Prólogo

Estava frio ou é isso que a minha memória pouco fiável recorda. Encontrava-me a ler na cama, uma chávena de café na mesa de cabeceira, e, por todo o chão do quarto, originais encadernados do Prémio Nueva Novela de Página/12, para o qual trabalhei na pré-seleção em 2007. O original de As Primas era muito diferente dos outros. Tinha sido escrito numa máquina de escrever — já então isso era excecional — e, para os erros tipográficos, o autor usara um corretor líquido que, em certas frases, se espalhava para palavras corretas, mas não havia problema, entendia-se. O encontro com a narradora de As Primas foi impactante. A sintaxe radical que evitava a pontuação porque a «cansava», a brutalidade na exposição das misérias das personagens, a inusitada falta de piedade para descrever uma família. «Não éramos comuns, ou seja, não éramos normais», diz Yuna, aquela que conta a história, uma jovem com problemas cognitivos (Aurora jamais usaria um termo tão correto: diria que Yuna é deficiente), cuja irmã Betina, em cadeira de rodas, muda, tem uma deficiência física e mental profunda e precisa de ser seguida, às vezes, numa instituição especial. Um hospício, refere Yuna, que é para onde costumam ir os casos desesperados, como o da irmã. Foi a cena do hospício que me impressionou a ponto de quase dizer em voz alta o que é isto, quem escreveu este livro, o que é que está a contar? Eis a cena em questão: «Enquanto esperava que a aula da Betina acabasse, passeava pelos corredores daquele conciliábulo de bruxas. Vi que entrou um sacerdote acompanhado pelo acólito. Alguém tinha entregado o lençol, a alma. O padre aspergia água benta e dizia se tens alma que Deus te receba no seu seio. A quê ou a quem o dizia? Aproximei-me e vi uma família importante da cidade de Adrogué. Vi um canelone em cima da mesa sobre um pano de seda. Que não era um canelone mas sim algo expelido pelo útero humano, caso contrário o padre não o batizaria. Indaguei e uma enfermeira contou-me que todos os anos o distinto casal trazia um canelone para batizar. Que o médico os aconselhou a não dar mais à luz porque aquilo não tinha remédio. E que eles disseram que por serem muito católicos não podiam deixar de procriar. Apesar da minha deficiência, qualifiquei o tema como asqueroso, mas não podia dizê-lo. Nessa noite não consegui comer de tanto nojo.»

É Desta Que Leio Isto: Em abril recebemos Richard Zimler

Richard Zimler junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 20 de abril, pelas 21h.

O livro escolhido para leitura é "A Aldeia das Almas Desaparecidas I - A floresta do avesso", o primeiro volume da mais recente saga do escritor — e um reencontro com a família Zarco.

Nascido em 1956 em Roslyn Heights, subúrbio de Nova Iorque, Zimler escolheu o Porto como novo lar em 1990, onde lecionou na Escola Superior de Jornalismo e na Universidade do Porto durante 16 anos. É onde ainda mora, tendo obtido a nacionalidade portuguesa em 2002.

Foi a partir da Invicta que iniciou uma carreira que já conta com 12 romances publicados, o último dos quais dividido em duas partes: "A Aldeia das Almas Desaparecidas II - Aquilo que procuramos está sempre à nossa procura", acabado de lançar, fecha o díptico iniciado com o volume I.

Zimler conta com uma série de best-sellers bem recebidos tanto pela crítica e como pelo público, como "O Último Cabalista de Lisboa", "O Evangelho segundo Lázaro" ou "Anagramas de Varsóvia".

Quanto a "A Aldeia das Almas Desaparecidas I — A floresta do avesso" é um regresso de Zimler aos Zarco, família de judeus sefarditas cuja saga atravessa vários séculos.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Terminei o romance e acho que no dia seguinte liguei de imediato à Liliana Viola, que também estava a tratar da pré-seleção, e falei-lhe da minha estranheza, da minha confusão, da minha admiração. O romance era genial? Seria o risco do texto, a excentricidade, a sensação de que não se tinha publicado nada parecido, seria a voz vinda de um lugar desconhecido? Quem podia ser o autor ou a autora? A Liliana também lera As Primas e encontrava-se no mesmo estado, entre o fascínio e o desconcerto. Acho que ambas soubemos que, se o júri entendesse a radicalidade desta história e deste texto, ele podia ganhar. E ganhou.

Aurora Venturini tinha oitenta e cinco anos quando venceu o Prémio Nueva Novela organizado pelo jornal Página/12. Na cerimónia de entrega apareceu com uma atitude punk, o corpo magro, o rosto insólito, com uma expressão entre a troça e a candura — além do gume maldito dos olhos pequenos, escuros, perscrutadores —, e disse: «Por fim, um júri honesto.» Tinha dezenas de livros publicados anteriormente. Era peronista, amiga de Evita, tinha estado exilada em Paris depois do golpe de 1955, e em França fora amiga de Violette Leduc e conhecera os existencialistas. Os mitos são muitos, acumulam-se, ela encarregou-se de os fazer crescer em vida: Aurora via fantasmas desde pequena; foi amiga de Victoria Ocampo e de Borges quando viveu em Buenos Aires (dezassete anos; passou o resto da vida em La Plata); era grafómana; teve aranhas como animais de estimação; quando caiu da cama e ficou internada, com todos os ossos partidos, visitou o Inferno e desde então tornara-se amiga de um padre exorcista. A verdade e a mentira não tinham a menor importância, entre outras coisas porque aí estava a certeza dos seus livros, a maior parte publicados em editoras independentes ou vencedores de prémios municipais, todos peculiares e obcecados por uma questão que excluía todas as outras: a família.

As Primas é uma história de família e de mulheres. É, segundo Aurora, um romance autobiográfico. «Eu não sou muito ligada à família, nunca fui, mas acabo sempre por escrever sobre a minha família, ou sobre famílias», explicava. «Os meus seres são todos monstruosos. A minha família era muito monstruosa. É o que conheço. E eu não sou muito comum. Sou um ser estranho que só quer escrever. Não sou sociável. A única vez que me reúno com alguém é no dia 24 de dezembro.» As Primas é o monólogo de uma idiota, mas não há muita fúria: há, pelo contrário, desassossego e, sobretudo, nojo. Os homens da família estão ausentes; os varões que aparecem são abusadores e rasgam os corpos destas mulheres vulneráveis com a indiferença de vilões menores. A história decorre nos anos quarenta. A mãe é professora «de ponteiro», um cargo de prestígio para uma mulher, mas também um dos únicos possíveis. Yuna consegue abandonar a casa, pelo menos mentalmente, porque é pintora, tem talento e a ajuda de um professor que a convence a estudar Belas-Artes e a expor a sua obra. Porém, ela está para sempre unida aos corpos sofredores das mulheres da família, à sua tia Nené, às primas Carina e Petra, à afável Rufina, à escuridão dessa casa de subúrbio onde tudo é triste e onde Betina, a irmã, se passeia fazendo runrum na sua cadeira de rodas, a babar-se. «Pintei as sombras que não pude evitar porque tenho dentro de mim tantas sombras que quando me angustiam (idem) as expulso para cima das minhas pinturas.» O «idem» indica que o aparecimento da palavra («angustiam», neste caso) é o resultado de uma pesquisa no dicionário, porque Yuna não tem um vocabulário vasto e escreve contra a linguagem, contra as convenções da escrita, com o que lhe resta de uma oralidade precária. Com essa precariedade, a autora relata a iniciação não só de Yuna, como das outras raparigas, todas desprezadas e usadas. A primeira a sofrer abusos é Carina, uma das primas: engravida do vizinho («um vendedor de batatas») e a tia Nené decide que deve abortar. Não há muitos abortos na literatura argentina e neste descreve-se com precisão o desamparo da clandestinidade: «Veio a médica que não parecia ser médica porque era muito vulgar. Perguntou qual era a paciente e de quantos meses estava ao que a tia Nené respondeu que de três e pouco e eu compreendi que apesar de os filhos representarem mais dois braços para trabalhar e aumentarem o rendimento e embora a tia Nené não comesse todos os dias por falta de dinheiro, nem por toda a fortuna que a criança traria a perdoaria. Entre disse a médica e a Carina entrou a tremer, a tia perguntou se ela também podia e a médica disse que não e fechou a porta que as separava. Os choques metálicos dos instrumentos tornaram-se mais agudos.» O aborto de Carina não acaba bem, mas não diremos mais aqui. Apenas que Petra, a irmã de Carina, uma jovem liliputiana que trabalha como prostituta desde a adolescência, se vingará. As primas Yuna e Petra são aliadas e tentam deter a cadeia de abusos que também sofreram, mas nada é suficiente neste romance pessimista e brutal, sem heroínas claras, um romance de mulheres extremas, doentes, obcecadas, maltratadas. Aurora Venturini estava fascinada com o humor negro, a crueldade, a monstruosidade: ela considerava-se anómala e acreditava numa literatura disforme, também lúdica, porque As Primas é um romance que faz rir em voz alta diante das provocações e das decisões insólitas. Corpos no limite, escrita aos borbotões como se fosse de sangue. Com As Primas, Aurora Venturini conseguiu a notoriedade que procurara toda a vida, e desfrutou dela como sabia fazê-lo: mostrando as suas cicatrizes de mulher monstra que se criou a si própria com uma lucidez trocista.

Mariana Enríquez

Primeira Parte

A infância deficiente

A minha mãe era professora de ponteiro, de bata branca, muito severa, mas ensinava bem numa escola suburbana aonde iam crianças da classe média para baixo e não muito dotadas. O melhor aluno era o Rubén Fiorlandi, filho do merceeiro. A minha mãe exercitava o ponteiro na cabeça daqueles que se armavam em engraçados e mandava-os para o canto com orelhas de burro feitas de cartão avermelhado. Raramente um malcomportado reincidia. A minha mãe achava que as primeiras letras com sangue entram. Quando dava aulas à terceira classe, os colegas chamavam-lhe menina do terceiro, mas ela era casada com o meu pai, que a abandonou e nunca mais voltou para casa para cumprir as obrigações de pater familiae. Ela assumia tarefas docentes no turno da manhã e regressava às duas da tarde. O almoço já estava feito porque a Rufina, a moreninha que era uma dona de casa muito eficiente, sabia cozinhar. Eu estava farta de cozido todos os dias. No quintal cacarejava um galinheiro que nos dava de comer e na hortinha abóboras milagrosamente douradas brotavam sóis despenhados de alturas celestiais e mergulhados na terra, que cresciam ao lado de violetas e de raquíticas roseiras das quais ninguém cuidava, mas que insistiam em dar uma nota perfumada àquela desgraçada imundície.

As Primas
créditos: Alfaguara

Livro: "As Primas"

Autora: Aurora Venturini

Editora: Alfaguara

Tradução: Rita Custódio e Àlex Tarradellas

Data de Publicação: 3 de abril

Preço: € 16,61

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Nunca confessei que aprendi a ler as horas nas esferas dos relógios aos vinte anos. Esta confissão envergonha-me e surpreende-me. Envergonha-me e surpreende-me pelo que mais tarde saberão sobre mim, e vêm-me à memória muitas perguntas. Vem-me à memória especialmente a pergunta: Que horas são? Para dizer a verdade, eu não sabia que horas eram e os relógios assustavam-me como o rodar da cadeira ortopédica da minha irmã.

Ela, mais cretina do que eu, sabia ler a esfera dos relógios, embora não soubesse ler em livros. Não éramos comuns, ou seja, não éramos normais.

Rum… rum… rum… murmurava a Betina, a minha irmã, a passear a desgraça pelo jardinzinho e pelos pátios de lajes. O runrum costumava ficar empapado com a baba da idiota que se babava. Coitada da Betina. Erro da natureza. Coitada de mim, também um erro, e coitada ainda mais da minha mãe, que carregava o esquecimento e monstros.

Mas tudo passa neste mundo imundo. Por isso não é lógico afligirmo-nos muito por nada nem por ninguém.

Às vezes penso que somos um sonho ou um pesadelo cumprido dia após dia que em qualquer momento já não existirá, já não aparecerá no ecrã da alma para nos atormentar.

A Betina sofre de um mal anímico

Foi o diagnóstico de uma psicóloga. Não sei se estou a reproduzi-lo corretamente. A minha irmã era corcunda, de costas e sentada parecia um bicho marreco de perninhas curtas e braços inacreditáveis. A velha que vinha cerzir meias achava que tinham feito mal à minha mãe durante as gravidezes, sobretudo a da Betina.

Perguntei à psicóloga, jovem de bigode e monocelha, o que significava anímico.

Ela respondeu-me que era qualquer coisa relacionada com a alma, mas que eu só a entenderia quando fosse adulta. Porém, adivinhei que a alma seria semelhante a um lençol branco que estava dentro do corpo e que quando se manchava as pessoas se tornavam idiotas, muito como a Betina e um bocadinho como eu.

Quando a Betina dava voltas em redor da mesa a fazer runrum, comecei a reparar que arrastava uma pequena cauda que saía pela abertura entre as costas e o assento da cadeira ortopédica e disse a mim própria que devia ser a alma a escapulir-se.

Voltei a perguntar à psicóloga desta vez se a alma tinha relação com a vida e ela disse-me que sim, e ainda acrescentou que quando faltava, as pessoas morriam e a alma ia para o céu se tinha sido boa ou para o inferno se tinha sido má.

Rum… rum… rum… a alma continuava a arrastar-se e cada dia me parecia mais comprida e com manchas cinzentas e deduzi que dentro de pouco tempo cairia e a Betina morreria. Mas eu não me importava porque ela me dava nojo.

Quando chegava a hora das refeições, eu tinha de alimentar a minha irmã e errava de propósito no orifício e metia a colher num olho, numa orelha, no nariz, antes de chegar à bocarra. Aaah… Aaah… gemia a suja infeliz.

Eu agarrava-a pelo cabelo e metia-lhe a cara no prato e ela então calava-se. Que culpa tinha eu dos erros dos meus pais? Planeei pisar-lhe a cauda da alma. O relato do inferno conteve-me.

Eu lia o catecismo da comunhão, e «não matarás» tinha ficado gravado em mim. Mas uma pancadinha hoje, outra amanhã faziam crescer a cauda que os outros não viam. Só eu é que a via e regozijava-me com isso.