Manel Cruz tem agora uma "Vida Nova". Depois de há dois anos, num tema relâmpago, ter garantido que ainda não tinha acabado. 'É que eu adoro esta vida / ainda não acabei'. Ninguém o desejava.
Editado no início do mês pela Turbina, é o primeiro registo em nome próprio, mas não o primeiro a solo, sete anos depois de "Nada É Possível" com os Supernada. Falámos com o músico de São João da Madeira por ocasião de uma vinda à capital para uma sessão de autógrafos na Louie Louie. Com o disco a passar em pano de fundo e sob do olhar de quem só a chuva travou a pontualidade para pedir uma assinatura, dois dedos de conversa e uma história para contar — 'daquele concerto, não sei se te lembras', 'foi o meu primeiro', 'foi espetacular', 'obrigado meu, a sério'.
Esta é uma conversa sobre as dimensões do tempo, da criatividade ou de como a alcançar, de um Porto que 'está bem, obrigado', do sistema a que já não tenta fugir e de uma vida nova não que é uma vida feita, é uma vida por fazer. E que se cumpra em quantas vidas forem precisas. Com massadas de peixe ou sem elas.
Vinte anos separam "O Monstro Precisa de Amigos", dos Ornatos Violeta, desta "Vida Nova", numa altura que ambos são motivo para o músico se fazer à estrada. Mesmo que os destinos tenham um ponto de partida diferente, a viagem far-se-á da mesma maneira e com um prazer redobrado. Já não há é bilhetes para as datas na Casa da Música (Porto), a 28 de abril, e no Capitólio (Lisboa), a 1 de maio. Mas há uma sessão extra na Invicta, em horário de matinée.
Há uma relação entre a escolha do espaço onde estamos e a forma como este disco é editado - com edição física limitada e, fora as lojas independentes como Louie Louie, disponível apenas por encomenda?
Não é uma estratégia, mas certas opções que tomas, como não ir por determinados caminhos, acabam por te empurrar para outros que fazem necessariamente sentido. E eu aprecio esta independência, que acho preciosa. Garante uma abertura intelectual para as coisas que não tens se tiveres a grilheta da rentabilidade. Num mercado cada vez mais formatado, estas coisas fazem a diferença.
E permitem tempo e proximidade?
A questão do tempo é muito importante, se esse tempo for o do usufruto. No caso de uma loja como esta, que calculo que tenha também mais tempo para pensar no que é que vende e mete cá fora, com uma certa ligação também a um gosto pessoal de quem está à frente. Quase como aquela ideia do serviço público na rádio. Esse tempo está mais relacionado com o da vivência das coisas e não ao tempo comercial das coisas. Acho isso muito fixe, gratificante e tem um retorno maior que não só o financeiro.
Interessava-me lançar alguma coisa. Só que não consigo lançar algo com que não esteja satisfeito e com a consciência tranquila.
Por falar em tempo, atalho já. Este disco tinha um prazo para ser feito: quatro meses. E foi feito, li, no horário de trabalho de um funcionário público, das 09h00 às 17h00. Qual foi a relação entre o patrão Manel Cruz e o empregado Manel Cruz? Houve algum sindicalismo?
Acho que é um bocado aquele patrão que se junta com o funcionário e diz 'pessoal, vamos ter de nos unir'. Foi uma tentativa de compromisso. Esse prazo e esse tempo eram uma necessidade. Não só financeira, mas também de encontrar uma rotina profissional e criativa em que me sentisse confortável. Uma tentativa de otimizar o tempo e o espaço para ter ainda mais tempo. É aquela ideia: da liberdade estar confinada, mas seres mais livre do que quando tens o tempo todo para fazer tudo. Foi perceber que tinha de tomar decisões em determinados sentidos se queria tomar outras. Também face à ajuda que tive das pessoas que trabalham comigo, à sua vontade e ao seu empenho. Tinha um dever para com elas de tentar, ao máximo, trabalhar segundo as suas intenções. Lá está, o compromisso. Interessava-me lançar alguma coisa. Só que não consigo lançar algo com que não esteja satisfeito e com a consciência tranquila.
As questões são levantadas quando já tens o conforto necessário.
E durante estes quatro meses, estiveste satisfeito com o que agora ouvimos nas doze faixas de "Vida Nova"?
Não, não. Um dia estás, outro não. Mas isso é o processo criativo e é isso que tem encanto nesta coisa. Se essa insatisfação não for medo... No início talvez fosse, mas foi passando a ser uma questão de 'se tiver tempo talvez consiga fazer'...
O conforto é algo limitativo para as ideias?
Não acho que seja, mesmo. Até é o contrário. Esse é um mito muito conveniente para o poder. Temos esse exemplo na História. Sempre que se quis subjugar as pessoas foi retirando-lhes o conforto. O conforto é a base que toda a gente tem de ter. Mesmo tendo conforto vais ser sempre inquieto e querer ser sempre melhor e mais. Agora, quem vive uma vida verdadeiramente difícil, seja por aquilo que quer dar aos filhos e não consegue, seja por questões básicas como alimentação, passa-a a tentar resolvê-la, não a tentar levantar questões. As questões são levantadas quando já tens o conforto necessário.
Este não é o primeiro disco a solo, mas é o primeiro em nome próprio. Porquê agora?
Tem a ver com o ao vivo. Por ter partido para os palcos sem estar com nenhum projeto concreto, apesar de se ter chamado Estação de Serviço. E de ter percebido que esse espaço ao vivo não é necessariamente uma consequência de um disco ou de um projeto. É um espaço por si só, que pode ser outra coisa. Não é aquela coisa do 'acabei um disco, agora apetece-me fazer outro mas vou ter de tocar este'. Não. Posso é aproveitar os concertos para curtir as músicas que me apetece.
Esta 'vida nova' tem um prazo de validade? Até quando se pode ela estender?
Falas do disco? [risos] Da minha vida não sei. Continuo a fumar, por isso não sei...
Agora estou mais numa de... Tenho canções, e essas canções têm uma essência que pode ser vestida de muitas maneiras, e podem ser matéria para num concerto tocá-las de outra maneira. Essa ideia de despudor em relação às músicas está a agradar-me. Quero aproveitar o espaço criativo do concerto, não ser só a questão performativa. Nesse sentido, a vida nova vai continuar. Embora agora me veja mais a lançar músicas do que um disco. Este disco foi mais um arranque, outra vez. Têm-me agradado essa ideia de mandar os filhos para a vida mais rápido. Eles que cresçam por eles, que eu tenho um retorno criativo disso. Liberta-me da imagem que as músicas acarretam em termos de referência estética, e fico livre para pensar na criação de outras maneiras.
A meio desse processo de criação há um encontro com o Rodrigo Amarante. Algo que não deixa de ser curioso, uma vez que ao longo dos anos houve muitas comparações entre os Ornatos e os Los Hermanos.
Não tinha pensado nisso.
Mas fala-me mais desse encontro. Os melhores são sempre à volta da mesa e este envolveu uma massada de peixe, não foi?
Não o conhecia quando soube que vinha jantar a minha casa. Foi o André Tentúgal, que estava a fazer uns vídeos para ele, que me disse 'tu ias curtir conhecer, ouve isto'. No mesmo dia em que ele foi lá, ouvi [o disco "Cavalo"] e curti para caraças. Mas eu fico sempre naquela: 'porque é que ele há de ter vontade de me conhecer?'. Mas o André Tentúgal disse-me para me deixar de merdas. Há sempre esse pessoal que simplifica as coisas, o que é fixe porque um gajo acaba sempre por viver coisas de que não estava à espera. Acabei por conhecer o Rodrigo assim, e tivemos uma afinação engraçada. Ele estava a lançar um disco incrível e eu estava num processo contrário. Ele num processo de emergir do fundo da bolha e eu a entrar na bolha. Ter essa conversa de colegas de trabalho foi muito engraçado.
Já sabes que a primeira canção não vai valer nada. E não vale. Ou se por uma feliz coincidência valer, a segunda não vai. Mas há que fazê-la na mesma
E o que resultou dessa conversa? Alguns conselhos?
Resultou aquelas coisas que um gajo já sabe. Ouvir um 'olha, as primeiras vinte e cinco canções são para o lixo' também te livra da expectativa. Já sabes que a primeira canção não vai valer nada. E não vale. Ou se por uma feliz coincidência valer, a segunda não vai. Mas há que fazê-la na mesma, mesmo sabendo isso. É uma maneira de viveres com o teu falhanço, mas também é um justo retrato daquilo que tu és. Se quiseres descobrir alguma verdade no meio disto não podes fugir a esse retrato, tens de passar por ele.
Fora do disco ficou "Maluco", que já andávamos a ouvir ao vivo. Porquê não o incluir?
O "Maluco" já tentámos gravar e não conseguimos ficar contentes, é um tema que acontece ao vivo. Há uma letra, mas não há um arranjo. Fazemos o que nos apetece a meio da música; no último concerto, interrompi-a para atender um telefonema. Eles nem sabiam que era fictício, pensavam que estava mesmo a atender o telefone. Entrou até nesse capítulo das partidas. É engraçado, porque gosto muito dela, e muita gente me tem dito e mostrado que 'aquela é que é' a música, e não vem no disco.
Os temas podem viver e evoluir simplesmente pela sua interpretação ao vivo.
Dá o tempo e o espaço necessário. Não adianta dizer que se vai lançar uma versão porque a música é fixe. Depois sentes que não está a fazer jus. É mais importante [na seleção dos temas] a análise criativa na gestão das coisas e no reconhecimento do que tem valor. Não no ato criativo, porque isso passa também pela reação a estímulos do exterior com sorte à mistura. Na escolha é que reside muito daquilo que queres mostrar. Mesmo as pessoas que conheço e a quem gosto de mostrar coisas, porque sei que mesmo que elas digam 'ah, está fixe', mesmo sem palavras... Como o meu irmão, que mexia no queixo e dizia 'tá fixe, tá fixe'. Mas sabia que ele estava a sentir o mesmo que eu.
Este disco foi gravado no teu estúdio, no Centro Comercial Stop, no Porto. É um sítio que também tem a sua história.
O Centro Comercial Stop é um espaço que foi crescendo numa espécie de auto-gestão. Tinha um problema legal devido à circunstância de como foi crescendo. Houve sempre muita boa vontade da parte da Câmara de reconhecer aquilo como um espaço especial e de tentar conduzir o processo sem desvirtuar a sua essência. Essa identidade tem muito a ver, de facto, com as pessoas que lá estão e com o facto disto não ter surgido do espírito associativo, mas sim de uma necessidade individual de cada músico. O individualismo está ali defendido e tudo o que é comunitário é consequência do que cada um vai dando. E funciona.
E é um espaço com horizontes ou tem os dias contados?
Isso é um fantasma. O Stop tem muitas particularidades, nomeadamente porque pertence a muitos proprietários. E sabemos como é que funciona isto das heranças. Essa dificuldade também é algo que nos defende, no sentido em que não é fácil comprar aquilo. Tenho fé na credibilidade que o espaço ganhou e na associação que agora temos para nos defender do que é o sistema. E que o consigamos preservar com a identidade que sempre teve.
E o Porto de hoje, como está?
Pá, está bem, obrigado. Há muita coisa a acontecer. Muitas coisas contraditórias, como tudo. Qualquer coisa que tenhas na vida pode ser sempre aproveitada de várias maneiras. Dou sempre como exemplo a Oficina Arara, que já é uma peça da engrenagem do Porto. Há muita gente a fazer coisas fixes. As novas gerações, para além de terem a criatividade que qualquer geração pode ter, têm também muitas valências devido à democratização dos conteúdos e das possibilidades de os expor. É impressionante traçar um paralelo do que nós éramos e do que eles são, em termos de possibilidades. Também tens o outro lado: tens tanta coisa que te podes sentir perdido, o poder continua sempre a existir, alguns têm mais força para lutar e outros desistem mais facilmente. Isso mantém-se tudo. Mas olho para o Porto, e para o Mundo, de uma maneira positivista. Estamos, como sempre estivemos, perdidos. Mas agora é mais fácil perceberes que o estás. Embora tenhas muitas notícias falsas, essas notícias também te indicam o quão estamos perdidos. Isso é o ponto de partida para se pensar nas coisas de uma maneira menos absoluta. As pessoas estão a começar a perceber que a responsabilidade é mesmo delas. Podes entrar numa perspetiva de selva, de que se lixe, não há regras. Mas também podes pensar que, se não as há, tu podes fazê-las.
Estamos, como sempre estivemos perdidos. Mas agora é mais fácil perceberes que o estás
A capa do disco é um espaço em branco, contrastando com o seu interior. Não falo do disco, mas do livro que a acompanha. Esta dualidade tem alguma intenção?
A capa é da Susana Fernando, que é designer e minha mulher, mas não de profissão [risos]. Ela teve essa ideia da capa em branco, que partiu da ideia do nada. Eu até tinha pensado em preto, mas não era no sentido de poesia visual. Aqui, [em branco] a capa tem um vazio assumido. Até pelo 'erro' do título [que surge no canto superior direito da capa quase cortado]. A vida nova não é uma vida feita, é uma vida por fazer. A casa por demolir foi um processo de transição e foi um processo real. Foi uma casa que pedi a um empreiteiro para javardar antes de ser demolida. O branco pode também ser a casa nova.*
[* n.e. - O disco é acompanhado por um livro cujo conteúdo é um complemento da capa, com imagem de Manel Cruz. As ilustrações, que correspondem a cada um dos temas, foram feitas nas paredes de uma casa em ruínas no centro do Porto]
Já que falamos de outra das tuas valências, que te ocupam quando não ouvimos nada de e sobre ti, é a ilustração que paga as contas?
Tive momentos em que achei isso. Sempre achei que o desenho seria o que me pagaria as contas por uma questão de capacidade técnica e de me colocar em enunciados diferentes. Enquanto a música era mais o sítio onde me podia perder. O desenho podia ser um trabalho para um cliente. Eu não tinha de me encontrar, só tinha de encontrar algo que satisfizesse esse enunciado. Mas depois, ao longo da vida, as coisas foram sendo muito misturadas. Eu gosto de fazer tudo, não gosto de fazer tudo sempre, mas vou ter de fazer alguma coisa sempre. Também já percebo melhor o que é o sistema e que já posso passar o cruzamento, sem saber para onde vou ou deixo de ir.
A vida nova não é uma vida feita, é uma vida por fazer
Demorou a perceber o que era isso do sistema?
Opá, acho que sim. Porque eu também estive sempre a tentar fugir. Enquanto podia... Era essa a minha ideia. Depois chegou uma altura em que já não queres fugir, mesmo estado habituado a isso e com esse vício. É aquela coisa dum gajo que deixa de beber álcool e passa a beber café, e bebe muito café, mas sempre com um cheirinho. Não é bem pensar como é que vou fazer o que gosto, é como vou gostar do que faço.
Vêm aí alguns concertos de apresentação deste disco, mas também uma 'nova vida' dos Ornatos. Como é que vai ser conciliar estas 'novas vidas'?
Neste momento acho que sinto que é muito a mesma, sabes? Porque também me estou a colocar nas coisas à espera do que é que elas vão ser, mais do que sentir a necessidade de controlá-las. Intuitivamente já sei para onde é que as coisas podem ir, já me sei defender melhor ao ponto de não estar tão alerta e tão preocupado. Tento deixar que as coisas aconteçam, porque também são repartidas com outros. Confiando nessas pessoas também te permite estar mais assim. Hoje posso ir para o ensaio do "Vida Nova", amanhã posso ir para o ensaio dos Ornatos e no fim de semana vou almoçar fora com os amigos.
A Lia Pereira, na entrevista que te fez para a Blitz, avançou uma questão que tinha aqui para te fazer, e que já ficou respondida. Sobre, cito, o piropo que sempre ouviu muito nos concertos –'Manel, és o maior!'. Faço outra: qual é a razão para, aos primeiros temas num concerto, já estares em tronco nu?
A explicação é muito simples: basta um bocado de calor e dispo-me, em casa é a mesma coisa. Depois tenho tiques nervosos, tenho menos agora, mas durante muito [tempo]... Começo a falar dessas coisas e fico logo com tiques. A roupa às vezes faz-me um bocado de confusão. E no início não pensava nisso, comecei a tirar t-shirt desde sempre. Há muitos que fazem isso, tipo o Iggy Pop. Então, para mim, nem era uma cena. Uma vez um gajo disse-me isto: 'curto largo as tuas músicas e a tua cena, mas o tirares a camisola é espetacular'. De todo o meu repertório, o que ele curtia mais era isso. Mas acho que também tem a ver com o facto de ser muito magrinho, acaba por ser cómico. Sei que se tornou uma cena, mas é curioso porque nunca o fiz a pensar nisso.
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