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Disseram-me isto: que o meu avô abriu uma cova no jardim das traseiras e de seguida a regou com gasolina; depois, atirou-lhe o manuscrito e, com um sorriso, acrescentou ao cozinhado a chama pequena de um fósforo. Com empenho e combustível, até uma pequena chama faz grandes coisas.
Antes, durante anos, escondeu um caderno escrito à mão que teve o efeito de o calar, como se só houvesse histórias naquelas páginas. Assemelhava-se a certos reformados cujo derradeiro interesse, por norma uma genealogia vaga ou uma filatelia desinteressante, os faz sumir da actualidade.
Agora falava pouco do passado, ao contrário do que acontecia na minha adolescência, que ilustrara com as coisas da guerra: havia casacos de ouro, crânios em praias portuguesas, gorilas de dorso de prata atravessando as estradas de Cabinda, um cabo de metal tenso entre duas árvores para decapitar quem por elas passasse, corpos esquecidos em pás de retroescavadoras; e até um tiro de G3 que subiu direitinho pelo olho do cu de um macaco.
Encantava-me de tal maneira ouvi-lo, prendia-me cego numa mentira de amor, como se quem conta e quem ouve dessem as mãos, que eu achava que o avô e o contador de histórias eram a mesma pessoa. A África do avô tinha sempre uma fuga, o contraponto da violência. Uma criança nunca morria sem que o sangue desenhasse uma rosa, nunca uma cidade saqueada surgia sem que alguém tentasse repor um frasco de compota às prateleiras das mercearias. Tudo era violento e delicado na guerra, como tudo parecia violento e delicado no avô.
Há quatro anos, o avô tropeçou na casa de banho, aterrou no ladrilho e partiu o quinto metatarso. Para um velho como ele, mais do que um contratempo, partir o pé foi uma derrota, mas ajudou-o a atirar-se com novas forças ao caderno feito de páginas que nunca mais acabavam.
Estávamos proibidos de mexer na secretária, que ficava no escritório ao pé da poltrona. Proibidos de nos aproximarmos sequer do caderno. Claro que tomei a proibição por desafio – e um dia em que o meu avô conversava na sala com estudantes universitárias nórdicas que tinham aparecido lá em casa sem que ninguém as expulsasse, enquanto o ouvia falar uma língua mista que era tanto dele como delas, fui ao escritório e abri o caderno.
Eis o manuscrito. As letras iam comendo as páginas. E eu, que ansiava por aquilo como se finalmente fosse conhecer o avô, folheei, folheei mais e mais, e fiquei aterrado: a letra miúda, quase infantil, antes idêntica à minha, tornara-se incompreensível. Só dele.
De volta à sala, observei-o a conversar com as raparigas, inclinando-se um pouco para as cheirar, e também as achei incompreensíveis. Mas percebi que, como eu, queriam entender o meu avô. Porquê, se não o conheciam? Comiam-lhe as palavras, imitavam-nas com a boca. Contudo, também elas não o compreendiam.
E uns tempos depois a escrita resultou em fedor. Ninguém percebia de onde vinha o cheiro, sentíamo-lo pela casa fora, pior com o passar do tempo. Buscámos por todo o lado excepto no escritório. Farta, a Noélia lançou-se à secretária interdita. Na gaveta de baixo, com pavor, encontrou num saco de supermercado o cadáver de uma pomba. «O pivete ajuda-me a escrever», justificou-se o avô perante a preocupação da Regina, a quem a Noélia, com a ave hirta na mão, correra a queixar-se. «E vou na terceira pomba», sorriu ele, a brilhar de desafio.
A Noélia não foi despedida. Daí em diante, o bom cheiro da casa atrasava os trabalhos do avô, entretanto mais calado, mais metido no livro, mais velho. A escrita tornou-se tabu e eu também me calei.
O livro era enorme, era grande como o silêncio, e o meu avô enterrava-se debaixo dele na poltrona de couro onde passou a escrever. Desistira da secretária e das pombas mortas.
Fora da cama, ou pelo menos à vista de todos, a Regina nunca lhe perguntava pelo manuscrito. Não é que para ela a vida com o meu avô fosse difícil, nem que lhe faltasse a curiosidade, mas ele calara-se, de facto e profundamente: silencioso como um batimento cardíaco que o coração suprimiu.
Nos primeiros anos, ainda nos questionámos sobre o livro. Também a dúvida era tabu, já um erro, já uma falha perante a importância do meu avô, mas eu insistia.
«É sobre África», dizia-se.
E mesmo essa hipótese, não aceite por toda a família, era um boato, a aparência de qualquer coisa desconhecida. Muito bem, sobre África. O meu avô nada desmentia e nada afirmava: bem podia ser sobre a Fossa das Marianas, o desmanche da carne nos matadouros ou a pintura renascentista.
Foi envelhecendo em rapaz. Voltava à juventude, aos livros de aventuras de Salgari, encomendava relatos sobre escalpes arrancados, o faroeste, as expedições às calotas polares, as navegações solitárias pelo cabo Horn. Contudo, em público, quando aceitava prestar contas, falava do último romance de W.G. Sebald e de Juan Rulfo. Se o livro fosse sobre África, seria excessivo e antiquado. Seria o meu avô, jovem quando velho.
Num gesto antes impensável, começou a abraçar-me e a dizer que me amava. A dizer que amava a família toda, as filhas, o neto e os amigos, especialmente os homens, cuja amizade, até então, nunca fora amor nem viera com um pedido estranho, a exigência de beijos na cara como às mulheres, acedida apenas por os amigos terem medo de contrariar alguma verdade maior cujo mensageiro seria o meu avô.
Como lhe custava levantar-se, eu abraçava-o e também à poltrona, na qual, de tanto se sentar, ficara impresso o seu corpo, inclusive a marca das pernas a roçar.
«É o meu espectro», dizia-me.
Tanta demonstração de amor na velhice servia para compensar uma falta com a qual eu fora obrigado a viver. Dentro de mim uma criança pequena sempre pediu que a acarinhassem, e dentro de mim manteve-se pedinte de amor por muito tempo. Face ao meu avô, a única pessoa que também podia ter sido meu pai, neguei a criança todos os dias. Nunca satisfeita a necessidade de consolo, a criança calou-se por fim, deixando-me sozinho e desalentado. Agora, que o avô pedia um filho, não havia um em mim para lhe dar.
Quando já ninguém pensava no manuscrito, o avô desceu ao jardim das traseiras.
Houve gritaria por causa da fogueira. Os vizinhos correram a chamarem-se uns aos outros e depois aos bombeiros. Antes de fugirem para a rua, ainda foram a tempo de ver uma figurinha de velho à luz das primeiras labaredas. As chamas produziam fumo branco e denso que caía na pele, qual insecticida. E sabia ao mesmo: metia-se na garganta e picava nos olhos, além de levar ao céu papéis incandescentes onde mal se liam palavras ardidas, parágrafos comidos.
Os livros ardem tal como descreveu Ray Bradbury, mas eu acrescento: os livros ardem até ao fim.
O fogo, que era só para o caderno, saltou da cova e subiu a um cipreste. Subiu e não conseguiu descer e procurou mais lenha para se agarrar. A certa altura, começaram as sirenes. Foi quando a Noélia me telefonou, ansiosa e a choramingar:
«Venha depressa, menino, pela saúde do senhor engenheiro.»
Uma mangueira entrou pelas escadas acima, pelo apartamento adentro e desceu até ao jardim das traseiras, sempre bebendo e cuspindo. Apagou-se o cipreste e apagou-se a cova. Cheguei depois de o meu avô ter declarado à polícia que não tinha nada a declarar, tirada que um dos agentes considerou de génio. Era apenas uma tirada de velho.
Os despojos do manuscrito perderam-se na terra ensopada e mais ninguém os viu, embora tivesse começado logo ali a suspeita de que alguém como o avô nunca queimaria a versão definitiva do que escrevera durante tantos anos. Devia haver outro manuscrito, o final, a última história: e embora por enquanto ninguém mo dissesse, muita gente pensava que, se isso fosse verdade, ele só podia tê-lo escondido no quarto da filha morta.
A Regina era um ombro triste encostado ao muro do jardim (quase quintal, quase pomar), assistindo à distância aos desvarios do amante. Lamentei-a pela segunda vez; a primeira foi quando se meteu na cama do meu avô.
«Louco, ele», disse-me, como quem explica que há solidões onde o amor não entra.
Uma semana depois, o avô não estava louco mas morria.
Recebeu algumas pessoas preocupadas com o que se passara, umas aflitas com a demência aparente acompanhada pelo zumbido do aparelho auditivo, outras curiosas com a decadência do homem. A procissão demorou uns dias, e até as duas filhas o visitaram, como sempre, receosas e em par.
Viram um pai prostrado, magro e de olhos que fugiam para um ponto invisível, um pai que, tendo pouco para dizer, tentava falar-lhes. Mas faltava-lhe a imaginação e o assunto e estava cansado.
Continuava incendiário e consumido. Quando o visitei pela última vez, disse-me que eu fizera bem em ter deixado de escrever. Que é melhor queimar, melhor esquecer e desistir. E que pequenas mentiras nunca dizem grandes verdades.
Eu olhei para ele com atenção. O cabelo comprido e branco, que antes penteava para trás acima das orelhas, caía-lhe sobre a testa. Os ombros tinham emagrecido, os braços também, e as mãos agora sabe-se lá se conseguiriam manejar canetas. Tinha a aparência de um velho quase andrajoso.
O avô também olhou atento para mim, mas suspeito de que não me viu. Procurava a minha mãe, buscava-a na minha cara, quase a reconhecia numa expressão dela e minha. Contudo, era melhor queimar, era melhor esquecer.
Quando acabaram as visitas, e ele próprio, destruído o manuscrito, se fartara de tantas palavras, esteve dois ou três dias macambúzio, palavra que detestava e que nunca usaria, e refugiou-se novamente na poltrona de couro.
Numa manhã de domingo, ligou a televisão na Casa Feliz, aumentou o som até ao máximo, o barulho anunciando qualquer coisa nova que chegava, essa coisa galopante, e morreu.
Convém referir que o meu avô era escritor.
E seria melhor dizer que era uma instituição nacional, alguém cujos obituários esperavam havia vinte anos nas redacções. E que na sua obra, celebrada da cabeça aos pés e traduzida e filmada e autopsiada pela academia, à qual só fugira o Nobel, África era vista como uma ausência por explicar, tendo em conta que o meu avô combatera na Guerra Colonial em Angola e lhe era conhecido o trauma. As notícias relataram a queimada do quintal com tamanhos de incêndio. Os telefonemas de condolências vieram pois com a pergunta: «E o livro?»
O livro morrera sem ter vivido. Mas o meu avô aguentara vivo até morrer.
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