Depois do que aconteceu a 7 de dezembro, esperava-se mais chuva, mas desejava-se que não com o lastro destrutivo dessa noite.
Quaisquer desejos caíram em saco roto, já que a água voltou a invadir o país durante esta madrugada, em particular zonas que já tinham sido flageladas na semana passada — as estações meteorológicas do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) em Lisboa registaram valores de precipitação superiores a 20 milímetros por hora entre as 04:00 e as 07:00.
Pelas 12:00 deste dia, a Proteção Civil contabilizava 1.463 ocorrências, com a maioria concentrada nos distritos de Lisboa, Santarém, Évora, Setúbal e Portalegre. A abstração do número, porém, esconde realidades bem mais palpáveis e duradouras.
Porque se a interdição de vias, a disrupção de serviços e o encerramento de escolas vai do inconveniente ao debilitante, a lei de Murphy diz-nos que a situação pode sempre piorar. Veja-se, por exemplo, quem se arrisca a perder a casa ou o seu ganha-pão.
Em Alcântara, a sempre fustigada freguesia de Lisboa em caso de mau tempo, 16 pessoas foram retiradas das habitações e outras seis de um supermercado na sequência de inundações provocadas pelo mau tempo. Já na freguesia de Santa Clara, 20 pessoas foram retiradas de um edifício que está em risco de ruir e vai ser posteriormente avaliado por parte de engenheiros civis. Além disso, um deslize de terras na Azinhaga da Torrinha impediu 10 moradores de sair de casa.
Em Cascais, registaram-se habitações inundadas em São Domingos de Rana, pessoas resgatadas de carros. Na baixa da vila, houve inundações em lojas e foram já apurados “muitos estragos”.
Também foram registados cinco desalojados e várias casas e estabelecimentos comerciais inundados no concelho de Odivelas (distrito de Lisboa), 27 pessoas ficaram desalojadas no concelho do (distrito de Setúbal) e 12 pessoas estavam no centro de acolhimento temporário criado pelo município de Loures na sequência do mau tempo, depois de as suas casas terem ficado “sem condições de habitabilidade”.
O distrito de Portalegre foi igualmente fustigado, sendo que em Monforte, o mau tempo provocou “inúmeras inundações” em casas particulares e vias públicas localizadas nas povoações de Vaiamonte, Santo Aleixo, Assumar e Prazeres. “Temos graves prejuízos, que dizem respeito a essas situações, quer ao nível da agricultura, quer dos bens pessoais domésticos”, disse o autarca local, Gonçalo Lagem.
Em Campo Maior a situação foi ainda pior, apurando-se que houve inundações em habitações, em algumas “quase até ao teto”, em garagens e em vias públicas. No Largo da Alagoa, chegou-se a ver um ‘mar’ de água barrenta, quase a chegar ao topo dos arcos das ruas e às varandas, com automóveis praticamente submersos. O Comandante Operacional Distrital (CODIS), Rui Conchinha, disse que “está a ser avaliada a situação de algumas habitações e há forte perspetiva de haver desalojados”.
Já em Évora, das 36 inundações verificadas, o concelho de Estremoz foi o mais afetado, com 13 destas ocorrências — e destas resultou uma família de quatro que teve de ir para a residência de familiares, pois foi tanta a água que a sua casa chegou “a ter um metro e meio de altura”.
Posto este cenário de destruição e de avultados custos, quem irá pagar? Manuel Ferreirinha, proprietário de uma pastelaria em Santo António dos Cavaleiros (Loures), viu a água subir de nível por duas vezes na última semana dentro do seu estabelecimento e os prejuízos estarão na ordem “dos milhares de euros”, entre a reposição de máquinas utilizadas na confeção e a própria madeira do chão da loja.
Já o Sport Algés e Dafundo lamenta que nem meio milhão de euros chegará para solucionar os problemas causados pelo mau tempo. “Temos um prejuízo… 500.000 euros não chegam para por o Algés em andamento. É o chão a levantar, os azulejos da piscina a saltar, máquinas e extintores avariados, a parte elétrica e motores destruídos… é uma catástrofe”, lamentou o presidente António Bessone Basto.
Nesta freguesia de Oeiras, os comerciantes, já de rastos, voltaram hoje a limpar os estabelecimentos alagados devido ao mau tempo, com prejuízos ainda por contabilizar, e há já quem diga que vai desistir. “Mal a gente consiga pôr aqui uma carrinha, vamos tirar tudo o que é recuperável e ir embora daqui e nunca mais voltar, porque esta zona aqui é uma zona muito bonita, adoramos estar aqui, mas é incomportável”, afirmou Paula Gonçalves, da empresa Light Design, localizada na Rua Major Afonso Palla.
O presidente da União de Freguesias de Algés, Linda-a-Velha e Cruz Quebrada-Dafundo descreveu um cenário desolador para os comerciantes da freguesia, que “voltaram a perder tudo” devido ao mau tempo que se fez sentir esta madrugada. “Os comerciantes estão muito desanimados. Há pessoas que abriram ontem [segunda-feira] os seus restaurantes e que ficaram sem nada”, disse à agência Lusa João Antunes.
A Associação Portuguesa de Seguradoras (APS) anunciou que por esta altura há já “milhares de ocorrências participadas e valores significativos de indemnizações a processar".
"De acordo com as primeiras indicações que vão sendo obtidas, haverá já milhares de ocorrências participadas e valores significativos de indemnizações a processar, e as seguradoras tudo farão para que os seus clientes, individuais e empresas possam retomar a normalidade da sua vida com a maior rapidez possível", afirma a APS em comunicado.
No entanto, a associação defende a criação em Portugal de um "sistema de proteção de riscos catastróficos, do qual as seguradoras possam fazer parte, numa lógica de colaboração entre o setor privado e público, para que as pessoas e empresas afetadas possam ver os prejuízos sofridos reparados de forma mais célere e completa".
Dadas as circunstâncias, as Câmaras municipais de Campo Maior e de Fronteira (Portalegre) anunciaram que vão acionar os Planos Municipais de Emergência de Proteção Civil, na sequência dos prejuízos causados nas últimas horas pelo mau tempo — e há vozes a clamar que tal resposta se estenda e se reforce.
O PAN, por exemplo, quer que o Governo declare situação de calamidade nos municípios afetados pelo mau tempo e que os apoios financeiros para fazer face aos estragos causados pelas cheias cheguem “rapidamente” aos portugueses. O partido quer também que o Governo “peça à Comissão Europeia um apoio financeiro no âmbito do fundo de solidariedade da União Europeia” e que exista um “reforço extraordinário da dotação orçamental do Fundo de Emergência Municipal”.
A CPPME - Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas registou igual pedido, clamando ao Governo que aja “de imediato” face às consequências do mau tempo, “declarando a situação de catástrofe” e colocando meios no terreno.
Da parte do executivo, o primeiro-ministro admitiu a possibilidade de Portugal acionar o Fundo de Solidariedade da União Europeia para fazer face às cheias dos últimos dias, frisando porém que só irá avançar quando estiverem cumpridos os "pressupostos" que permitem aceder a este apoio.
Mas mesmo que todo o mal material causado pelas chuvas seja solucionado pelo estado e a solidariedade das comunidades, o psicológico pode perdurar. José Manuel Palma, especialista em comportamento humano, alertou em conversa com a Lusa para o impacto psicológico das cheias e inundações, antecipando “uma percentagem muito elevada de pessoas com stress pós-traumático e com episódios de stress agudo”.
Apoiando-se em estudos sobre desastres naturais, sobretudo nos Estados Unidos, o especialista refere que “cerca de 14 a 20% das pessoas atingidas por estes episódios podem desenvolver, e desenvolveram, stress pós-traumático, para além de formas mais mitigadas de stress”.
José Manuel Palma avisa que “as implicações disto para o sofrimento humano e para as perturbações psicológicas e comportamentais são muito grandes” e, portanto, a reflexão em torno destes acontecimentos deve ir além da “questão dos buracos” que se vai ou não fazer nas cidades. “Estamos a falar de sofrimento humano, de consequências de stress pós-traumático que podem acompanhar uma pessoa por quase toda a sua vida”, alertou.
*com Lusa
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