ou chinesas, não me importo. Desde que se comprometam a tornar a Europa numa potência na próxima década.


As imagens do 3.º dia da Web Summit