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João Negrão, Diretor Geral do Gabinete de Propriedade Intelectual da União Europeia, esteve à conversa com o 24notícias na Web Summit, na conversa ressalvou que a Propriedade Intelectual deve ser sempre o primeiro passo de uma criação, e que permite prevenir a apropriação indevida e criar confiança junto de investidores, consumidores e parceiros. Sublinhou que a Propriedade Intelectual não deve ser encarada apenas como um instrumento jurídico, mas como um ativo estratégico essencial para o desenvolvimento de negócios, especialmente para pequenas e médias empresas que ainda utilizam pouco os direitos de autor e a proteção de Propriedade Intelectual.
João Negrão destacou ainda que embora a IA permita criar mais rapidamente, surgem questões complexas sobre autoria, direitos e utilização de obras para treinar modelos. Defende a criação de sistemas de “opt in/opt out”, conceito explicado na conversa, e mercados de licenciamento que garantam recompensas justas aos criadores, além de mecanismos de transparência que identifiquem claramente quando uma obra foi produzida ou influenciada por IA.
O ano passado, em Portugal, houve um aumento brutal registos de patentes. Estamos mais preocupados com a propriedade intelectual ou mais preocupados com o que a inteligência artificial pode fazer com aquilo que produzimos?
Eu penso que não há contradição entre a Inteligência Artificial e a Propriedade Intelectual. De facto, é muito importante que cada vez que se crie algo novo, seja uma invenção, seja uma nova marca, o novo desenho, se tenha sempre a preocupação como primeiro passo de proteger aquilo que é nosso. Tal como nós protegemos também os nossos ativos tangíveis.
O primeiro passo é sempre a proteção. Isso é muito importante para prevenir que outros utilizem as nossas criações. Mas se é o primeiro passo, também não pode ser o último passo. A propriedade intelectual é necessária, mas não é suficiente para garantir que uma empresa tenha sucesso no mercado. É preciso dar outros passos, atrair investimento, fazer o scale up da empresa para se tornar maior comercialização de produtos, etc.
Eu penso que a inteligência artificial coloca e cria grandes oportunidades às empresas dá-nos uma capacidade de criar a um ritmo diferente, mas depois também nos cria desafios em termos de definir quem é o dono ou de autor destas novas criações, como é que se vai refletir esta criação em termos de inteligência artificial? E é muito importante que tenhamos sempre em consideração que a transparência é um fator essencial para criar confiança e, portanto, ser transparente sobre qual foi o papel da inteligência artificial, Se foi criado por inteligência artificial, que tipo de inteligência artificial é definir depois quem é o criador final deste tipo de novo ativo.
Falava das novas empresas, mas no que diz respeito àquilo que é mais antigo, ao nosso património e à cultura, como é que, nesta era global conseguimos, por um lado, promover as tradições e ao mesmo tempo, proteger a herança cultural?
Eu continuo a pensar que o primeiro passo, e o mais decisivo é sempre a proteção. Porque se nós criarmos e não protegermos, estamos a dar a outros a possibilidade de explorar aquilo que nós criámos. Portanto, em muitos dos casos como não há uma proteção através de direitos de propriedade intelectual, outros podem apropriar-se dessas criações. Assim, o primeiro passo, será sempre a proteção.
Mas depois, é necessário, evidentemente, desenvolver um negócio. Para desenvolver o negócio é necessário atrair financiamento, por exemplo, para podermos fazer crescer as empresas. E empresas que têm direitos de propriedade intelectual têm maior capacidade de atrair financiamento porque têm um ativo que podem utilizar como garantia. E também criam mais confiança nos consumidores.
Assim há uma maior possibilidade de identificar estes produtos como produtos tradicionais, que têm a ver com a nossa cultura e distingui-los daqueles que não são tradicionais. Por isso, é muito importante pensar em Propriedade Intelectual não como algo jurídico, só como título jurídico, mas como algo prático, ativo, estratégico para o desenvolvimento do negócio. Para isso, é muito importante, evidentemente, falar sobre design intelectual e educar também as empresas e os empresários sobre a necessidade de utilizar o sistema para que tenhamos, no futuro, mais empresas que protegem através de direitos de propriedade intelectual.
Hoje em dia, na Europa, apenas 10% das pequenas e médias empresas utilizam direitos de propriedade intelectual. Por isso, o primeiro passo será trazer estas empresas para o lado da proteção e depois dar-lhes as condições para poderem crescer com base neste ativo estratégico.
Hoje em dia, usamos obras literárias, musicais e jornalísticas públicas sem autorização ou compensação para quem as criou. É necessário pensar em licenças específicas para conteúdos gerados por IA, possivelmente com regras de atribuição, partilhas ou royalties?
Essa é uma das questões, na minha opinião, mais relevantes e pertinentes no âmbito da interação entre a inteligência artificial e os direitos de autor. Porque, hoje em dia, o que nós vimos é que há muitas empresas que treinam os seus modelos, os Large Language Models através de criações que nem sabem os seus criadores que estão a ser utilizadas para o desenvolvimento destas plataformas.
Por um lado, não há uma recompensa, não há um incentivo para os criadores receberem a recompensa justa pelo facto dos seus produtos serem utilizados para a criação. Por outro lado, muitas vezes estes criadores não querem que as suas obras sejam usadas neste âmbito, mas não têm a possibilidade de fazer o que se chama o opt out sair do sistema.
Uma dos passos que, na minha opinião, é mais relevante nesta área no futuro, será definir um sistema de opt out e opt in para que os criadores que não querem ver as suas obras utilizadas por estas empresas para treinar estes modelos o possam dizer e se possa fazer a monitorização. Se de facto estão a ser respeitados ou não estão a ser respeitados.
Isso de um lado o lado mais defensivo. O lado mais interessante, na minha opinião, é a criação do mercado de licenciamento, que são os royalties, assim aqueles criadores e autores que querem que os seus trabalhos sejam utilizados para treinar estes modelos possam dizê-lo e depois possam receber a devida recompensa.
Já é usada em alguns países, como Canadá e Estados Unidos.
Não há uma um sistema único no mundo. Nos EUA têm uma abordagem que se baseia na utilização justa e depois deixam muitas das decisões para os tribunais porque são um país muito mais baseado em litigância. No Japão, por exemplo, são muito permissivos. Tudo tudo pode ser utilizado para treinar estes modelos. Na Europa, a Diretiva sobre o mercado interno e direitos de autor no artigo 4º diz claramente que estes trabalhos são utilizados, mas é possível fazer um opt out.
Por isso a lei já nos dá essa solução. É necessário agora tomar passos para criar um sistema a nível europeu que possa assegurar estes dois interesses e que possam ser complementares. A Agência da União Europeia da Propriedade Intelectual, que é aquela que eu dirijo, está envolvida com a Comissão Europeia no desenvolvimento de estudos nesta área e lançámos um estudo exatamente sobre este tema e a proposta já está no Parlamento, que indica que a Agência da União Europeia poderia ser a agência que faz a gestão de um futuro sistema.
Como é que essa fiscalização pode ser feita?
Nós temos na Europa o Observatório Europeu sobre Infrações dos Direitos da Propriedade Intelectual, que é coordenado pela agência. Portanto, todas as polícias económicas dos países da União Europeia, as alfândegas, se juntam para discutir quais são os passos a tomar nesta área. Se no direito de auto com a Inteligência Artificial, criarmos este sistema de opt out, isto passa a ser parte do trabalho destas organizações de polícia e de alfândegas e pode ser coordenado pelo IP. Portanto, é algo que hoje os criadores não têm, não conheciam, mas poderiam beneficiar se criarmos.
E hoje é particularmente importante, com entrada de e-commerce chineses na Europa, temos a preocupação dos materiais mais tóxicos, do respeito pelo direitos humanos, mas há também muita contrafação.
Exatamente. E Propriedade Intelectual não pode é exatamente como a propriedade tangível, a nossa casa, o nosso carro e trata-se do mesmo tipo de propriedade, mas é intangível. Portanto, nós temos que cuidar dela como cuidamos dos nossos ativos tangíveis. Desse ponto de vista, é muito importante também que asseguramos um nível de transparência muito alto, isto é, quando algo é criado através de propriedade intelectual ou é baseado ou inspirado noutras obras.
É importante haver uma marca de água, um sinal e informação de que isto foi feito desta maneira. Isso cria, evidentemente, a recompensa, para o caso para haver uma recompensa. Aqueles que inicialmente criaram estas obras, mas também previne a contrafação e o desrespeito dos direitos pelos que estão a trabalhar nesta área. Portanto, há um conjunto de vantagens do ponto de vista prático, em que nós podemos dar uma contribuição não ao nível da lei, mas ao nível da criação dos mecanismos que podem ajudar os criadores. E esta economia digital cada vez é maior na Europa e no mundo, a poder também gerar benefícios para a nossa sociedade.
E em casos de plágio inadvertido, quando nós usamos a inteligência generativa e nos dá acesso a alguma coisa a que nós não devíamos ter acesso, como é que nos podemos proteger?
A primeira questão é saber o que está a acontecer. Lá está a transparência. Se não tivermos um mecanismo que nos dê esta informação, nós não vamos saber que, de facto isto é plágio ou foi baseado em algo que evidentemente não devia ter sido utilizado. A segunda é saber qual é a disponibilidade destes criadores que, evidentemente, desenvolveram as suas obras para colaborar em parcerias com os novos criadores, porque também há casos em que autores colaboram entre eles.
Nem tudo é plágio. Portanto, é importante criar esses mercados para conectar e ligar estes dois tipos de criadores num sistema específico. E depois, cada vez que tenhamos de facto plágio, poder atuar ao nível das entidades de enforcement e dos tribunais, que possam reconhecer que isto é um uso indevido de material que já foi desenvolvido.
Essa é outra razão pela qual a nível europeu faz sentido ter esta abordagem com ferramentas práticas que dêm uma resposta rápida aos criadores, mas também aos tribunais, neste caso, e às autoridades de polícia.
E agora, para terminar, vou voltar ao início da nossa conversa que afinal, nesta era, quem tem os direitos de uma obra gerada por AI: o programador, o utilizador ou a máquina?
E isso é uma boa questão. Também lhe vou dizer para agora voltarmos ao início, é muito importante assumirmos que não temos todas as respostas para todas as questões. Não temos. Se pensarmos assim, vamos cometer erros. Nós temos como começar por, e é isso que, por exemplo, aqui na WebSummit se faz, por colocar as perguntas correctas que queremos ver respondidas no futuro e ter uma discussão com diferentes perspetivas, mas também com visão e latitude entre diferentes setores para definir um caminho a seguir.
Hoje em dia, na Europa, não há legislação que diga exactamente quem é o criador, mas há critérios que se aplicam no caso de uma marca, um design, é preciso ser uma empresa ou um empresário, uma pessoa. A inteligência artificial também não pode ser vista como alguém ou algo que vai substituir o criador. A Inteligência Artificial é uma ferramenta que existe.
Um criador que nos assiste no trabalho diário que fazemos, mas não pode ser nunca o autor. Há evidentes temas de criatividade que podem ser afetados pelos excessivo uso de Inteligência Artificial, há questões de autoria - quem é o autor? quem é o dono? - que têm que ser também resolvidas. Na minha opinião, temos que ter uma abordagem sempre centrada no aspeto humano e sempre, sempre, a pessoa ou empresa é o responsável pela obra que foi criada ou pelo produto que foi criado.
E a Inteligência Artifical tem que ser vista como algo que nos ajuda, uma ferramenta. Nunca pode seracreditada como quem criou, porque criou com base em dados que existem, que foram gerados, evidentemente, pelo trabalho de muitas pessoas. Devemos ter uma abordagem equilibrada neste âmbito e não ser radicais, não ir para soluções radicais, como normalmente acontece em outras áreas do mundo.
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