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Aquele seria o último Natal passado em família. A véspera, no entanto, seria igual a todas as anteriores, cordial, tensa, bélica. No elevador, Miguel observava o entusiasmo do filho, a única criança da família. O centro das atenções. A noite pertencia àquele menino que repetia incessantemente a lista de brinquedos que tinha pedido ao Pai Natal. Miguel suspirava face à inocência do filho. Aquele viver no presente, sem mágoa, quando ele era capaz de remoer, dias a fio, perante os mil sentidos possíveis de uma palavra dita por alguém, talvez solta num deslize, talvez lançada para ferir. Era extenuante.

Passou a mão pelo cabelo do filho. Pedro contava os andares que restavam para chegar à casa dos avós. O corpo de Miguel pedia-lhe o aconchego da sua casa.Aquele Natal era apenas mais um «não» que ficava por dizer, sem espaço sequer para ser dito. Ao invés de indagar, o patriarca informava: «O Natal é lá em casa». Quão libertador seria poder expressar a sua vontade sem recear as interrogações dos pais. Maria Adelaide, a mãe, rejeitaria rapidamente o motivo de Miguel se recusar, quando não havia uma razão concreta, apenas a falta de vontade. A mãe faria perguntas e ele atrapalhar-se-ia nas respostas; haveria contradições e arrependimento. Sempre que a mãe o interrogava, Miguel diminuía, voltando aos medos da infância, da punição, como se merecesse castigo ou escondesse um segredo sujo. Nunca se é realmente adulto na presença dos pais.

Batia freneticamente o pé no piso do elevador, até Marta lhe tocar na perna com a mão. O sorriso cúmplice, de quem conhece bem o marido, ajudou-o a cortar a ansiedade recrudescente. Sofria por antecedência. Não era a primeira vez que projetava inúmeros cenários calamitosos que nunca se concretizavam. Eram apenas ficções infundadas, na maioria das vezes; receios que geravam um profundo mal-estar. Miguel tentava manter o estoicismo, mas cada possibilidade era pior do que a anterior. Todas conduziam a um conflito inevitável, irresolúvel. No fim, a rutura. Fosse no trabalho ou em casa, o processo era demasiado familiar e as ideações escalavam rapidamente. Uma vez iniciado, era impossível interrompê-lo. Só depois dos acontecimentos era capaz de constatar o absurdo das suas congeminações, nunca antes. Só então percebia, tar- de demais, quão desnecessário fora ficcionar todas essas discussões.

Deteve-se antes de usar a sua cópia da chave para abrir a porta. Em- bora tivessem decorrido vinte anos desde que o filho saíra de casa, Maria Adelaide fazia questão: «Nunca se sabe quando pode ser preciso». Havia sempre algo para o manter preso àquele lugar. A mãe estranharia se tocasse à campainha. Era mais fácil, menos penoso, evitar os interrogatórios. Mal entraram, Pedro correu em direção à árvore de Natal, mas foi apanhado pelo avô. Como habitualmente, tentou sentá-lo ao colo, fazendo cócegas na barriga da criança, mas o neto conseguiu libertar-se e foi contar quantos presentes tinham o seu nome. Miguel aproximou-se do pai para o cumprimentar. Este fingiu que se levantava, pousando as duas mãos nos braços da poltrona, como se tencionasse fazer o esforço de se erguer. Desde que se reformara, mostrava-se mais sisudo e insatisfeito.Tinha construído uma respeitável carreira como docente e era estimado por toda a comunidade educativa. Sempre focado nos seus alunos, orgulhava-se de nunca deixar que uma criança, por mais problemática, chumbasse o ano. Nenhuma ficava para trás. Miguel notava que o pai passava agora grande parte do tempo fechado no escritório, a ver fotografias de quando lecionava, agarrado às memórias. Cumprimentou o pai com dois beijos, uma saudação impensada.

Notou a ausência da mãe e viu que a porta da cozinha estava fechada. Naquela casa, uma porta fechada não era bom sinal. Recordou uma das muitas regras mudas da infância: a mãe a cozinhar, sozinha; o pai a trabalhar no escritório — entrada proibida. O risco de um passo em falso, num campo minado. O medo da punição, a aprendizagem a cada erro. É fácil errar quando não se conhece a extensão da liberdade. Em criança, aquela casa parecia diferente da dos colegas. O ambiente era irrespirável.A sua família habitava num espaço fragmentado, denso. Não era algo palpável, que fosse capaz de concretizar, mas sempre estivera presente. Um aroma melífluo e áspero. Havia conversas cujo sentido lhe escapava, com laivos combativos. Não era tanto o que se dizia, mas o que ficava por dizer; as frases interrompidas, proferidas do nada, arremessos corrosivos. Nas entrelinhas do silêncio subsistia um peso lúgubre. Bastava um olhar repreendedor para aprender o que não fazer, o que era proibido, o que ficava para lá das palavras.

Perguntou ao pai se estava tudo bem, apontando com o queixo em direção à cozinha.

— É a sua irmã. Chegou ainda antes do almoço e estão as duas ali fechadas desde então. Disse que vinha ajudar a vossa mãe, mas já sabe como ela é.

Miguel conhecia a irmã, os seus devaneios, os histerismos e a necessidade constante de ser o centro das atenções. Sentiu uma saturação antiga, bem conhecida, a invadir-lhe o corpo, a gota final de algo que não conseguia precisar o quê. Não sentia o menor desejo de permanecer naquela casa.A simples ideia de Cláudia encenar mais uma das suas dramatizações fazia crescer uma vontade de partir. Não saberia como justificar esse desejo à família, ao filho e até a si próprio. Era um sentimento incómodo. Ponderou deixar os presentes ali mesmo e irem os três embora para casa. Queria dizer que não tinha paciência para aquilo, que precisava de um momento de paz. Respirou fundo e, como sempre, omitiu a sua vontade.

Maria Adelaide acabou por sair da cozinha para os receber. Carregava uma expressão tensa quando deu um beijo afetuoso ao filho. Pa- receu-lhe exausta, embora tentasse dissimular, forçando uma postura de normalidade, como se quisesse convencer a família de que nada estava fora do lugar.A irmã permanecia de costas voltadas, com as mãos pousadas na bancada da cozinha. Estaria a limpar as lágrimas? À distância, Miguel não teve a certeza.A sua chegada viera interromper a discussão. A experiência dizia que não havia motivo para se preocupar; seria, como tantas vezes, sobre algo sem importância. Maria Adelaide deu um passo atrás e avaliou rapidamente a aparência do filho, acabando por lhe ajeitar a camisa com gestos rápidos e mecânicos — havia sempre algo por corrigir.

Cláudia juntou-se à família e cumprimentou o irmão. Pareciam dois estranhos que acabavam de se conhecer.Trocaram algumas palavras de circunstância, por obrigação. Cláudia virou-se para o sobrinho e cha- mou-o com afeto. A criança correu de braços abertos. Pedro adorava a tia, especialmente porque lhe oferecia livros quando estavam juntos.

— Sabes uma coisa?Tenho aqui um presente que é melhor abrires já.

A provocação era quase impercetível. Cláudia usava o sobrinho como isco. Para ela, tudo era um jogo cujo desfecho nunca favorecia ninguém, exceto ela própria. Miguel sabia que a irmã se alimentava desse tipo de provocações. Na infância, criava imbróglios nos quais ele acabava sempre por ser repreendido. Naquele momento, encontrava-se na mesma situação, reconhecia o engodo, mas falhava, incapaz de não morder. Mordia sempre.

— Cláudia, ainda não é hora de abrir os presentes...

— Ah, não é nada de extraordinário, só um pequeno presente para o meu sobrinho preferido. Relaxa, Miguel, não precisas de ser tão rígido. — Talvez o melhor seja abrirmos já os presentes e jantarmos só à meia-noite. Invertemos tudo, o que te parece? Para quê mantermos a tradição, se cada um faz o que lhe apetece? Para que servem regras e tradições, se depois não as respeitamos?

— O teu pai acabou de chegar e já está de mau-humor. Deve estar a sentir-se desvalorizado por não ter recebido um presente — comentou, observando Pedro a rasgar o papel de embrulho. — Talvez devêssemos oferecer-lhe alguma coisa para lhe animar o espírito, não achas?

Miguel abriu a boca para responder, mas Maria Adelaide interveio:

— Um pequeno presente não tem problema. Não vamos criar uma tempestade num copo de água.

Miguel quis explicar que não era ele o responsável pela tempestade, mas sim a irmã. Como sempre, era Cláudia quem ignorava as regras e agia sem respeito pelos outros.Era a irmã que não respeitava o bem-estar coletivo e que o punha numa situação delicada. Mas não havia nada a fazer; Maria Adelaide continuaria a defender a filha, como sempre fizera. O melhor seria calar-se e deixar passar as atitudes frívolas da irmã. Olhou para Marta e imaginou o que a mulher pensaria de tudo aquilo. Sempre que se encontrava numa situação difícil, imaginava o que a esposa diria. Estaria ele a exagerar? Provavelmente. Havia acabado de chegar e já tinha caído na teia de Cláudia.Teria de ser mais inteligente.

— Já cá não está quem falou.

Jantavam bacalhau cozido com couve-portuguesa, regado com bastante azeite. Só Pedro não o comia.A avó tinha gosto em fazer um delicioso bacalhau com natas para o neto, uma forma de preservar a tradição.

Maria Adelaide, cozinheira exímia, esmerava-se nesta altura. Além das refeições, confecionava azevias e broas de mel. O resto encomendava, como o tronco de Natal em que ninguém tocava. O bacalhau estava cozinhado na perfeição, como habitualmente, e Maria Adelaide não se inibia de perguntar se estava tudo ao agrado de todos, para extrair elogios à força. À exceção das referências à comida, a conversa não fluía. Falavam de Pedro quase em exclusivo, do que tinha aprendido na escola, e exploravam com minúcia as atividades extracurriculares, ou qualquer informação que a criança considerasse pertinente partilhar. Pedro discursava quase aleatoriamente sobre diversos assuntos; num momento, falava de um colega de escola; noutro, explicava em pormenor a história de um filme de animação que tinha visto. Apesar de alheado da sua posição, era ele quem aligeirava o desconforto dos adultos, mantendo a refeição à margem do suportável. Por vezes, o pai pigarreava e Miguel olhava de imediato, tentando antecipar se estaria tudo bem.

— Estou a aprender o Hino da Alegria no piano! O meu professor diz que, em breve, vai ensinar-me a tocar com as duas mãos. Com a mão esquerda ao mesmo tempo é mais difícil.

— Ah, Beethoven! — exclamou Cláudia — O Hino da Alegria, da Nona Sinfonia, é uma peça magnífica. Sabias que esse hino celebra ideais fundamentais como a liberdade, a solidariedade e a paz? Nos dias que correm, alcançar a paz é uma tarefa árdua, basta ver os noticiários, esta atmosfera tóxica em que vivemos.

Cordial, Marta apenas acenou com a cabeça.

— Estás a trabalhar nalguma coisa nova, Cláudia?

— Sim, estou, minha querida cunhada. Ando imersa num novo projeto. É uma experiência única, distinta de tudo o que publiquei até agora. Diria que é, sem dúvida, o meu projeto mais ambicioso.Tem uma forte carga autobiográfica, embora não seja de todo uma autobiografia. Não se trata da minha vida de forma literal, nem de mim enquanto pessoa, mas, de certa forma, acaba por sê-lo. Talvez possa arriscar e dizer que se trata de uma autoficção. Acredito que é impossível escapar a essa dimensão. Poderia até compará-lo a uma autópsia, desculpa a imagem, ou, a uma viagem ao passado. E isso, posso garantir-te, é precisamente o que é. Uma exploração arqueológica. Uma espécie de puzzle, fragmentos que vou desenterrando, para dar um novo significado a acontecimentos que foram mal interpretados por muitos anos. Enfim, é uma descrição um pouco pueril, ainda estou a aperfeiçoar o conceito.

— Parece complexo...

Marta parecia ser a única interessada na conversa. Maria Adelaide desfazia o bacalhau com o garfo, mas quase não comia, enquanto o marido dividia as atenções entre o neto e a televisão. Miguel, por sua vez, fingia não reparar. A irmã adorava ser o centro das atenções e que, quando começava a falar da escrita, não se calava. Não seria a primeira vez que Cláudia se deleitava com a ideia de que escrever um livro era uma façanha quase inacessível ao comum dos mortais, reservada a um pequeno e exclusivo grupo de eleitos, ao qual ela, naturalmente, pertencia.Ao perguntar pelo novo livro, Marta oferecia a Cláudia esse palco, permitindo-lhe discursar livremente, sem considerar se os outros estariam interessados no que dizia.

— Pode parecer complexo, mas, ao mesmo tempo, é simples. O cerne deste livro é a verdade. Mas o que é, afinal, a verdade? Como podemos afirmar que um acontecimento, partilhado por todos nós, é verdadeiro para todas as partes envolvidas, quando cada indivíduo o percecionou de forma distinta? Este paradoxo fascina-me. Onde termina a verdade individual e começa a verdade coletiva? Pensemos, por exemplo, numa família envolta em segredos: a verdade é aquilo que nos é imposto durante a infância ou aquilo que vivemos e interpretamos por nós mesmos? Será a verdade imediata e absoluta ou um processo gradual, composto por camadas que se revelam com o tempo e a maturidade necessária para as compreender? Tenho estudado imenso sobre estas diferentes perspetivas, como o conceito de verdade emocional, e sinto uma necessidade urgente de desenterrar a minha, de a trazer à superfície. Esse é, talvez, o âmago deste projeto: explorar e expor a minha verdade emocional. É algo profundamente pessoal, mas sinto que o mundo precisa de conhecer esta minha realidade. Ah, por falar nisso... — voltou-se para Miguel, com a entoação de quem introduz um momento cuidadosamente ensaiado — depois precisamos de conversar, apenas nós os dois. Há verdades que só tu podes ajudar-me a descobrir. És uma peça fundamental neste livro.

Miguel mantinha-se empenhado em fingir que não prestava atenção à conversa, mas a sua reação foi genuína. Não teve sequer tempo de disfarçar o pasmo: Cláudia precisava da sua ajuda para o próximo livro! Num reflexo, revirou os olhos.

— Filha, deixe isso para depois. É véspera de Natal. Vamos focar-nos no presente.

— Não comece, mãe, estamos apenas a conversar. Não passa disso, nada de grave — tentou tranquilizá-la, voltando a pousar o olhar firme no irmão. — Miguel, precisamos de partilhar a nossa verdade. Tu és essencial para este livro, estás no cerne desta história.

— Não sei se compreendo o que pretendes de mim, mas se queres que te diga, concordo com a mãe. Não me parece que este seja o momento indicado para esta conversa.

— Para ti nunca é o momento certo, pois não? — comentou, dirigindo-se agora a Pedro. — O teu pai sempre teve o dom de fugir, de empurrar as verdades para a frente, só para não ter de as enfrentar. Mas tu, Pedrocas, tu vais ser diferente, não vais?

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Cauteloso, Pedro assentiu. Pelo tom, adivinhou um subtexto que lhe escapava. A noite de Natal era para presentes, não para conversas que pudessem terminar em castigos. Podia ter apenas oito anos, mas captava bem as subtilezas das interações entre adultos.

— Cláudia — disse Miguel num tom sério —, não insistas. É Natal e essa é uma conversa só para os adultos.

Miguel sentiu o olhar atento do pai, com o rosto enrubescido, e também o de Maria Adelaide. O ambiente estava a ficar tenso. Miguel apercebeu-se de que a mãe parara de comer desde que a filha começara a falar do novo livro. Pareceu-lhe que Maria Adelaide já tinha ouvido aquele discurso e que antevia o que iria seguir-se. Que verdades iria Cláudia desenterrar, perguntou-se. Recordou a imagem da irmã na cozinha, de costas, decerto para limpar as lágrimas; o ar compenetrado da mãe, quando o cumprimentou. Cláudia devia ter passado a tarde a massacrar a mãe com aquela ideia e, agora, era a sua vez.

— As crianças crescem e, inevitavelmente, transformam-se em adultos. Essa transição é tão certa quanto o facto de, com o tempo, a verdade ser descoberta. A verdade, acima de tudo, é imutável, independentemente dos esforços que se faça para a ocultar. Sabes disso tão bem como eu, ou, ao menos, deverias saber.

— Cláudia... — pediu a mãe. As mãos do pai estavam sobre a mesa.

O olhar, afundado no prato. Tinha parado desde que a filha começara a explicar o conceito do seu novo projeto literário. Marta olhou para Pedro, absorto no circo natalício que passava na televisão.

— Mãe, não se preocupe, não há razão para alarme. Trata-se apenas de uma conversa tranquila, entre pessoas maduras. Somos adultos e estamos a discutir de modo responsável e ponderado. Não podemos ter medo da verdade.

— Cláudia, chega! Para de insistir. Não vês que mais ninguém quer continuar com isto? Só tu. Não consegues respeitar o bem-estar dos outros? Não te apercebes do desconforto que estás a criar? És assim tão centrada em ti mesma? — disparou Miguel. As palavras saíram mais afiadas do que pretendia e o tom agressivo só aumentou a tensão no ar.

— Consegues superar todos, querido irmão. Como é que é possível estares aqui, enquanto partilhamos esta refeição, a defender uma paz que nunca existiu? Ou será que não tiveste a mesma infância que eu? Tu vives num estado de pura negação!

Miguel voltara a morder o isco. Ia jurar que a irmã sorrira com a sua explosão. Estava zangado consigo próprio.

— Outra vez com essa conversa?

O pai bateu com as mãos na mesa e levantou-se.

— Já não se pode ter um momento de paz nesta casa? — reclamou, enquanto caminhava para o escritório.

Livro: "Neblina"

Autor: Ângelo Fernandes

Editora: Oficina do Livro

Data de lançamento: 16 de setembro de 2025

Preço: € 18,90

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A mesa ficou em silêncio. Miguel olhou para Cláudia, quis perguntar-lhe se ela já estava feliz por ter atingido o objetivo de estragar o Natal. Na sua mente passavam mil respostas, impiedosas, aos desafios que a irmã lançara, mas não conseguia abrir a boca. Maria Adelaide pegou no prato do marido e juntou a comida que restava no seu, para levar para a cozinha. Marta procurou distrair Pedro, desconcertado com o que estava a acontecer. Miguel e Cláudia entreolhavam-se com fúria.

— É inacreditável como insistes em proteger algo que nunca tiveste — acusou Cláudia. — Mas como preferes que me cale, vou guardar silêncio sobre a verdade.

— Agora é que decides calar-te? Depois de estragares o jantar? És tão hipócrita.Tu não procuras a verdade, tu procuras o caos, a destruição. Só és feliz na miséria e não és capaz de te contentar com a felicidade das pessoas que te amam. Sempre foste assim e não vais mudar.

És incapaz de ser feliz sem provocar dramas na tua vida e na vida dos outros. Queres destruir a tua família para sempre? Estás disposta a ir até onde? Não te bastou a outra vez?

Miguel disparava as palavras que saíam sem esforço.Viu-se a acusá-la de egocentrismo, loucura e tudo o mais que magoasse a irmã. Não conseguiu conter a fúria, recorreu a tudo o que tinha acumulado ao longo dos anos. Cláudia veio ao mundo e Miguel conheceu a noite, o ar gélido dos pais, focados apenas na filha. Com o tempo, aprendera a lidar com as bombas que ela fazia explodir no seio familiar, geralmente nas épocas de maior serenidade. Naquele momento, lembrou-se de todas as vezes em que a irmã lhe tornara a vida miserável, só porque sim, inventando mentiras sobre ele ou depositando em si as culpas por algo que ela própria fizera; todos os anos em que ficara indefeso, porque a mãe favorecia a filha, sempre, e o pai permanecia impassível.

Sentia-se como o elemento extra, à margem de uma família que o rejeitava, em detrimento dos caprichos de uma irmã lunática e vil. Enquanto proferia tudo aquilo, sentiu o peso de um ódio antigo. Não precisava de pensar nas palavras. Elas saíam agrupadas, estruturadas, sem esforço. Expelia o fel como se estivesse fora do corpo, observando-se em câmara lenta. Nas palavras que cuspia ia todo o rancor, sem reservas. O discurso fora escrito há muitos anos.

Enquanto expunha as falhas de carácter da irmã, dividia-se entre a injustiça de ter aquela discussão diante do filho e da sua mulher, e um sentimento de urgência em repor o equilíbrio de uma família destroçada. Como ousava a irmã evocar a verdade da sua infância, quando ela própria mentira tanto?

Soube que o seu discurso estava a surtir efeito quando viu os olhos de Cláudia humedecidos, as lágrimas tímidas a brotar. Não iria deter-se agora, quando a irmã estava a perder no seu próprio jogo. Dentro de si, Miguel acedera a um fosso negro e bolorento, e usava as munições com toda a força que possuía. Era uma violência alimentada pela necessidade de justiça, uma punição reparadora. Queria que a irmã pagasse na mesma moeda toda a dor que provocara nos outros. Miguel não tinha travões, estava empenhado em esvaziar todo aquele lodo. Quando, por fim, sentiu a pele quente da mão da sua mulher na sua, tomou consciência do quão longe tinha ido.

Voltou à realidade, onde as palavras magoam e as consequências são reais. Cláudia parecia ter minguado, tornando-se uma criança magoada. Miguel não queria acreditar naquele estado de fragilidade. Ela não era assim; era, sempre fora, a vilã. Só podia tratar-se de uma das suas artimanhas: mostrar-se vulnerável para depois proceder a um contra-ataque e dizimar o irmão. Decerto faria parte de um plano maior, mas, por instantes, Miguel hesitou. Estaria ele a ver uma nova Cláudia?

— Miguel... um dia... a verdade vai gritar tão alto, que... não poderás continuar a ignorá-la.

Cláudia levantou-se e, antes de sair, lançou um olhar ao sobrinho. Ia afagá-lo, mas suspendeu o gesto. Sem mais palavras, encaminhou-se para o corredor e trancou-se na casa de banho.

***

Miguel não soube precisar quanto tempo decorreu até a família se reunir novamente. Estava preocupado com Marta e Pedro, não mereciam assistir àquele momento. O filho testemunhara uma versão do pai que tentava subtrair a todo o custo. Questionou-se: não teria sido ele próprio, afinal, a estragar a noite? Aos poucos, a excitação da conversa desvaneceu e Miguel voltou a sentir-se no seu papel habitual. Porém, era ele que minguava agora, sentindo-se ainda mais criança do que o seu filho. Aquele não era o seu lugar. Queria fugir, mas não podia ser essa criança espúria, desajustada, que não sabe como se comportar. O eterno sentimento de não pertença, tão bem conhecido, regressava com força.

Durante algum tempo, cada um ficou no seu canto. Maria Adelaide na cozinha, Cláudia na casa de banho e o pai fechado no escritório. Miguel, Marta e Pedro continuaram na sala. Marta fazia por amenizar o ambiente e saltitava entre o filho e a sogra.

Maria Adelaide voltou à sala com filhós, sonhos e outros doces natalícios.Sorriu para o neto, pediu ajuda à nora para trazer o resto das sobremesas e, aos poucos, a noite parecia recomeçar. O movimento das tarefas ajudara a dissipar a tensão. Pedro atacou os sonhos e Miguel juntou-se ao filho, provando uma azevia de batata-doce polvilhada com imensa canela e açúcar.

Estrategicamente, a avó pediu ao neto que fosse chamar a tia e o avô, e pouco depois estavam novamente reunidos.

Miguel evitou olhar para a irmã. Não sabia o que esperar dela e, na verdade, não sabia o que esperar de si próprio. Tinha ido longe demais, sentia uma vergonha difícil de ultrapassar.Todos ocuparam os seus lugares e foi como se tivessem acabado de chegar. Cláudia parecia mais contida, principalmente com o sobrinho, embora não tenha abdicado de fazer algumas das suas observações mais excêntricas. O pai, por seu lado, comia uma broa em silêncio, decidido a ficar mudo até a noite terminar. Pedro dava gargalhadas que enchiam a divisão, o que ajudava a dissipar o restante desconforto. Circulava entre os presentes, apontava para os que tinham o seu nome e tentava aliciar os adultos a abri-los mais cedo. Ia-se instalando uma sensação coletiva de alívio. A criança olhava para os adultos, esperando que algum cedesse para, então, investir no elo mais fraco. Olhou para a tia e imitou um cachorro, fazendo pequenos ganidos. A tia riu-se e Pedro interpretou o riso como um sinal de que poderia abrir um presente, mas foi surpreendido.

— Não, Pedrocas. O teu pai tem razão, é importante respeitar as regras. Para já, podemos aproveitar para jogar um jogo de tabuleiro. Daqui a nada poderás abrir todos os presentes; até lá, ficamos juntos em família, como manda a tradição.

Cláudia olhou para Miguel, à procura de correspondência. O irmão assentiu. Não queria discutir mais com a irmã; contudo, não sabia como aceitar as tréguas entre ambos, tão-pouco conhecia a duração delas.

— Não sejas ratinho, a tua tia tem razão. Se quiseres, podes dormir até à meia-noite, que depois acordamos-te...

Pedro respondeu à provocação com um «não» bastante sonoro, enquanto se ria. Dormir era a última coisa que pretendia fazer. Aceitou a proposta da tia e foi buscar alguns jogos. O resto da noite acabou por se assemelhar àquilo que seria esperado de uma noite de Natal em família. Embora subtil, resquícios de tensão permaneciam no ar, como um peso invisível, tácito, que todos sentiam.

***

Pedro adormeceu mal entrou no carro. Miguel conduzia em silêncio e Marta acompanhava-o. Observavam as ruas vazias, já repletas de lixo. Caixas de televisores, papel de embrulho rasgado, tudo se amontoava, à espera da recolha. Miguel meteu a mudança e sentiu a mão de Marta pousar na sua. Estavam agora num lugar seguro, só deles. Marta olhou para trás, para se certificar de que Pedro dormia, e disse: «Tinhas razão, sempre houve “festa”».

Abafou uma gargalhada, para não acordar o filho. Envergonhado, Miguel sorriu e concordou. Havia muito que a irmã não aprontava ne- nhuma. Ele já reconhecia os sinais e ficava atento quando o período de calmaria se prolongava. Marta, porém, fez notar que Miguel tinha apresentado uma faceta que ela própria desconhecia e uma reação, a seu ver, um tanto desproporcional.

— Estavas completamente fora de ti.

A observação da mulher apertou-lhe o peito.

— Sabes, acabo por ter pena dela. Parece que há algo que não está bem há já algum tempo. E os teus pais, coitados...

— A Cláudia é a Cláudia, sempre foi assim, não muda, mas eles também não lhe ficam atrás. Se queres que te diga, dos três, venha o diabo e escolha.

— Ao menos tu saíste bem — brincou ela. Miguel riu-se.

— Não te fies assim tanto. Dá-me tempo.

— Bom, o importante é que a tua irmã acalmou e lá pediu desculpa. Acabou tudo bem.

— Só falta ver até quando.

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