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MARIA TORNA-SE SOLDADO

Maria chegou à província do Rossilhão, em França, em busca de uma nova vida. É difícil reconstituir o desenrolar dos acontecimentos dos dois anos seguintes. O processo inquisitorial inclui não só a transcrição do interrogatório a Maria e as suas alegações, mas também provas recolhidas a partir dos depoimentos de testemunhas interrogadas em Espanha. Mais tarde, quando os inquisidores a questionaram acerca das informações contraditórias que se encontravam nos depoimentos das testemunhas e no seu, a própria Maria respondeu com candura, dizendo que «ao longo da vida passaram-se tantos acontecimentos que não é estranho que se tenha equivocado em alguma coisa». Não obstante as contradições ocasionais, estas duas fontes acerca da vida de Maria depois de fugir de Prullans são coerentes o suficiente para esclarecerem que os contornos básicos das suas alegações sobre este extraordinário período da sua vida estão corretos.

Sem uma rede de amigos e sem família que a apoiasse, a vida de Maria em França foi difícil. Vestida com roupas de homem e assumindo uma identidade masculina, Maria foi errando pelo Languedoque e pelo Rossilhão durante os dois anos seguintes. Recordou que «se sustentava umas vezes do seu trabalho, e outras de algumas coisas [comida e roupa, presumivelmente] que lhe fossem dadas» por pessoas caridosas. Uma vez que não tinha nenhuma competência ou ofício particular, deveria ganhar algum dinheiro executando vários tipos de trabalhos agrícolas que encontrasse, talvez ajudando a cultivar os campos e a apanhar as uvas que cresciam nas vinhas do Languedoque entre o final do verão e o início do outono. Na fase final do julgamento, Maria não deu muitas informações acerca deste período da sua vida. Não sabemos como encontrou abrigo ou, o que é mais importante, como conseguiu manter em segredo a sua nova identidade como homem ou sequer que nome masculino usava em público. Contudo, o facto de o seu engodo ter sido bem-sucedido tê-la-á deixado muito confiante, pelo que decidiu regressar à cidade de Barcelona, na Catalunha. Por se tratar de um grande centro urbano, Maria esperava, sem dúvida, encontrar ali um emprego mais estável.

A sua partida de França foi, todavia, agilizada por um outro desenvolvimento inesperado. Embora estivesse a residir temporariamente em casa de uma viúva na aldeia de Thuir, perto da vila de Perpinhão, Maria e a viúva criaram uma relação próxima que se desenvolveu até se transformar numa ligação que ultrapassava a mera amizade. Mais tarde, Maria disse aos inquisidores que o seu talento para cantar, dançar e tocar instrumentos musicais impressionou a mulher, que se apaixonou por ela. Ao que parece, Maria e a viúva, de cujo nome não se lembrava, mais de uma década depois, não tiveram relações sexuais e a mulher não percebeu o engano, uma vez que pediu Maria em casamento, apenas um mês depois de se terem visto pela primeira vez. É evidente que o casamento estava fora de questão para Maria, pois seria inevitável que resultasse na revelação do seu sexo e que acabasse por causar grande alvoroço na aldeia de Thuir, levando depois à sua prisão pelas autoridades francesas locais. Maria conseguiu marcar passo a curto prazo, dando uma promessa de casamento à viúva, por escrito, o que constituía um documento legalmente vinculativo.

Felizmente, as formalidades da lei da Igreja deram a Maria uma oportunidade de escapar sem causar escândalo e sem arriscar ser presa. Para reduzir os casos de bigamia e obter prova de identidade numa altura em que não havia cartões de identificação nem documentos, a Igreja obrigava futuros esposos que não fossem naturais da paróquia onde pretendiam casar a apresentar um certificado de batismo válido, que devia ser obtido na paróquia natal. Com o pretexto de ter de viajar para obter o dito certificado, Maria abandonou a viúva desafortunada e viajou em direção a Barcelona, voltando a atravessar a fronteira entre Espanha e França. Com o passar do tempo, ter-se-á tornado evidente que não regressaria da Catalunha, e a viúva sem nome deverá ter acabado por acreditar que tinha sido enganada e que fora vítima de mais um jovem imprestável que não se queria comprometer e que renegara a promessa.

"É Desta Que Leio Isto"

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Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Quando lhe pediram que explicasse como conseguira, com êxito, fazer-se passar por homem, Maria revelou que sempre tivera muito cuidado para «passar despercebida» nas interações sociais com homens e mulheres. Os homens solteiros e descomprometidos (em particular, os soldados) eram um monte de arruaceiros que frequentavam tabernas, que bebiam (muitas vezes em excesso) e que procuravam ter relações amorosas e sociais com mulheres. Abster-se ou evitar tais demandas de forma conspícua levaria os camaradas de Maria a repararem nela, achando -a estranha, o que provocaria um escrutínio indesejado. Mais tarde, Maria disse aos inquisidores que conseguira evitar que a apanhassem porque «entrava no jogo» e «participava» nas folias, incluindo nas cantorias em grupo e no contar «galhofas» (anedotas). Por vezes, estas brincadeiras levaram Maria perigosamente para a beira do perigo. Embora ninguém tenha descoberto que era mulher, confessou que muitos homens e mulheres tinham comentado que «ela tinha cara de mulher» ou que devia ser «capão» (i.e., um eunuco). Com um sangue-frio extraordinário, Maria conseguiu desviar as suspeitas com astúcia, aceitando estes gracejos e provocações, e «declarou [aos amigos], como galhofa, que era mulher».

Além de participar em tempestuosas bebedeiras masculinas, Maria acrescentou que tinha «dormido com muitos homens nas suas mesmas camas». Na cultura ocidental contemporânea, presume-se que dois indivíduos que partilhem a cama tenham relações sexuais heterossexuais ou homossexuais, e a própria expressão «dormir com» tornou-se um eufemismo comum para «relação sexual». Contudo, na Europa medieval e do início da Idade Moderna, não se pensava do mesmo modo. A partilha de cama com pessoas do mesmo sexo não tinha implicações sexuais. O número limitado de aposentos em muitas residências implicava que era comum que homens jovens e solteiros se tornassem «companheiros de cama». Tendo em conta que ela se apresentava em público como um homem solteiro, seria expectável que Maria dormisse no mesmo colchão com outros homens. Ter sido aceite como companheira de cama pelos companheiros homens constituiu outra fase fundamental no êxito do seu engodo, pois ter conseguido dormir ao lado de outros homens sem ser descoberta sugere que a maior parte deles não dormia nu, mas vestia algum tipo de roupa interior ou vestes fluidas que permitiriam a Maria esconder características físicas que pudessem revelar o seu segredo.

A prática generalizada da partilha de cama por indivíduos do mesmo sexo não deverá constituir uma prova de que a sociedade do início da Idade Moderna era, de modo algum, descontraída no que dizia respeito a relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, ao ponto de ser «ingénua» e ignorante a propósito da homossexualidade masculina. No século XIII, o rei Afonso X de Castela ordenou que os homens homossexuais que fossem culpados de penetração anal fossem castrados e depois mortos por apedrejamento, uma vez que tais atos sexuais eram «contrários à Natureza» e podiam vir a provocar a ira de Deus, que poderia abater-se sobre o reino. Uma lei posterior, aprovada pela rainha Isabel, a Católica, em 1497, equiparava a homossexualidade masculina ao bestialismo. A lei ordenava que qualquer pessoa que fosse condenada por tais ofensas fosse queimada na fogueira, na vila ou aldeia onde tivesse cometido os crimes, para que a sua morte servisse de aviso a outros. O aviso era considerado necessário uma vez que, assim defendia o decreto da rainha Isabel, não castigar a homossexualidade provocaria a terrível ira de Deus, que cairia sobre todos os espanhóis. No início da Idade Moderna, os pregadores continuaram, do púlpito, a incendiar audiências contra o «pecado inominável». Dirigindo -se às massas, um pregador do século XVII afastou qualquer ideia de misericórdia cristã relativamente aos «sodomitas»:

Sodoma significa traição e Gomorra significa insurreição […]. A contagiosidade e o perigo que a epidemia [da sodomia] representa é tal que mostrar qualquer tipo de compaixão é [em si] um crime. [Deus castigou Sodoma e Gomorra com uma chuva de fogo], que é um exemplo [que temos de seguir]: fogo e o máximo rigor, sem compaixão nem misericórdia! Esta depravação [da sodomia] atormentou este lugar com uma tal força que, para libertar de lá um [indivíduo] inocente, foi necessária a violência de muitos anjos.

Livro: "A Hermafrodita e a Inquisição Portuguesa"

Autor: François Soyer

Editora: Bertrand Editora

Data de Lançamento: 14 de março de 2024

Preço: € 18,80

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Aqueles que eram apanhados e considerados culpados podiam esperar uma morte tenebrosa na fogueira ou uma morte lenta, como escravos, remando as galés da armada espanhola. Durante a vida de Maria, a homossexualidade era ainda um crime punido com pena de morte, e tanto as autoridades seculares como a Inquisição perseguiam «sodomitas» em várias regiões de Espanha.

É depois do regresso de Maria à Catalunha que é necessário reconstituir o fio da sua história com maior cuidado, devido aos seus depoimentos inconsistentes. Inicialmente, depois de ter sido presa pela Inquisição em Portugal, Maria declarou que tinha estado presa em Barcelona quando descobriram que ela transportava uma arma proibida. Contudo, o depoimento de testemunhas catalãs contraria esta afirmação e, mais tarde, Maria admitiu que fora um erro inocente. Na verdade, Maria estava a viajar para a vila costeira de Mataró, cerca de trinta quilómetros a nordeste de Barcelona. Foi aí que elevou a sua representação masculina a um novo nível, ao juntar-se às fileiras do exército real espanhol.

Maria nunca explicou as razões que a levaram a juntar-se ao exército. Parece provável que, mais uma vez, um dos fatores principais tenha sido a necessidade de encontrar uma fonte segura de rendimento. Tal como todos os exércitos do século XVIII, o exército espanhol estava com falta de pessoas. Além do mais, a expansão sem precedentes do exército real espanhol ao serviço da nova dinastia de Bourbon implicou a criação de novos regimentos e o recrutamento de homens de modo apressado, para se poder preencher as fileiras. A companhia a que Maria se juntou em Mataró fazia parte de um regimento de infantaria montada, recém-estabelecido em julho de 1734 por um aristocrata abastado: o coronel Joan Manuel de Sentmenat i d’Oms. O regimento recebeu o nome de Dragões de Villaviciosa (Dragones de Villaviciosa). A formação do regimento ficou completa no dia 21 de maio de 1735, numa altura em que os seus estandartes foram abençoados durante uma cerimónia religiosa que teve lugar no colégio jesuíta de Nuestra Señora de Belén, em Barcelona. Este regimento não era um regimento comum de cavalaria, mas uma infantaria leve montada. Os dragões estavam armados com mosquetes e espadas, e a sua tarefa durante a guerra era fazer reconhecimentos para o exército e criar escaramuças com o inimigo. Ao contrário das unidades de cavalaria pesadas – os couraceiros –, os dragões não usavam armadura, uma vez que a sua missão era evitar o tipo de combate corpo a corpo que ocorre nas batalhas da cavalaria. Em tempo de paz, os dragões eram muitas vezes usados como força da polícia militar para perseguir os salteadores que atormentavam as estradas e as zonas rurais de Espanha, bem como os guerrilheiros da Catalunha, que ainda recusavam reconhecer a legitimidade do regime dos Bourbons.

(IMAGEM)

Como conseguiu Maria o feito incrível de se juntar ao exército sem ninguém reparar que ela era uma mulher biológica vestida de homem? Em primeiro lugar, a sua aparência física parece ter sido banal ou, pelo menos, não muito «feminina». Testemunhas que a viram em Espanha e às quais foi pedido, oito anos depois, que a descrevessem, concordaram que era bastante alta, de constituição robusta e que a sua pele era «algo morena». Tinha cabelos longos e pretos, não exibia pelos faciais visíveis e as suas orelhas tinham pequenos buracos (seria, sem dúvida, difícil reparar neles), o que indica que teria as orelhas furadas. Por outro lado, tinha «pouco peito», e uma testemunha recordou que a sua voz era «algo abultada», expressão que, em espanhol, como em português, significa volumosa, pelo que se depreende que seria uma voz grossa e que teria sido vista como um traço caracteristicamente masculino. Por fim, Maria tinha uma cicatriz ou uma marca redonda e visível numa das faces.

Além da ausência de características manifestamente «femininas», o uniforme do regimento também terá ajudado Maria a «misturar-se» com os seus companheiros dragões. O uso de uniformes começou a ser norma em todos os exércitos da Europa ocidental entre o final do século XVII e o início do século XVIII. Os dragões do regimento de Villaviciosa usavam um uniforme amarelo, chamativo, um tricórnio preto e longas botas de montar. Tal como a etimologia da palavra «uniforme» indica, de modo muito claro, os uniformes militares servem para uniformizar a aparência dos soldados e para apagar a identidade individual. Uma última particularidade dos dragões talvez tenha ajudado Maria: o seu penteado característico. A maioria dos dragões usava cabelo comprido e, para evitar que tal fosse um estorvo, era prendido atrás da cabeça numa trança ou num rabicho. Desta forma, os longos cabelos negros de Maria não terão chamado a atenção de modo particular nem teriam provocado suspeitas desnecessárias. Na verdade, uma testemunha recordou de forma concreta que Maria usava o cabelo entrançado «ao jeito dos dragões». O facto de os uniformes militares, juntamente com a aparência física padronizada, esconderem a individualidade fazia do exército a escolha lógica para Maria procurar emprego.

A capacidade que Maria tinha de se fazer passar por homem, ao ponto de servir nos dragões, não se deveu apenas ao uso do uniforme. Ela também desenvolveu outro tipo de estratégias para poder enganar os homens, levando-os a pensar que era, fisicamente, homem. Mais tarde, Maria descreveu estas estratégias aos inquisidores e vale a pena citá-la na íntegra:

Disse que ela, em tudo o que podia, cuidava em imitar as ações que [os homens] costumam fazer e em [esconder] ações próprias de mulher, de tal sorte que trazia os peitos oprimidos por uma cinta, para que não se vissem. Na parte dianteira dos calções, e virado para a abertura, trazia um instrumento feito da fralda da camisa, e às vezes uma almofadinha ou algum outro instrumento [para criar uma protuberância na zona da braguilha, indicando a presença de genitais masculinos]. E quando menstruava, trazia um lenço dobrado na sua parte pudenda, que lavava quando era necessário. E ocasião houve que para se fingir homem, trazia dentro nos calções uma borracha de água. Chegando-se à parede, [abria a braguilha] apertava a borracha com a mão, mostrando que urinava como homem, porque ainda que ela estivesse habituada a urinar de pé como o fazem muitas mulheres, o não podia fazer estando com os calções atados.

Presumivelmente, Maria urinaria de encontro a uma parede e de costas para os companheiros soldados, para que o seu engodo não ficasse à vista. Parece ter aperfeiçoado estas engenhosas técnicas de dissimulação durante os anos anteriores, que passou em França. O que é fascinante é não só Maria saber que devia tomar medidas para esconder as evidências do seu «corpo feminino» (o peito e a menstruação), como também percebia de modo claro a importância de jogar com as expectativas da sociedade relativamente a cada género. Maria estava a representar a sua identidade masculina oficial, enfatizando os estereótipos predominantes da masculinidade e do comportamento masculino. Urinar de encontro à parede não era a única forma pela qual Maria «agia como um homem» para garantir que a sua identidade continuaria secreta. Mesmo antes de se alistar no exército, já teria tido de se adaptar àquilo que se esperava ser o comportamento masculino em sociedade.

Ao leitor atual, a capacidade de Maria Duran para guardar segredo e de se fazer passar por homem com êxito em ambiente militar poderá parecer implausível. Na verdade, a história de Maria está longe de ser única. Os casos de mulheres que se juntavam ao exército estavam longe de ser desconhecidos na Europa do início da Idade Moderna, e causavam grande interesse, mesmo naquela altura. Um estudo publicado em 1989 que se debruçava sobre a Europa do Norte dava conta de 119 casos conhecidos de mulheres que se vestiam como homens, entre 1550 e 1830. Em geral, estas mulheres juntavam-se ao exército ou tornavam -se marinheiras, e a história de quase todas era semelhante: eram jovens, vinham das classes mais pobres da sociedade e tinham sido obrigadas a deixar as suas casas e as suas comunidades quer por morte dos pais quer por uma disputa familiar. A maior parte era solteira.

Maria Duran encaixa perfeitamente neste movimento europeu mais amplo. Algumas das mulheres que serviam em segredo como soldados tornaram-se celebridades quando o seu sexo biológico foi revelado. Entre as mais famosas encontramos a espanhola Catalina de Erauso (1592 -c.1650), La Monja Alférez (a Freira Alferes), uma freira fugitiva que viajou para as Américas espanholas como soldado e combateu o povo indígena mapuche no Chile. Outro caso, desta vez de uma contemporânea de Maria Duran, era Hannah Snell (1723 -1792), mulher inglesa que serviu como soldado e combateu pelo exército britânico na Índia na década de 1740, antes de regressar à sua identidade feminina quando regressou a Inglaterra em 1750. Finalmente, é interessante como, nos Países Baixos, Geertruid ter Brugge (que morreu por volta do ano 1706) não só tenha prestado serviços militares, como também tenha recebido a alcunha de «La Dragonne» depois de ter servido num regimento de dragões, tal como Maria Duran. As representações que se conservam destes casos famosos – pinturas e gravuras – representam as mulheres sempre com as suas roupas militares, enfatizando que este tipo de vestuário as ajudava nas suas imposturas públicas. Uma tão extraordinária transgressão das normas de género – afinal de contas, a guerra era vista como uma atividade exclusivamente masculina, e a participação das mulheres prendia-se, em grande medida, com a prestação de auxílio – fascinava os Europeus do início da Idade Moderna. O interesse que havia nesta época em relação a histórias de indivíduos que nasciam mulheres e que «transpunham» o género para assumirem uma identidade masculina como soldados é claro perante a grande quantidade de literatura popular que estes casos fizeram surgir. De resto, o seu legado continua vivo nos debates de historiadores contemporâneos, que discutem se estes indivíduos eram meros transformistas oportunistas, travestis ou até transgénero. Embora a antiga história grega das amazonas possa ter criado uma matriz cultural na qual guerreiras femininas se tornaram, aos olhos masculinos, objetos exóticos de fantasia, na realidade não havia grande tolerância para com o transformismo no início da Idade Moderna na Europa. Quando estes indivíduos eram expostos, as autoridades coagiam- -nos a regressar ao vestuário feminino para tentarem restaurar aquilo que era visto como a ordem «natural» da sociedade.

O período que Maria Duran passou ao serviço dos dragões de Villaviciosa foi interrompido por acontecimentos que estavam para lá do seu controlo. Em 1733, Espanha viu-se envolvida em mais um conflito dinástico europeu do século XVIII, mas que muitos europeus dos dias de hoje já esqueceram: a Guerra da Sucessão da Polónia. O envolvimento de Espanha nesta guerra foi principalmente motivado por um desejo de expansão para o Sul de Itália, à custa dos Austríacos. O exército espanhol, que foi enviado para o Sul de Itália, foi bem-sucedido na campanha italiana, mas foi necessário enviar reforços. O regimento de Maria, que estava pronto para a inspeção em maio de 1735, estava na lista de unidades que a Coroa tinha ordenado que fossem enviadas para o estrangeiro. Contudo, uma testemunha interrogada pela Inquisição sugeriu que Maria tinha sido transferida para outro regimento (o regimiento de la Reina), que estava prestes a ser enviado para fora. Fosse como fosse, a ideia dos perigos da guerra e o risco físico que uma terra estrangeira representava não eram apelativos para Maria. Enquanto o regimento estava aquartelado na pequena vila de Peralada, perto da fronteira com França, Maria revelou o seu segredo a oficiais espantados, que ordenaram que fosse expulsa de imediato do regimento e presa pelas autoridades locais.

Inevitavelmente, as notícias de uma «mulher soldado» espalharam-se depressa, e Maria causou grande curiosidade. Inúmeras pessoas foram ver, boquiabertas, Maria na sua cela. Uma delas foi uma mulher da família nobre Gayolà. Movida pela piedade e pelo desejo de «reformar» a rebelde Maria, a mulher persuadiu-a a aceitar a sua caridade e, tendo decerto usado o seu estatuto e os seus contactos, convenceu as autoridades locais a ordenarem que Maria fosse libertada e afastada para a vila de Figueres, perto da fronteira com França. Na casa da família Gayolà, Maria tornou a vestir roupa de mulher e foi sujeita às atenções reformadoras de um padre jesuíta do colégio local da Sociedade de Jesus. O objetivo principal do reformador jesuíta era garantir que uma mulher como Maria não se tornasse a vestir como homem nem pusesse a sua salvação eterna em risco (nem a dos outros), pondo-se em situações nas quais pudesse cometer o pecado da fornicação ou virar-se para a prostituição. Assim, foi posto em ação um plano para recolher dinheiro que permitisse que Maria tivesse fundos com que pagar o «dote espiritual» necessário para entrar numa casa de recolhimento ou num convento. Maria declarou que não pretendia entrar num estabelecimento religioso. Mais tarde, disse aos inquisidores que os seus escrúpulos tinham que ver com o facto de tais instituições só aceitarem «jovens donzelas», pelo que ela, sendo uma mulher casada (ainda que fugitiva), não era elegível. É evidente que tinha razão. Sendo uma mulher casada, e não viúva, o sacramento do matrimónio ainda era válido aos olhos da Igreja, e ela dificilmente poderia tornar -se legítima «esposa de Cristo». Perante esta dificuldade e tendo em conta a sua recusa em ser «reformada», os seus putativos patronos lavaram daí as mãos, e Maria tornou a ver-se sozinha nas ruas.

Voltou a usar roupas masculinas e foi errando entre ambos os lados da fronteira franco-espanhola durante um período de tempo indeterminado, até encontrar um patrono na vila de Martorell (a cerca de 25 quilómetros de Barcelona). Algumas testemunhas que a conheceram na Catalunha declararam que Maria tinha conseguido cair nas boas graças do padre local, da vila de Martorell. Em público, Maria adotara a identidade de um nobre menor chamado Don Antonio Peretada, mas confessou ao padre que, na verdade, era uma mulher nobre chamada Doña Christina Bordas, descendente ilegítima de uma família nobre e cunhada de um respeitado funcionário real de Puigcerdà (que fica perto da sua Prullans natal): Don Josep de Pastor. A razão exata para um engodo tão elaborado não é clara. Seria Maria uma vigarista que esperava ganhar dinheiro com o padre? Quaisquer que tenham sido os seus objetivos, o esquema foi descoberto quando o padre escreveu para Puigcerdà e a resposta do furioso Don Josep de Pastor levou à prisão de Maria.

A causa oficial da sua prisão não foi apenas a representação de Maria, mas também os oficiais da lei terem descoberto que Maria transportava consigo um espadim, uma pequena espada. Numa sociedade em que possuir-se espada era um distinto sinal de nobreza, não é surpreendente que Maria exibisse a arma para confirmar a sua identidade falsa como o nobre Don Antonio Peretada. Além do mais, mesmo fingindo em público ser homem, ter uma arma à mão era uma precaução sensata de um plebeu que viajasse pelas estradas, como Maria, para se defender. Infelizmente, andar com arma sem autorização não era um crime insignificante na Espanha do século XVIII. As autoridades espanholas tinham aprovado leis que procuravam restabelecer uma certa ordem social no reino, depois do caos da Guerra da Sucessão Espanhola, e prevenir a proliferação de armas. Em 1722, o rei promulgara um édito no qual ameaçava castigos severos contra todos os indivíduos que fossem apanhados com punhais, pequenas espadas e outras armas brancas sem licença ou sem um motivo válido para as ter consigo. Como plebeia que se fazia passar por nobre, Maria foi enredada nesta lei. Mais tarde, disse que a pena era a morte, mas na verdade eram seis anos de exílio para os postos avançados de Espanha no Norte de África (presidios) para nobres, e seis anos de serviço como remador nas galés da marinha espanhola para plebeus. Na prática, tendo em conta as terríveis condições suportadas pelos remadores, para o povo, a morte e o serviço nas galés poderiam muito bem querer dizer a mesma coisa.

Terá Maria tentado apresentar aos inquisidores uma versão «higienizada» dos «delitos» que cometeu na Catalunha depois de ter sido presa em 1741? Terá ela limitado a sua versão dos acontecimentos ao transformismo e ao fingir ser homem? É evidente que as declarações das testemunhas acerca das tentativas de Maria para enganar um membro do clero sugerem um motivo mais sombrio por trás do engodo com o transformismo. Ansiosa por provar aos inquisidores que não mentiria sob juramento e que estava disposta a reformar-se, Maria poderá também ter decidido que seria imprudente confessar as mentiras que contara em Martorell ou a sua recusa reiterada em submeter-se à vontade das autoridades e da sociedade.

Mais uma vez, viu-se numa posição difícil, uma vez que foi levada a julgamento em Barcelona. Ao princípio, os oficiais catalães que a prenderam por posse ilegal de arma e por fraude não parecem ter percebido que, do ponto de vista biológico, Maria era mulher. A sua prisão terá levado ao encarceramento em prisão preventiva numa prisão masculina, onde lhe terá sido difícil esconder o sexo dos outros reclusos, numa cela partilhada e, presume-se, sobrelotada, e é compreensível que a ideia de poder ser violada tenha deixado Maria em pânico. Assim, recorreu à única estratégia possível e revelou ao juiz local (merino) que «não era um homem apesar da roupa, mas uma mulher». Depois da surpresa inicial, Antoni de Serra i Portell, que era o juiz do tribunal real (audiencia) na Catalunha e cuja responsabilidade era fazer aplicar a lei e a ordem em Barcelona, ordenou que Maria fosse transferida para uma prisão feminina. Nessa prisão, duas mulheres fizeram-lhe exames físicos e confirmaram que ela era mulher, depois de lhe terem examinado os genitais. Maria teve sorte, pois o piedoso Don Antoni deixou-se mover mais pela piedade diante da situação em que ela se encontrava do que pela repugnância, pela ira ou pelo logro. Maria afirmou que o juiz lhe tinha oferecido «boa quantia de dinheiro como esmola» e que lhe tinha ordenado que fosse instalada em casa de uma mulher da região e se submetesse à orientação espiritual de um frade dominicano. Mais uma vez, o objetivo parece ter sido acabar com as peregrinações transformistas de Maria e «reformá-la». O frade ofereceu trabalho a Maria no refeitório do hospital local, mas ela recusou, e não tardou que regressasse à estrada, mais uma vez vestida de homem.

Ao sair de Barcelona, Maria declarou ter viajado para leste, para a cidade de Saragoça, nas margens do rio Ebro. As experiências que teve na Catalunha não a levaram a abandonar o seu já bem estabelecido modus operandi. Tornou a usar roupas masculinas e a fazer -se passar por homem. Contudo, deu-se um desenvolvimento mais surpreendente, uma vez que se juntou a outro regimento militar em Saragoça, não se deixando abalar pela experiência anterior no exército espanhol. O segundo período de serviço militar de Maria no exército espanhol parece ter sido ainda mais curto do que o primeiro. Maria afirmou que enquanto o regimento estava aquartelado na cidade catalã costeira de Tortosa (a sul de Barcelona), foi descoberta quando um dos seus oficiais ordenou que ela fosse espancada, depois de «mau comportamento», que não foi esclarecido. Para evitar o castigo, Maria fugiu para a Catedral de Tortosa para pedir proteção ao bispo local, a quem revelou a sua verdadeira identidade como mulher e implorou ajuda. Maria não identificou o regimento envolvido e as suas afirmações poderão inicialmente ter levantado suspeitas, mas testemunhas catalãs interrogadas durante o subsequente julgamento inquisitorial confirmaram isto. Uma testemunha, um homem da Igreja, jurou pelos Evangelhos que tinha recebido uma carta do bispo de Tortosa que dava conta desta estranha história e de que Maria tinha usado o apelido falso de Pinos. O bispo teve piedade de Maria e fez mais uma tentativa de a «reformar», pondo-a em casa de um padre piedoso, presumivelmente como um primeiro passo para a integrar numa instituição religiosa. Como seria de prever, tal como em todas as outras tentativas, esta falhou quando Maria partiu e, mais uma vez, se fez à estrada.

O que quer que tenha de facto acontecido depois de Maria ter sido expulsa do exército pela segunda vez, a verdade é que decidiu deixar a Catalunha de vez. As suas ações já deveriam ser muito discutidas na região, e a fama de que gozava dificultaria muito que, continuando ali, conseguisse continuar a passar por homem. Assim, Maria virou -se para oeste e viajou para a capital da monarquia e do império espanhol, mas não deu nenhuma indicação quanto ao que a atraiu para Madrid, até porque não teria decerto quaisquer familiares ou amigos ali. Geograficamente, a capital espanhola fica no centro da Península Ibérica, e já era a maior cidade de Espanha, com uma população que se estima que se encontrasse entre as 130 mil e as 150 mil pessoas no segundo quarto do século XVIII. A cidade a que Maria chegou tinha sofrido uma perda recente e desastrosa: o palácio real (o Real Alcázar de Madrid) ficara destruído na sequência de um incêndio acidental na véspera de Natal de 1734, que levou à perda de inúmeras obras de arte, incluindo obras do importante mestre Diego de Velázquez.

Mais uma vez, a atração pela capital por parte de Maria deveria estar ligada à ideia de vir a obter algum tipo de emprego. A corte real, os gabinetes do governo e as casas dos aristocratas e dos artesãos abastados criavam uma economia urbana, na qual as pessoas com poucas ou nenhumas qualificações conseguiam rapidamente encontrar trabalho lucrativo. Maria terá sido uma pessoa no meio de uma multidão que estava a mudar-se para a capital.Em Madrid, podia contar misturar-se sem chamar a atenção de forma indesejada, ainda que já não estivesse na Catalunha, mas num ambiente onde se falava espanhol (castelhano). Além do mais, um grande centro urbano confere sempre um relativo anonimato, e estando tão longe da sua aldeia natal e da sua terra, Maria esperava, sem dúvida, não se cruzar com pessoas que pudessem saber quem ela era e conhecer a sua história invulgar.

Maria não deu muitas informações sobre a sua estada em Madrid, tendo apenas revelado aos inquisidores que «ficou algums oito meses em casa de um Brigadeiro das guardas de El Rei, chamado Dom Antonio Morisco». Embora não pareça que os inquisidores se tenham preocupado em confirmar esta afirmação, um documento quase contemporâneo confirma a existência de um Don Antonio Morisco que serviu com a patente de «sub-brigadeiro» na guarda real espanhola. No entanto, é impossível confirmar informações além desta, e o vago parafraseado do julgamento inquisitorial não nos permite ter a certeza da natureza do suposto emprego de Maria, nem mesmo se ela estaria vestida como homem ou como mulher. É igualmente plausível que Maria pudesse ter servido Don Antonio Morisco como doméstica ou doméstico. Qualquer que tivesse sido o seu estatuto ou o tipo de trabalho que tenha feito, Maria não permaneceu em Madrid durante muito tempo. Declarou que ficou «enfadada deste serviço», sem especificar se o enfado se teria devido a ter sido maltratada pelo patrão, a estar aborrecida com a vida como doméstica ou outra coisa qualquer. Em vez de permanecer em Espanha, decidiu avançar mais para oeste, para o reino vizinho de Portugal, e instalar-se noutra das grandes cidades do século XVIII europeu: Lisboa, a metrópole de Portugal e do seu império.