O Código Penal Português distingue os crimes de natureza sexual em dois grupos: crimes contra a liberdade sexual — penalizam todas as atividades sexuais cometidas sem o consentimento da vítima, independentemente da idade —, e crimes contra a autodeterminação sexual — penalizam atividades sexuais com menores até 18 anos.
Quando se fala em abuso sexual de menores, está em causa um crime público. Segundo definição do Ministério Público, este "é um crime para cujo procedimento basta a sua notícia pelas autoridades judiciárias ou policiais, bem como a denúncia facultativa de qualquer pessoa".
Por isso, "as entidades policiais e funcionários públicos são obrigados a denunciar os crimes de que tenham conhecimento no exercício de funções" e "o processo corre mesmo contra a vontade do titular dos interesses ofendidos".
Em relação ao que tem acontecido quanto aos abusos na Igreja Católica, as regras e procedimentos são iguais. "Fosse ou não um crime público — mas é —, a verdade é que o nosso Estado é laico, vivemos em Estado de Direito Democrático", diz ao SAPO24 Teresa Leal Coelho, professora de Direito Público e ex-deputada pelo PSD.
"É uma república laica, que tem de garantir o seu a seu dono. Neste sentido: não é a Igreja Católica que tem de fazer qualquer investigação, é obviamente a autoridade pública que tem e fazer as investigações e atuar em conformidade com o Direito português", adianta.
"Mas, continuo a dizer, parece que a nossa sociedade, seja a sociedade civil, seja o poder político, estão de certa forma atrofiados perante o peso e a influência da Igreja Católica, e isto tem de acabar. Estamos a falar de uma estrutura perante a qual há pedofilia sistémica"Teresa Leal Coelho
Também José Ribeiro e Castro, jurista e antigo presidente do CDS, deixa a mesma nota: "A Deus o que é de Deus, a César o que é de César. E isto são matérias de César".
"Agora, há coisas que a Igreja já está a fazer há algum tempo, como a denúncia que quando é recebida entra no Ministério Público. E também já houve casos de auto-suspensão", aponta ao SAPO24.
Assim, a Igreja Católica tem também procedimentos a considerar. Em 2020, o Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF) preparou um "manual" para a Igreja lidar com os "casos de abuso sexual de menores cometidos por clérigos". Já em 2022, o Vademecum foi revisto e é essa segunda edição que o Vaticano disponibiliza no seu site.
Segundo o documento, que "não é um texto normativo, não inova a legislação sobre o assunto, mas visa tornar mais claro um percurso", fala-se em casos de abuso sexual em várias situações: "a tipologia do delito é muito ampla e pode incluir, por exemplo, relações sexuais (com e sem consentimento), contacto físico de ordem sexual, exibicionismo, masturbação, produção de pornografia, indução à prostituição, conversas e/ou propostas de carácter sexual inclusive através dos meios de comunicação".
Por cá, desde 2012 que a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) tem "Diretrizes referentes ao tratamento dos casos de abuso sexual de menores por parte de membros do clero ou praticados no âmbito da atividade de pessoas jurídicas canónicas".
Por sua vez, o documento "Proteção de menores e adultos vulneráveis – Diretrizes" — que tem por base o anterior texto —, foi aprovado a 13 de novembro de 2020 na Assembleia Plenária da CEP. Entrou em vigor a 1 de janeiro de 2021.
Nele, é descrito que os "agentes pastorais" estão proibidos de "entrar em contacto com um menor ou adulto vulnerável de modo ofensivo ou ter comportamentos inapropriados ou com conotações sexuais, sejam essas conotações explícitas ou dissimuladas".
Nesse sentido, a CEP esclarece que "o modo de tratar os possíveis casos de abuso sexual de menores e adultos vulneráveis está amplamente previsto no Vademecum publicado pela Congregação para a Doutrina da Fé, o qual deve ser integralmente aplicado".
"Aquilo que estas diretrizes salientam é um renovado compromisso, por parte de todos os membros da Igreja, em estarem disponíveis para escutar, acompanhar e garantir uma adequada assistência médica, espiritual e social às vítimas dos abusos e aos seus familiares, no âmbito das atividades eclesiais", é explicado.
Assim, segundo os bispos, "a Igreja cooperará com a sociedade e com as respetivas autoridades civis; tomará em atenção todas as sinalizações que lhe cheguem e responderá com transparência e prontidão às autoridades competentes em qualquer situação relacionada com abuso de menores, na salvaguarda dos direitos das pessoas, incluindo o seu bom nome e o princípio da presunção de inocência".
E depois da denúncia?
O "possível delito" pode chegar à Igreja através de várias fontes e, inclusive, "de fonte anónima, ou seja, de pessoas não identificadas ou não identificáveis". Mesmo neste caso, o que é dito não deve ser considerado falso, principalmente se for acompanhado "de documentação que atesta a probabilidade de um delito". "No entanto, por razões facilmente compreensíveis, é oportuno ter muita cautela ao tomar em consideração esse tipo de notitia, que de modo algum deve ser encorajado", é descrito.
Por outro lado, mesmo quando não são indicados "detalhes concretos (nomes, lugares, tempos etc.)", a denúncia deve ser "adequadamente avaliada e, na medida do possível, aprofundada com a devida atenção".
O documento descreve ainda o que deve acontecer no caso de a denúncia ser feita durante a confissão, uma vez que o sacerdote está obrigada ao sigilo. Nessas situações, o confessor deve procurar "convencer o penitente a tornar conhecidas as suas informações por outras vias, a fim de permitir agir a quem deve fazê-lo".
Recebida a denúncia, "realize-se uma investigação prévia", excepto se for considerado que não há motivo para isso. Mas mesmo nesse caso há algo a fazer: deve haver "o cuidado de conservar a documentação juntamente com uma nota em que se expliquem as razões da decisão".
Nos casos a ser investigados, os bispos devem apresentar "denúncia às autoridades civis competentes", sempre que considerem esse procedimento "indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos delituosos". Contudo, não há aqui uma obrigação do ponto de vista jurídico.
Assim, "a investigação prévia canónica deve ser realizada, independentemente da existência ou não de uma investigação correlativa, feita pelas autoridades civis. Mas, se a legislação estatal impuser a proibição de investigações paralelas à sua, a autoridade eclesiástica competente abstenha-se de iniciar a investigação prévia e comunique ao Dicastério para a Doutrina da Fé tudo o que foi denunciado, anexando qualquer material útil. Se parecer oportuno aguardar o fim das investigações civis para eventualmente obter os seus resultados ou por outros motivos, é bom que [se peça] conselho ao DDF sobre isso".
O Vaticano recorda ainda que "a eventual omissão" das denúncias "pode constituir um delito punível" e, por isso, levar à destituição do cargo.
Mas quem decide o quê na Igreja? "São os bispos que têm autoridade sobre as dioceses", não é o contrário, lembra o jurista José Ribeiro e Castro. "E, acima dos bispos, o Papa". "Portanto, a Conferência Episcopal é um órgão de coordenação da atividade, não tem autoridade nesta matéria".
Ou seja, quando dizem "eles [Conferência Episcopal] não fizeram nada, agora os bispos é que vão ter de decidir, está errado, porque são os bispo que têm de decidir. E, como estamos a ver, de uma forma geral estão a decidir bem. Analisam e, relativamente ao clero nas suas dioceses, impõem as medidas cautelares ou sanções que decidem aplicar".
A "suspensão" dos alegados abusadores
Os bispos podem, "desde a abertura da investigação prévia", impor o que são definidas como "medidas cautelares". Ou seja, não se fala em penas — "as penas só se impõem ao final do processo penal" —, mas sim num "ato administrativo".
Portanto, "o aspecto não penal da medida deve ser bem esclarecido ao interessado, para evitar que ele pense ter sido julgado ou punido antes do tempo".
Porém, o Vaticano realça que "as medidas cautelares devem ser revogadas se decair a causa que as sugeriu, e cessam quando terminar o possível processo penal. Mais, podem ser modificadas (agravando-as ou aliviando-as) se as circunstâncias o exigirem" e "não se exclui que as mesmas – uma vez revogadas – possam ser novamente impostas".
Mas a palavra 'suspensão' — "para indicar a proibição de exercer o ministério imposta como medida cautelar a um clérigo" — não deve ser usada neste contexto, segundo o Vademecum. "É bom evitar tal designação", pode ler-se, já que "na legislação em vigor a suspensão é uma pena e, nesta fase, ainda não pode ser imposta".
"A forma correta para designar tal disposição será, por exemplo, proibição do exercício público do ministério", é acrescentado.
Recentemente, logo após ser entregue a lista com os nomes dos abusadores à CEP e ao MP, D. Manuel Clemente, Cardeal Patriarca de Lisboa, foi questionado se a resolução do problema pode passar pela suspensão imediata dos alegados padres abusadores de menores. A resposta que surgiu foi dada, então, à luz do conceito de "suspensão" do Direito Canónico: "Essa é uma pena muito grave, é a mais grave que a Santa Sé poderá dar e é a Santa Sé que a poderá dar".
"Se nós tivermos factos, e factos comprovados e sujeitos a contraditório, claro — nós estamos num país de direito e de leis — só pode ser feita pela Santa Sé, não é uma coisa que um bispo possa fazer por si", referiu.
"A suspensão é uma pena, como disse, muito grave, que só pode ser dada pela Santa Sé depois de um processo canónico. Na lei civil, todos os casos são do conhecimento do Ministério Público e o Ministério Público atua conforme a lei e nós cá estamos para colaborar", disse ainda.
José Ribeiro e Castro recorda, então, que "a suspensão, no Direito Canónico, é punitiva, não é cautelar". O que existe é um afastamento, a "proibição do exercício público do ministério, o sacerdote deixa de poder exercer a sua função", até se descobrir a verdade, para prevenir o risco de continuação da actividade criminosa.
"Esta medida cautelar é até de segurança para o próprio [o acusado]. Porque aqui também existe o perigo de alarme social, as pessoas ficam normalmente, e compreensivelmente, escandalizadas. É adequado que uma pessoa que está a ser investigada, mesmo que depois se prove que a acusação é falsa, seja afastada, isso é do interesse da Igreja e do próprio que não seja confrontado todos os dias com o exercício público do ministério quando está debaixo de suspeita", acrescenta.
Segundo o Vademecum, deve ser evitada "a opção de realizar simplesmente uma transferência de ofício, de circunscrição, de casa religiosa do clérigo envolvido, pensando que o seu afastamento do local do suposto delito ou das presumíveis vítimas constitua solução satisfatória do caso".
É também referido que o sacerdote que foi alvo de denúncias pode pedir o afastamento provisório de funções durante a investigação.
"É adequado que uma pessoa que está a ser investigada, mesmo que depois se prove que a acusação é falsa, seja afastada, isso é do interesse da Igreja e do próprio que não seja confrontado todos os dias com o exercício público do ministério quando está debaixo de suspeita"José Ribeiro e Castro
Depois, terminada a fase de "investigação prévia" — cujo "prolongamento injustificado" pode "constituir uma negligência por parte da autoridade eclesiástica" —, a diocese deve enviar uma cópia do processo ao DDF, independentemente do resultado.
E são ainda apresentadas "eventuais sugestões acerca da maneira de proceder (por exemplo, se considera oportuno ativar um procedimento penal, e o tipo do mesmo; se se pode considerar suficiente a pena imposta pelas autoridades civis; se é preferível a aplicação de medidas administrativas pelo Ordinário ou o Hierarca; se se deve invocar a prescrição do delito ou conceder a derrogação da mesma)". Ou seja, depois de análise, é do Vaticano que vem a palavra final.
Quanto à lei civil, Teresa Leal Coelho explica que "o Ministério Público não pode afastar estas pessoas [padres acusados de abuso sexual de menores] do exercício de funções, mas pode levar a instâncias [tribunais] que o façam".
"Não faço ideia o que é que a Procuradoria Geral da República e o Ministério Público estão a fazer, porque o processo será sempre sigiloso, mas, efetivamente, até para apaziguar as vítimas e a sociedade, acho que deveria haver manifestações inequívocas, mesmo que não se identificassem nomes (embora muitos deles estejam já identificados), mas era importante uma atuação consequente por parte da autoridade pública portuguesa", evidencia. "Mas, continuo a dizer, parece que a nossa sociedade, seja a sociedade civil, seja o poder político, estão de certa forma atrofiados perante o peso e a influência da Igreja Católica, e isto tem de acabar. Estamos a falar de uma estrutura perante a qual há pedofilia sistémica".
"A Igreja continua com um estatuto em Portugal que a coloca muitas vezes no patamar de insuspeita, quando temos de concluir que estão sob suspeita os padres, e espero que muitos sejam brevemente indiciados, acusados, suspensos, retirados de funções e do contacto com a sociedade e as crianças", remata.
Em caso de "condenação", que penas estão previstas?
Segundo a Ecclesia, o Código de Direto Canónico aponta a "privação do ofício e outras penas justas, sem excluir, se o caso o exigir, a expulsão do estado clerical", para os sacerdotes acusados de cometer abuso sexual.
Contudo, as penas tomam em consideração as circunstâncias de cada um, como o estado de saúde ou idade do clérigo, pelo que podem incluir a "obrigação ou proibição de residência em determinado território, privação de cargos ou funções, proibição de ouvir confissões ou de pregar, entre outras".
De recordar também que o prazo de prescrição no Direito Canónico é de 20 anos a partir do 18.º aniversário da vítima (em casos específicos, o Vaticano pode revogar essa prescrição e os bispos podem continuar a investigar), enquanto o Código Penal português prevê a prescrição cinco anos após os 18 anos.
Como nota Teresa Leal Coelho: "Temos uma lei que salvaguarda os pedófilos e abusadores. Não intencionalmente, mas pelo facto de estabelecer a prescrição nos cinco anos após o jovem completar os 18 anos de idade. Isso é até aos 23 anos, quando temos aqui mais do que prova estatística de que a denúncia vem a acontecer bem mais tarde. Dizem os relatórios que a propensão que estas vítimas — que ficam em sofrimento profundo e que se sentem estigmatizadas e com vergonha e com culpa —, têm para falar dá-se entre os 30 e os 35 anos".
Foram entretanto aprovados, pelo Parlamento, exatamente dois projetos de lei que pretendem aumentar o prazo de prescrição dos abusos sexuais a menores até a vítima completar 30 anos.
Já do lado da lei civil, "quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos".
Por sua vez, "se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos", segundo o previsto no artigo 171.º do Código Penal.
É ainda referido que quem "importunar menor de 14 anos, praticando ato previsto no artigo 170.º; "atuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objeto pornográficos" ou "aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a atividades sexuais" será "punido com pena de prisão até três anos". Caso estes atos sejam praticados "com intenção lucrativa", tal é "punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos".
O SAPO24 contactou o Ministério Público, mas não foram obtidas respostas até à data de publicação deste artigo.
Comentários