Prólogo
Maio de 2022
Uma película de suor cobre o lábio do agente Anthony Haddock. De franja colada à testa, gravata torta, tem manchas arroxeadas por baixo dos olhos e a camisa amarrotada. Emilia deve estar com um ar tão exausto como ele — não pregou olho na noite anterior. Não se lembra sequer se escovou o cabelo nessa manhã (os dentes, de certeza que não) e ainda tem vestida a roupa da véspera.
— Uma vez mais, deixe-me dizer‑lhe que lamento muito a sua perda — declara ele num tom sincero.
Tem uma volumosa maçã de Adão que se agiganta no seu pescoço magro de cada vez que engole. Emilia não consegue parar de olhar para ela. Enterra as unhas nas palmas das mãos para se impedir de chorar. A verdade é que não pode culpá-lo, àquele homem de camisa de manga curta amarrotada que o faz parecer um pré‑universitário. Devia ter feito mais alarido há cerca de um mês, quando lho apresentaram, e talvez não estivessem agora ali, naquela sala abafada e claustrofóbica, no dia mais quente do ano até ao momento.
Remexe-se na cadeira, a saia a colar‑se-lhe à parte de trás das pernas. O caderno — o mesmo que começou a usar a conselho de outro agente da polícia, quando tudo aquilo teve início — está pousado entre os dois em cima da mesa. Jasmine, a sua filha de quinze anos, tinha-lho oferecido em janeiro, pelo aniversário, para que começasse a delinear o novo livro, o seu primeiro romance autónomo. Tem uma capa com borboletas coloridas de tamanhos decrescentes e Emilia sempre viu nele um símbolo de renovação, de mudança. De crescimento. Mas o desígnio ficou por cumprir. Em vez disso, contém todos os tortuosos acontecimentos que tiveram lugar ao longo dos últimos meses. Os ecos macabros de histórias já escritas. E agora um homicídio. Alguém que ela amava.
— Estamos a fazer todos os possíveis para apanhar quem quer que esteja por trás disto. — O agente Haddock cala‑se por instantes, os olhos claros fixos nos dela. — E tem mesmo a certeza de que é alguém que conhece? — acrescenta depois, pousando os olhos na lista de nomes que Emilia acabou de lhe fornecer.
— Sim, tenho. — Gostaria de estar errada, mas sabe que não está. — Só os meus amigos mais chegados e a família é que leram O Último Capítulo. Além da minha editora, claro. Ainda não foi publicado. E parte do que aconteceu, sobretudo nestas últimas semanas, bom, foi tirado desse manuscrito.
Ele faz que sim com a cabeça, circunspecto, os lábios finos firmemente cerrados. Não diz nada. Não é preciso. O seu silêncio diz tudo e a ilação é clara.
Porque para ela, Emilia Ward, a bem‑sucedida autora da popular série de livros policiais protagonizada pela inspetora Moody, o tempo está a esgotar‑se. No final de O Último Capítulo, mata a sua adorada personagem principal, a inspetora Miranda Moody. Se o padrão se mantiver, se o responsável por aquilo estiver a seguir o enredo do livro, isso significa que resta apenas um acontecimento relevante no manuscrito.
A morte da inspetora Moody.
E, consequentemente, a sua.
PRIMEIRA PARTE
1
Março de 2022
Emilia está sentada no autocarro a caminho de casa, a olhar pela janela para o céu carregado de nuvens e a pensar que comeu de mais ao almoço, quando aquilo acontece.
Uma mancha de luzes giratórias e o guincho das sirenes de um carro da polícia a passar velozmente, logo seguido por outros dois.
Não lhes dá grande importância. Mais um acidente. Já está habituada. Afinal, trata-se de Londres, e são 16h45 de uma sexta-feira, o início da hora de ponta do fim de semana. Recosta‑se no assento, a pensar se terá forma de afrouxar o cós da saia. Devia ter resistido àquele crumble de maçã com leite-creme. O último número da Grazia espreita da bolsa que tem pousada junto aos pés. Comprou-o antes de apanhar o autocarro em High Street Kensington, mas a viagem está a demorar tanto e sente‑se tão confinada que nem lhe pegou, com medo de enjoar.
Sentada a seu lado, uma senhora de idade com um lenço cor de laranja na cabeça aconchega no colo um cão‑salsicha de pelo comprido. Quando o autocarro se imobiliza aos soluços, expelindo fumo que irrompe pela janela aberta, a idosa estala impacientemente a língua e volta-se para Emilia com um ar exasperado.
— Não tarda nada, o Rigsby vai precisar de fazer um chichi.
O cão empertiga a cabeça e fita Emilia com uns pesarosos olhos castanhos. Esta faz um sorriso tranquilizador à mulher, mas baixa-se e entala a bolsa entre a coxa e a janela, não vá o Rigsby decidir esvaziar a bexiga na sua adorada Mulberry.
Estão na Kew Road. Em breve irão deixar os Kew Gardens para trás, mas, devido às greves do metro, as ruas estão mais movimentadas do que é habitual. De maneira que Emilia ali está, presa num autocarro entre o cheiro de uma empada da Cornualha que um jovem se entretém a devorar no banco à frente do seu e a ameaça de um cão prestes a urinar. Mal pode esperar por chegar a casa e contar a Elliot a reunião com a sua editora. Ligara‑lhe apressadamente ao sair do restaurante, sobretudo para lhe lembrar que fosse buscar Wilfie à escola, mas não tivera oportunidade de lhe contar tudo.
Tinha‑se sentido tão ansiosa nessa manhã: não conseguia encontrar o seu lenço preferido, com padrão de pele de leopardo, depois esqueceu‑se de onde tinha posto as chaves de casa.
— Vai correr lindamente — dissera‑lhe Elliot quando por fim ela ficou pronta para sair. Depois, beijou-a na face para não lhe esborratar o batom. — Só tens de ser franca. Ela vai compreender. Afinal de contas, é a tua carreira.
De modo que ela assim fizera, fora franca — até certo ponto, pelo menos. A sua editora, Hannah, empalidecera por baixo da maquilhagem quando Emilia lhe confessara que tencionava matar a personagem principal no livro que estava a escrever, o décimo da coleção. Hannah está grávida de quase oito meses e Emilia receava provocar-lhe um parto prematuro. Os seus dedos elegantes enroscaram-se sobre o copo de limonada, como que congelados, enquanto Emilia lhe explicava que, ao décimo primeiro livro, desejava escrever um romance autónomo, e sentia que a história da inspetora Miranda Moody tinha chegado ao fim. Não confessou que este último livro fora o que mais lhe custara escrever, a ponto de, a dada altura, ter chegado a duvidar se seria capaz de engendrar um enredo suficientemente bom.
Hannah levara algum tempo a responder. Por fim, numa voz preocupada, lá declarou:
— A coleção Moody vendeu mais de dois milhões de exemplares só no Reino Unido. É um risco enorme.
Emilia sabia disso, claro que sabia. E era algo que a assustava. Mas também sentia que aquele era o momento certo. Dez livros em dez anos, e a escrita de O Último Capítulo tinha sido penosa.
O almoço terminou numa espécie de trégua: Emilia iria enviar o primeiro rascunho de O Último Capítulo, que incluía a morte da inspetora Moody, e Hannah veria se a ideia resultava. Se o parecer fosse negativo, Emilia alteraria o final, faria uma pausa em que escreveria outra coisa, mas manteria em aberto a possibilidade de um regresso da inspetora Moody.
O autocarro continua parado e tudo o que Emilia avista é a fila de trânsito imóvel à sua frente. Pergunta a si própria se não será preferível fazer o resto do caminho a pé, são apenas vinte minutos, mas se o motorista se recusar a deixá-la sair terá de passar pela vergonha de regressar ao seu lugar debaixo dos olhares daquela gente toda.
Ouve‑se um tinido, as portas duplas da frente do autocarro abrem-se com um ruído de ventosa e um agente da polícia sobe a bordo. Faz‑se um silêncio imediato entre os passageiros, que se entreolham com um ar inquiridor. A mulher sentada ao lado de Emilia inclina‑se para a direita para conseguir ver toda a coxia, depois volta‑se para Emilia e protesta:
— O que é que ele está aqui a fazer?
Como se Emilia pudesse ter a mínima ideia.
— Talvez esteja a explicar ao motorista que houve um acidente — responde ela de forma educada. — Ou que o trânsito está cortado.
O polícia sai do autocarro e o motorista levanta‑se para falar aos passageiros.
— As minhas desculpas a todos — diz ele, rosto corado e casaco a comprimir a barriga volumosa —, mas parece que houve um acidente grave ao fundo desta rua. Infelizmente, vão ter de desembarcar aqui.
As pessoas começam a resmungar e a praguejar. O sujeito do banco da frente enfia o resto da empada no respetivo saco de papel. A mulher do lado estala sonoramente a língua e queixa-‑se do transtorno. Pelo menos o Rigsby vai poder fazer chichi, pensa Emilia ao vê-la pousar o cão no chão do autocarro — com todo o cuidado, como se o animal fosse feito de vidro. Mal pode esperar para sair dali, mas fica pacientemente sentada enquanto os outros passageiros se levantam e se arrastam para a parte da frente. Está a descer para o passeio quando o telemóvel toca.
— Olá, Jas.
O vento sopra com mais força e Emilia tem de se embrulhar melhor no blusão de cabedal, lamentando‑se por não ter vestido um casaco mais quente. As pessoas que saíram do autocarro aglomeraram‑se à sua frente e ela não consegue passar. O Rigsby alçou a perna no candeeiro mais próximo.
— Onde é que estás? O Wilf está, tipo, insuportável, e o Elliot não faz nada para o pôr na ordem, e o pai devia ter vindo buscar-me, mas está atrasado, e não encontro as minhas calças de ganga de cintura subida.
Emilia respira fundo e passa o telemóvel para o outro ouvido.
— Devem estar na máquina de secar... Vou a caminho de casa. Acho que deve ter havido um acidente qualquer.
— Um acidente?
Emilia apercebe-se do medo na voz da filha. Apesar de rabugenta e hormonal, no fundo é uma miúda sensível e preocupada.
— Está tudo bem — tranquiliza‑a. — Não foi comigo. Mas tive de sair do autocarro.
— O Elliot não pode ir buscar‑te?
Emilia olha para a estrada. Os veículos estão alinhados quase capô com bagageira em ambos os sentidos. Há alguém a buzinar, coisa que sempre lhe buliu com os nervos. Porque é que as pessoas buzinam? Não é isso que vai fazer o trânsito andar mais depressa. Contorna o aglomerado de gente e trata de se apressar, os saltos a ecoarem no passeio.
— Não, já não é longe e as ruas estão engarrafadas. É mais rápido ir a pé. — Hesita. — Pensava que o teu pai ia buscar‑te à escola.
Jasmine bufa para o telemóvel.
— Parece que teve um imprevisto qualquer, de maneira que vim na carrinha da escola. Ficou de vir buscar-me a casa às seis.
Emilia imagina a filha a revirar os olhos ao dizer aquilo. Sabe que Jasmine tem uma relação complicada com Jonas.
— Tudo bem, vou tentar despachar-me. E as tuas calças de ganga...
— Já sei, já sei. Máquina de secar, ouvi o que disseste.
Agora a voz dela tem um tom leve, o que deixa Emilia mais animada. Jasmine preocupa‑a. Os confinamentos tiveram um impacto negativo na sua saúde mental, embora Elliot tenha sido fantástico com ela, dando-lhe imensos conselhos, já que ele próprio sofrera de ansiedade na adolescência. Jasmine sempre fora socialmente acanhada, mas o regresso à escola para o décimo ano revelara-se especialmente desafiante para ela, e não lhe tinha sido fácil voltar a ambientar‑se.
— Se já tiveres saído quando eu voltar, diverte‑te em casa do teu pai e até domingo. Beijos.
— Para ti também — diz Jasmine, e desliga.
Emilia enfia o telemóvel no bolso e estuga o passo. Gostava de chegar a casa antes de Jasmine sair. Pensa no ex-marido, Jonas, e na mulher, Kristin — outrora sua amiga — a brincar às famílias felizes com a sua filha. Para bem de Jasmine, conseguiu continuar a dar-se com Jonas, ainda que nem sempre tenha sido fácil. Mas tem mais dificuldade em perdoar Kristin.
Ajeita a bolsa no ombro, lamentando não ter calçado as botas rasas. Está prestes a virar para uma rua secundária, quando repara num agente da polícia de casaco amarelo fluorescente a orientar o trânsito, além de dois carros de bombeiros e diversas viaturas policiais a bloquearem a estrada. Pergunta-se o que terá acontecido.
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