Momo passou os dedos pelo papel de parede amarelo. Deu uma dentadinha no pêssego de estufa, os sucos doces escorrendo pela pele rósea tão frágil, que ficaria pisada se lhe soprássemos. Teria ela sentido o papel amarelo por exposição direta á sua rede neural subcutânea? Teriam sido as papilas gustativas a detetar a doçura do pêssego? Nunca saberia. Entre o seu corpo e o mundo físico, havia uma barreira impenetrável.
Todas as suas impressões do mundo eram filtradas por membranas. Aos trinta anos, Momo sentia existir pelo menos uma membrana entre si e o mundo. Não obviamente a membrana que aplicava à clientela que recebia limpezas de pele no salão. Antes a membrana invisível. A membrana que a fazia sentir-se que nem uma pulguinha-de-água: dáfnia encerrada numa célula, nadando longe no mar. O oceano rodeava-lhe o corpo, mas nunca lhe tocava. Momo era uma das esteticistas conhecidas como «técnicas de cuidados de pele». Sabia que, entre os rostos de quem frequentava o salão e as suas próprias mãos — além das algas marinhas e das máscaras carmins —, outra membrana a impedia de se aproximar realmente fosse de quem fosse. Momo não fora feita para a intimidade. Quem não a conhecia julgava muitas vezes o seu pudor cativante; a clientela habitual achava só que ela tinha uma personalidade pacata.
Não fora feita? Dir-se-ia antes que fora suspensa num saco amniótico. Momo tinha uma vaga impressão de que nunca ali se enquadraria. Às vezes perguntara-se se devia sequer viver neste mundo. Não é que tivesse vontade de morrer. Talvez tivesse sido feita para outro espaço, outro mundo: um pêssego inadaptado, insatisfeito com a árvore onde nasceu e sonhando crescer noutra árvore.
Mas não são os pessegueiros todos iguais? Não.
Dois pessegueiros, dois universos totalmente distintos.
O destino de Momo começou com pêssegos. A doçura dos pêssegos desde sempre a consolava. Bastava-lhe um pedaço na boca para voltar ao conto de fadas que fora a sua infância. Nos dez longos e duros anos que estudara no internato, antes de se deitar saboreava um suculento pêssego de estufa, nutrindo o corpo e compensando-se também do dia penoso, deixando-se levar por encantadoras divagações apessegadas. Ainda que o seu pudor impedisse as pessoas de se aproximarem, toda a gente diria que a menina, de rosto branco e nacarado, doida por pêssegos, era doce que nem um pêssego. Só o seu nome: Momo. Algures entre um murmúrio e a palavra «pêssego» em japonês.
Em pequena, Momo certa vez perguntara à mãe:
«Donde é que eu vim?»
«Não nasceste de um útero», retorquiu a mãe, «nem foste achada no lixo.»
O que a mãe depois lhe contou não era a versão simplista e superficial do que se aprende nas aulas de educação sexual. Explicou-lhe que, havia muito, muito tempo, fizera uma viagem com uma amiga. Caminhavam de mãos dadas pelas montanhas, quando deram com o pé de um pessegueiro no cimo de um morro. Os pêssegos largavam um odor arrebatador: quem lhes sentisse o cheiro deixava-se enlanguescer nesse êxtase. Sem querer saber de pesticidas nem de a acusarem de roubo, a amiga da mãe pediu-lhe que a deixasse subir para os seus ombros. Num esforço conjunto, o engenhoso par colheu o maior pêssego da árvore. Era grande feito uma cabeça humana. A mãe ficou toda contente. Disse à amiga:
‹Há uma lenda chinesa que diz que partilhar um pêssego com uma pessoa amiga é sinal de uma amizade extraordinária, daquelas amizades que mais ninguém entende. Vamos partilhar este pêssego e louvar a nossa amizade!»
E assim, segundo a história contada pela mãe de Momo, as duas mulheres partilharam o pêssego com uma navalha... sem nunca pensarem que, mal a lamina abriu a pele do fruto, dele jorrasse um pranto estridente. Dentro do pêssego havia uma bebé! Por mais incrédulas que tivessem ficado, sentiram ambas que a bebezinha estava destinada a ser filha delas. Era realmente como nos contos de fadas.
O rosto da bebé era de um vermelho-vivo, agradavelmente aromático. Uma bebé-pêssego. A amiga explicou que, numa antiga lenda japonesa, nascera de um pêssego um menino chamado Momotarõ, o Rapaz-Pêssego. Sendo «momo» «pêssego» em japonês, estava decidido: a bebé iria chamar-se Momo.
«E foi assim que nasceste», disse a mãe de Momo.
Quando Momo era menina, a história parecia-lhe bizarra. Era o século XXII, Momo tinha uma ideia básica do sexo. Mas gostava que a história fosse no mínimo original. Então... porque não acreditar nela? Momo sentia certo orgulho na fantasia da sua génese. Nesse caso, perguntava-se ela, onde andava agora a amiga japonesa da mãe? Quem era ela? E por que razão Momo nunca a conhecera?
A mãe era evasiva.
«Tivemos uma discussão», explicou. «As amigas às vezes discutem e afastar-se. Acontece muitas vezes. Por isso é que a mamã ficou sozinha a tomar conta de ti.»
A pequena Momo pensou então: Quando for grande, nunca hei de discutir com as minhas amigas. Hei de ficar com elas para sempre.
Para sempre. Sim, para todo o sempre.
Momo, de trinta anos, acariciava o pêssego doce, macio e sensível como um seio.
Havia vinte anos que Momo e a mãe não se viam. Seria mesmo preciso verem-se? Estavam apartadas uma da outra havia tanto tempo, que já não era possível salvar a relação. Limitavam-se a interações civilizadas e impessoais.
Sentiria a mãe sequer curiosidade em saber dela?
Momo não queria admiti-lo, mas sentia curiosidade em saber quem se teria a mãe tornado.
De pêssego na mão, sondou na mão direita o dedo do meio, novinho em folha, ponderando a pequena operação a que fora sujeita recentemente. O dedo mexia-se na perfeição.
Antes da cirurgia, começava de vez em quando a sentir um formigueiro na mão. Não tinha a agilidade necessária. Feito um rastreio no Sistema Automático de Saúde Comunitária, descobriu que o dedo do meio sofria de uma lesão ocupacional. Seria preciso trocá-lo por um transplante à medida, num procedimento totalmente automatizado.
Momo odiava operações. Sobretudo as automatizadas. Se pudesse, apagaria todas as memórias que tinha delas. No entanto, para bem da sua carreira, não teve alternativa senão substituir o dedo.
Os transplantes de dedos não eram caros. O processo também não era particularmente inconveniente nem doloroso: bastava ir à janela designada no hospital, enfiar lá o dedo e esperar que fizessem o molde. No dia seguinte, voltava-se à mesma janela e recebia-se a peça de reposição. Depois descansava-se uma hora, até a circulação sanguínea se restabelecer, e voltava-se à vida normal. Odiava Momo a ideia do transplante do dedo porque a inquietava arruinar a sua reputação? O problema não era esse. Como acontece com os pianistas, a sua excelência profissional e a sua fama em última análise dependiam dos dedos. A clientela de Momo era o piano dela, os seus hábeis dedos podiam salvar a pior composição musical. Se quem trabalha no setor soubesse que ela fizera uma operação, iria adorar vê-la cometer um deslize. E se quem frequentava o salão descobrisse poderia duvidar do trabalho dela. Momo, porém, não ligava a nada disso. Na verdade, de moto próprio informou da operação os meios de comunicação social, sem querer saber do prestígio profissional. Confiava piamente que a destreza compensaria qualquer falha da mão.
Assim, a angústia de Momo com a operação não advinha de nenhum medo de ter a reputação afetada. O problema não era esse.
Odiava só tudo o que tivesse que ver com operações.
Carregou num botão do comando e abriu-se um painel por cima da cabeça, desvendando a membrana superior, o céu líquido.
O salão de Momo ficava numa comunidade residencial de luxo. Por isso, a membrana superior não tinha quase lapas nenhumas, como anémonas-do-mar ou corais, que tapassem a vista. Inclinando a cabeça, Momo vislumbrava o bater incessante das ondas, de um azulão luminoso, nas profundezas sem fim, além da membrana protetora e dos cardumes amarelões que vogavam em pequeninos regimentos.
Lançou-se então, ligeira, uma sombra negra pelas ondas. De cabeça pousada nas mãos, Momo julgou que seria uma unidade MM, franco-atiradores anfíbios capazes de andar também em terra. Ouvira dizer que havia tumultos militares lá em cima, não a surpreendia ver um ou outro guerrilheiro MM a passarinhar pelo mar.
Em pequena, quisera ir espreitar acima das águas, ver o mundo da superfície. Nunca realizou o sonho, porque a lei determinava que só as pessoas adultas podiam ir à superfície. Aos trinta, Momo aceitara ter de ficar quietinha num canto da cidade, debaixo do oceano. Já não sentia nenhuma ansia de fazer turismo na superfície: nunca poria os pés na terra que imaginava um milhão de quilómetros acima. Quanta curiosidade sentira nesse tempo com o mundo da superfície!
Deu uma grande mordida no pêssego, mastigando-o com vagar.
Adormeceu, o caroço do pêssego deslizou-lhe da mão.
Sonhou que vivia na superfície, uma estática atroadora atravessou-lhe o corpo inteiro, raso como um peixe. Nua no sol alvo e cálido, os raios ultravioletas trespassavam-lhe os poros da membrana da pele frágil e realista. E ela nada podia fazer quanto a isso.
Eram estes os pesadelos dos habitantes do fundo do oceano no verão do ano 2100.
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