Num país diferente – para muito melhor, de acordo com uma extensa lista de indicadores que vão da alfabetização à mortalidade infantil, sem contar com a ausência de polícia política - do que o de 24 de abril de 1974, a liberdade de expressão está consagrada na Constituição desde 1976, desde logo no “pluralismo de expressão”, artigo 2.º, mas em particular no artigo 37.º: “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”.
Num inquérito à população, feito em 2022 pelo Centro de Estudos e Sondagens de Opinião da Universidade Católica Portuguesa, a liberdade de expressão ficava em segundo lugar como maior conquista do 25 de Abril, apenas atrás da conquista do direito ao voto.
No ano em que se comemoram 50 anos do 25 de Abril, a agência Lusa colocou questões a mais de uma dezena de personalidades das áreas criativas sobre a evolução liberdade de expressão em Portugal e os desafios que enfrenta. Todas as respostas foram dadas antes das eleições legislativas de 10 de março.
Os entrevistados sublinharam a importância da Revolução dos Cravos e, nalguns casos, apelaram para que se parasse para olhar duas vezes para o Portugal de hoje antes de começar uma nova frase de pessimismo ou de crítica: “Em 50 anos, nós mudámos o país. Estamos com problemas? Estamos. Complicados? Sim. Mas não resvalem para o pessimismo. Lutem. Arrisquem”, disse à Lusa o diretor artístico do Teatro Nacional São João, Nuno Cardoso.
O filósofo André Barata frisou que a liberdade de expressão “é um valor fundamental e isso não se põe em causa, mas pode ter de viver com outras liberdades fundamentais, outros valores fundamentais”.
“Alguns aspetos, sobretudo no discurso político muito inflamado, escondem o direito a uma liberdade de agressão, de discriminar. E aí temos um problema e é nesta fronteira muito difícil de determinar entre liberdade de expressão e de agredir, que não é necessariamente aquilo que se coloca do ponto de vista jurídico. É uma tensão, sobretudo, em espaços ou em lugares onde o compromisso com a inclusão deve ser especialmente relevado”, afirmou o também presidente da Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior.
Ainda assim, muitos dos depoimentos recolhidos apontam para fragilidades da democracia portuguesa, quer em termos políticos quer em termos de acesso à possibilidade de se fazer ouvir, aparentemente igualitária devido às redes sociais, mas não necessariamente idêntica no que diz respeito à amplificação da mensagem.
“Qualquer cidadão-leitor pode observar que, neste nosso estado da democracia, mais facilmente se dá palavra e espaço a criaturas e discursos antidemocráticos do que a vozes fundamentadamente revoltadas”, disse à Lusa a escritora e tradutora Regina Guimarães, numa resposta por escrito.
Nuno Cardoso concorda: “Formalmente, a liberdade de expressão em Portugal é respeitada e absoluta. Substancialmente, a liberdade de expressão está sujeita às mesmas tensões socioeconómicas que qualquer outro direito. Ou seja, não se pode falar de liberdade de expressão quando nem toda a gente tem a mesma capacidade para se expressar livremente”.
“Não se pode falar de liberdade de expressão quando os nossos ‘mass media’ estão sujeitos a uma lógica de grupos económicos de lucro que, por sua vez, cortam esse canal à liberdade de expressão de muita gente. Não se pode falar de liberdade de expressão absoluta em termos substantivos quando nem todos temos acesso à mesma informação e quando essa informação está, neste momento, monetizada”, afirmou o ator e encenador.
O diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II, Pedro Penim, salientou o “lado agridoce” de as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril estarem a acontecer numa altura em que o país parece estar a “retroceder”, referindo-se ao crescimento da extrema-direita, que, dias depois de Penim falar com a Lusa, elegeu um grupo parlamentar de 50 deputados.
“O perigo de voltarmos atrás, a uma altura em que essa liberdade de expressão era coartada violentamente, é real e basta olhar para o que está a acontecer no país ao lado, onde o partido fascista consegue e tem conseguido fazer com que, por exemplo no teatro, algumas produções deixem de estrear, sejam interrompidas, sejam questionadas”, disse Penim, referindo-se às várias decisões e pressões do partido espanhol VOX sobre política cultural.
À Lusa, Ricardo Veiga, organizador do Barroselas Metalfest, tem uma perspetiva mais crítica do presente: “A liberdade de expressão sempre foi uma fachada bonita de se apresentar, mas na realidade sempre escondeu muita censura e objeção a ideias controversas, nunca foi puramente livre”.
“Hoje em dia, com a mediatização da vida quotidiana, tudo é assunto escabroso, tudo é futilidade mundana e tudo escala de uma forma estupidamente irracional. Os desafios são os mesmos de sempre, mas a uma nova escala, o que requer muita ponderação e sangue-frio, mais modéstia e menos egomania”, escreveu o organizador do festival numa resposta à Lusa.
O jornalista Alfredo Cunha, que começou por dizer à Lusa que já viveu sem liberdade de expressão, com liberdade de expressão, de novo sem liberdade de expressão e por fim outra vez com liberdade de expressão, sublinhou que “a tentativa de suprimir a liberdade de expressão é uma constante na imprensa e os jornalistas têm o dever de lutar” por ela.
“A concentração e a entrada de grupos económicos trouxe como novidade uma forma sinistra de limitar a liberdade de expressão, que é substituir, fazer um saneamento de jornalistas mais antigos e que tinham já vivido sem e com liberdade de expressão, substituí-los por jornalistas alinhados mais à direita - obviamente que não é generalizado -, e mal pagos, sempre com a espada sobre a cabeça chamada emprego”, afirmou o fotojornalista.
Regina Guimarães fala no mesmo registo, dizendo que "há, por um lado, a falta de coragem dos jornalistas, por outro, a ameaça velada de despedimento caso os jornalistas não batam a bolinha baixa".
Nesse sentido, a codiretora do Teatro Municipal do Porto, Cristina Planas Leitão, realçou a importância do trabalho jornalístico, em particular face à desinformação: “O jornalismo é profundamente importante numa fase destas. Jornalistas que fazem um trabalho profundo e investigam fazem um trabalho muito importante.”
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