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Willie

Penang, 1921

Somerset Maugham acordou com falta de ar. Uma tosse violenta fez-lhe estremecer o corpo até que, por fim, abençoadamente, acalmou e ele pôde voltar a respirar. Estava deitado na cama dentro do casulo da rede para os mosquitos à espera de que a respiração voltasse à normalidade. Tinha um leve sabor a lama na língua. Engoliu uma vez, molhou os lábios com a língua e o sabor desapareceu. Sentiu que tinha o corpo encharcado ao recostar-se na cabeceira da cama. Estivera a sonhar: uma grande vaga projetara-o do barco para um rio de águas turbulentas; a água lamacenta
descera-lhe pela goela e enchera-lhe os pulmões fazendo-o cair para as profundezas sem luz do sol. Foi então que acordou num estado de frenética e resfolegante apneia.

Depois de abrir a rede, sentou-se na borda da cama, assentando os pés no soalho. Sentia-se mais cansado do que quando se fora deitar. Atirara o travesseiro para o chão com um pontapé e tinha a certeza de que gritara ao acordar; esperava que ninguém tivesse ouvido. Inclinou a cabeça para um lado e escutou: havia apenas o sussurro das ondas na praia.

O quarto estava escassamente mobilado: uma poltrona de junco perto das janelas, uma estante baixa carregada de velhos e amarelados romances, uma cómoda de carvalho encostada a uma parede e, num canto, um lavatório com uma bacia de porcelana. Ocupando metade de uma parede havia um almeirah de teca, em cima do qual estavam os seus sacos e malas.
Tocou na fotografia emoldurada da mãe que estava na mesinha de cabeceira, fazendo um pequeno ajuste na posição, de modo que o rosto dela ficasse mais virado para as janelas. Recordava-se de a mãe ter sempre uma expressão pesarosa nos olhos castanhos. Naquela manhã, pareciam ainda mais melancólicos do que habitualmente.

Levantou o travesseiro do chão e voltou a pô-lo em cima da cama antes de atravessar o quarto de pés descalços. Abriu as portadas das janelas e inclinou-se para fora. O mundo ainda estava recoberto por uma camada de tinta cinzenta, mas nas extremidades do céu infiltrava-se já um brilho pálido. Situado num canto do primeiro andar da casa, o quarto tinha largas vistas para o jardim que ficava abaixo. À esquerda, a mais ou menos dez metros, uma cerca de madeira baixa encerrava a parte final do jardim, separando a propriedade da praia. Perto da cerca havia uma alta casuarina, com um banco de jardim de ferro forjado por baixo. Lançando um olhar à praia, descobriu a figura de Lesley Hamlyn. Estava na linha de água, a olhar para o mar. Pouco depois deu meia-volta e começou a voltar para casa. Passou pelo portão de madeira e atravessou o relvado até desaparecer por baixo do telhado do alpendre sem levantar os olhos para ele. O criado ainda haveria de trazer a Willie o jarro de água quente para fazer a barba, mas ele enxaguou a cara na bacia e tirou um conjunto de roupa lavada do guarda-roupa — uma camisa branca de mangas compridas, um par de calças caqui e um casaco de linho de cor creme, engomado pelo dhobi na noite anterior quando estavam a jantar. Encontrou os sapatos, engraxados na perfeição, no lado de fora da porta do quarto. Os quartos dos Hamlyn ficavam no lado oposto do patamar e tinham as portas fechadas.

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A meio do patamar havia uma zona de estar que se projetava para formar a parte de cima do alpendre, com as janelas que havia nos três lados a dar para o relvado da frente e o caminho de entrada em arco. Do outro lado deste espaço quadrado, havia mais quatro quartos. Deste lado do patamar estava a casa de banho dos hóspedes e, contíguo a ela, o quarto de Gerald. Os sapatos de couro de Gerald também haviam sido engraxados e colocados junto à porta do quarto. Willie avançou ao longo do patamar para as escadas, parando de vez em quando para observar a fileira de aguarelas penduradas na parede. Eram imagens de lojas locais, com as finas linhas negras — arquitetónicas na sua precisão — a pormenorizar o requintado trabalho em gesso das frontarias. A meticulosidade dos desenhos era animada pelas pinceladas de cores vívidas que capturavam habilmente a atmosfera dos fervilhantes e cacofónicos bairros asiáticos das cidades dos Estabelecimentos do Estreito2. Cada uma das aguarelas tinha um título no canto inferior direito — Moulmein Road, Bangkok Lane, Ah Quee Street, Rope Walk — e todas elas, como Willie descobriu quando esquadrinhou a assinatura, eram da autoria de Lesley Hamlyn.

No rés do chão, atravessou a casa arejada e cheia de luz até chegar ao alpendre das traseiras, cumprimentando com um aceno de cabeça os criados por que passava nos corredores. Robert e Lesley já se encontravam sentados à mesa do pequeno-almoço, resguardados um do outro pelos jornais que liam. Willie estudou-os da porta. Lembrava-se de que Robert era um homem bonito, alto e de ombros largos, de modo que ficara consternado ao ver a figura curvada que, apoiando-se numa bengala com cana de malaca e cabo dourado, o esperava a respirar pesadamente no pórtico da casa, na tarde do dia anterior: a espessa cabeleira de Robert desaparecera, sendo agora a cúpula da cabeça uma basílica depilada que apenas exibia uma rala franja de cabelo encanecido acima das orelhas. Também não reconhecera a voz do velho amigo — o magnífico barítono que costumava invejar reduzira-se a um tom lamuriento e fissurado.

O doberman que estava deitado aos pés de Robert ergueu a cabeça para ladrar à aproximação de Willie da mesa. Marido e mulher baixaram os jornais.

— Não sejas mal-educado, Claudius — disse Robert inclinando-se para acariciar as orelhas do cão. — Bom dia, Willie. Acordaste cedo. Dormiste bem?

— Como um… bebé — balbuciou Willie.

— Serve-te, Willie — disse Robert apontando com o queixo para o aparador. Willie abriu as tampas das caçarolas que conservam a comida quente. Arenque fumado, bacon, salsichas, ovos e tostas, como esperava. Havia igualmente travessas de queijos e taças de fruta local — bananas, mangas e carambolas. Encheu apenas meio prato e sentou-se à mesa.

— Não te encolhas, Willie — disse Robert.

— Ainda não fui capaz — o maxilar de Willie projetou-se, tentando forçar a saída das palavras seguintes — de me habituar ao apetite falstaffiano que têm aqui — disse, acabando por superar o bloqueio da garganta que levava as pessoas a olhá-lo com pena e impaciência. — Os montes de comida a… todas as refeições… com este… calor… — Virou-se para Lesley. — Vi-te… na… praia.

— É o meu passeio matinal — respondeu ela. — O teu secretário, o Gerald, já se levantou?

O arrastamento nas palavras era delicado, mas Willie percebeu-o.

— Não é daqueles… que acordam cedo. Espero que isso não cause nenhum incómodo — respondeu mantendo o olhar fixo no dela.

— Não sejas pateta, Willie — interveio Robert, acrescentando para Lesley: — Querida, diz, por favor, ao cozinheiro para lhe guardar alguma coisa todas as manhãs.

Robert cortou uma fatia de camembert e deu-a ao doberman. O cão engoliu-a de uma assentada e lambeu os beiços.
— O Claudius adora queijo.

Robert esboçou um sorriso enquanto dava outra fatia ao cão. Willie notou que os lábios de Lesley se haviam transformado numa linha fina e tensa.

— Tens uma visita.

Apontou para um lagarto-monitor que saía do fundo da cerca de hibiscos. O animal tinha cerca de um metro de comprimento, com a cauda grossa a atingir quase o tamanho do corpo. Atravessou o relvado com uma graça pesada e musculosa enquanto punha a língua para fora e para dentro. Os pardais que depenicavam na relva levantaram voo.
— Oh, é apenas o Monty — disse Robert. — Apareceu há já alguns anos. Vai beber um gole à piscina dos Warburton aqui ao lado. Então o que é que temos para hoje, velho amigo? A Lesley adorará mostrar-te as vistas.

Lesley interveio antes de ele poder responder.

— Hoje tenho de estar no bazar da igreja com as outras senhoras e depois vou à cidade fazer umas coisas.

— Sendo assim, fica para outro dia — disse Robert. — Aqui a rapariga é uma especialista na história da ilha, Willie. Sabe tudo sobre a região. Costumava organizar excursões na cidade para os nossos amigos de fora. Andámos a mostrar isto àquele escritor alemão quando ele esteve em Penang… Querida, como é que ele se chamava? Hesse, não era? Sim. Hermann Hesse.

— O que eu… quero é uns dias calmos e descansados… na praia — disse Willie. — Tenho montes… de livros para ler e o Gerald ainda não recuperou totalmente. Precisa de descanso, de muito… descanso.

— O pobre rapaz parecia ter um ar bastante doente ontem à noite. — Robert espreitou para Willie por cima dos óculos.

— E tu também, se me permites que te diga.

Livro: "A Casa das Portas"

Autor: Tan Twan Eng

Editora: Quetzal

Data de lançamento: julho de 2025

Preço: € 19,90

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— As últimas semanas têm sido bastante… exigentes.

O Hermann Hesse esteve em Penang?

— Há onze ou doze anos. Nunca li nada dele. E tu?

— Um par de livros. Robert, se já leste o jornal…

Robert passou-lhe o Straits Times e continuaram a tomar o pequeno-almoço num silêncio confortável. Lesley pediu desculpa e entrou em casa quando Robert partiu para o escritório que tinha na cidade. Willie permaneceu à mesa a beber devagar uma chávena de chá. Um rangido fê-lo olhar para o outro lado da balaustrada.

Um tâmil encanecido, de camisola sem mangas e calções caqui, aparecera na esquina da casa empurrando um carrinho de mão. Parou na borda do relvado e pegou numa foice que escolheu entre o monte de utensílios que havia no carrinho. Acocorando-se, começou a executar um lânguido movimento semicircular com a foice, de modo que a lâmina fazia saltar tufos de relva quando tocava ao de leve no relvado.

De regresso ao quarto, Willie parou diante da porta de Gerald e encostou o ouvido. Não conseguiu ouvir nada.
— Gerald — chamou em voz baixa.

Não obteve qualquer resposta, nem sequer o mais leve roçagar. Não tem nada de surpreendente, pensou Willie, tendo em consideração a quantidade de bebidas que ele esvaziara na noite anterior. Recolheu o diário e voltou para o rés do chão. Os criados já tinham levantado a mesa do pequeno-almoço. Caminhando pelo relvado, decidiu seguir a vereda de gravilha para explorar o jardim. O caminho serpenteante dava a impressão de os terrenos serem mais extensos do que realmente eram, uma ilusão ampliada pelas impressionantes árvores altas: uma figueira mantida no seu lugar pelos calços triangulares das raízes; árvores de noz-moscada com frutos, resquícios das plantações de especiarias que Robert lhe dissera cobrirem aquele lado da ilha no passado; um par de arecas, cujo nome em malaio, pinang, como se lembrava de ter lido algures, a ilha adotara. E ali estava o saboeiro de que Robert se gabara na noite anterior.

— Tem trezentos anos, Willie. É uma das árvores mais antigas da ilha. O tronco é tão largo que são precisos três homens com os braços totalmente esticados para o abraçar. O Walter, que é o supervisor do Jardim Botânico, traz cá muitas vezes pessoas para o ver.

Willie encostou a mão à casca dura e crocodiliana. Imaginou as grandes raízes da árvore profundamente cravadas no solo, para manter o colosso ereto. O tronco atingia uma altura de quase vinte metros, espalhando-se numa intricada filigrana de ramos e folhas que traziam à mente de Willie a rede de bronquíolos e alvéolos dos pulmões.

Retomou o passeio, fazendo um aceno de cabeça para o criado que estava a lavar o Humber à frente da garagem. Por trás da garagem, havia um campo de ténis que tinha as gastas linhas brancas interrompidas aqui e ali por montes de folhas mortas e poças de chuva. Um corvo, pousado num poste enferrujado da rede, virava a cabeça para a esquerda e para a direita como se estivesse a arbitrar um jogo. Willie regressou ao banco que havia por baixo da casuarina.

A área ao redor da árvore estava coberta de ramos e pequenas sementes espinhosas. Puxou para si um dos ramos mais baixos e examinou-o, passando o polegar pelos compridos galhos verde-acinzentados e as pelas folhas coriáceas.

O kebun pousou a foice e aproximou-se rapidamente de Willie, agarrou no trapo atirado para um ombro nodoso e, com um vigoroso gesto de esforço, limpou o orvalho que humedecia o banco. Quando acabou a limpeza, Willie ofereceu-lhe um cigarro. O homem endereçou-lhe um sorriso vampírico. Willie sorriu interiormente: mesmo depois de tantos meses a viajar pelos Estados Federados da Malásia, a visão de dentes tingidos de vermelho-sangue pelo sumo de noz de bétele ainda lhe causava náuseas. Sentou-se no banco, abriu o diário numa página nova, tirou a tampa da caneta de tinta permanente e escreveu a data no canto superior direito: 2 de março de 1921. Bateu com a caneta nos dentes e depois acrescentou com a sua letra elegante: «Chegada a Cassowary House ontem à tarde. Ainda fraco, mas sinto muitas melhoras hoje.» Passou o olhar de escritor pela casa. As janelas de Gerald estavam abertas e a brisa fazia mexer os cortinados. Pensou durante um momento.