Uma entrevista bem-disposta, cheia de risos, ironia e muita seriedade, feita na Academia das Ciências de Lisboa, onde passa as manhãs. Da janela do seu gabinete, a sala Abade Correa da Serra, vê-se o Liceu Passos Manuel, que frequentou e para onde ia a pé. Nunca se esqueceu de quando viu João de Barros a descer as escadas do liceu, de monóculo, como se usava naquele tempo, tão depressa que o deixou cair, espatifando-se no chão. "Ele nem parou, meteu a mão no colete e tirou outro, que colocou no olho".
Seis filhos – Teresa, a mais nova, acabou de se doutorar em Direito com 17 valores - 14 netos, 94 anos e uma genica e lucidez de fazer inveja. Enquanto conversamos há sempre uma chamada telefónica que tem de fazer ou atender. Desta vez, um convite para participar em mais um de mil eventos. Tapa o bocal do telemóvel e diz: "Está a ver? Querem que vá porque sim. O que não percebem é que eu já estou morto", ri. Mas não está. E é por aí que começa a entrevista.
A morte atormenta muitas pessoas, sobretudo a partir de uma certa idade. Que relação tem com a morte – ou com a vida?
É muito difícil explicar a atitude de cada pessoa diante da morte. Mas tem que ver, por um lado, com convicções pessoais que, talvez na maior parte das vezes, têm na base valores religiosos, uma fé, mais ou menos esclarecida, na evolução que nos espera. Outras vezes, e tenho essa experiência aqui com académicos das ciências, aceitam que é um fenómeno da natureza, que tem de acontecer. E isso tranquiliza-os. Depois há outros que encaram isso com mais susto, como diz a expressão “estamos à espera do grande talvez”.
No seu caso?
No meu caso é a família. Tenho uma família numerosa: seis filhos, 14 netos, o mais novo com 14 meses, e agora está a aumentar, porque as raparigas são bastantes, os namorados começam a aparecer. De vez em quando até penso que preciso de eleger uma junta de freguesia para organizar a família [risos]. Mas são muito solidários e a juventude tem sempre uma alegria à sua volta e isso ajuda a enfrentar a vida conforme ela vai passando. Por outro lado, há uma coisa que exige esforço - e esse esforço não depende só de nós, talvez a ajuda de Deus seja importante nisso - nunca parar a actividade, ter sempre interesses pelos quais nos batermos. E aos desgostos com a situação em que está o mundo, se não se contrapuser uma certa alegria, é mais difícil. Eu sou dos que encara a morte com tranquilidade.
E aos desgostos com a situação em que está o mundo, se não se contrapuser uma certa alegria, é mais difícil
Foi pai tarde. Isso conta a favor?
Não, não tem relação com isso. O que certamente tem relação é eu ter nascido numa aldeia muito pobre e numa família ao nível da aldeia. A solidariedade, nesse tempo, tinha como centro a conjugação do verbo com o sujeito nós, ao passo que nas grandes cidades e em países mais desenvolvidos a conjugação dominante é o eu. Falta-nos esse amparo. Na minha aldeia não havia dinheiro. Uma pessoa ia trabalhar três dias para outra e essa ficava a dever-lhe três dias de trabalho. Para fazer a lavoura, um trabalhava três dias, o outro ficava a dever cinco, porque havia diferença no trabalho. Acertavam as contas na época das colheitas.
Que memórias tem desse tempo?
Vivi bastante naquele meu Trás-os-Montes, porque os meus pais vieram para Lisboa cedo, mas as férias eram três meses e eu passava esse tempo na aldeia. Devo dizer-lhe que era uma aventura ir para lá, porque apanhava-se aqui o comboio em terceira classe por volta das 8h ou das 8h30 e chegava-se a casa do meu avô no outro dia às oito da noite, a cavalo num burro. A estação ficava longe da aldeia. E até se passava uma coisa curiosa: lembra-se de uns versos do Guerra Junqueiro, “os pobres dos pobres são pobrezinhos”? Na minha aldeia quem era pobre, tão pobre que tivesse de pedir, ia pedir fora, a outra aldeia, porque havia um certo pudor em fazê-lo dentro da sua aldeia. Tudo isso são valores que ficam. Casei tão tarde fundamentalmente porque à medida que a minha vida ia melhorando não me sentia com força para deixar o meu pai e a minha mãe. Queria que eles fossem recompensados pelo apoio, pelo amor dedicado. Foi isso. Eles próprios empenhavam-se em que eu arranjasse família [risos].
Era, para os seus pais, a melhor forma de os recompensar, talvez?
O meu pai era um homem muito tranquilo. A minha mãe tinha muita fé, era muito religiosa. Com a passagem dos anos começaram a sentir necessidade de ir para a aldeia. Aí tornou-se necessário organizar a vida de maneira a que os sentimentos de toda a gente fossem satisfeitos. Eles foram os dois para a aldeia e isso explica que eu tenha casado tão tarde. Mas, para perceber esses sentimentos que hoje consigo literariamente estar a explicar – mal - o único avô que conheci foi o pai da minha mãe. Tinha dois filhos que foram para o Brasil. Era a emigração, “esta terra que é um cais de embarque”... Teve oito filhos e enterrou cinco, sobretudo por causa da tuberculose. Ele, com os poucos recursos que tinha, embora vivesse melhor do que a família do meu pai, não tinha mais netos e vinha a Lisboa ver o neto, primeiro, e depois o neto e a neta. Essa solidariedade explica muita coisa. E a heroicidade do meu pai e da minha mãe, que acho espantosa. Estamos no séc. XIX: como é que um homem que vai para Lisboa para a Polícia de Segurança Pública e acaba no porto de Lisboa e uma mulher que trabalhava imenso para fora, trabalhos de costura e assim, decidiram que os dois filhos tinham de ter um curso superior? E conseguiram. A minha irmã é médica - é mais nova que eu e já usa bengala e eu ainda não [risos]. Eu tive mais filhos, tenho muitos netos, a solidariedade mantém-se. É um velho mundo: nós. Penso que é uma das coisas sérias da nossa situação social e das dificuldades com que estamos neste momento é que a conjugação do verbo com o sujeito eu está a dominar.
Porquê, se todos parecem saber que é a receita errada, que não é uma palavra feliz?
Porque o mundo teve uma evolução diferente, as interdependências são muito grandes e as influências também variam de qualidade e de intensidade. Há palavras que se mantêm, mas o conteúdo mudou. Ainda tive de aprender que a fronteira é sagrada, que está regada pelo sangue dos heróis. Que o patriotismo é fundamental. Depois havia os costumes, os hábitos e os valores que vinham da qualidade católica da grande maioria da população. Foi este o mundo em que nasci. Além disso, heróis do mar, tínhamos um grande passado. A pessoa tinha a sua nacionalidade como identificação fantástica, até os que emigravam iam agarrados à terra. Hoje continua a falar-se na fronteira, mas com livre circulação. A nacionalidade é múltipla. Havia a soberania, a palavra continua, mas varia o conteúdo. A hierarquia das potências media-se pela força militar. Neste momento não. Todos dizem que têm soberania, mas uns têm supremacia militar, científica, cultural e financeira, outros não. De resto, na própria Europa se está a verificar isso. É uma unidade, mas sabemos todos que a diferença entre ricos e pobres está a aumentar. A mudança de valores - mantendo a semântica mas mudando o conteúdo das palavras - está a ser rapidíssima.
Assisti, como costumo dizer, a duas quedas do mundo ( ...) tive de visitar todas as nossas colónias de África e percebi que uma coisa é o que dizem as leis outra é o que se faz.
Isso acontece também porque a mesma palavra tem significados diferentes, dependendo de quem usa?
Assisti, como costumo dizer, a duas quedas do mundo. A primeira foi quando comecei a ter capacidade para me encarregarem de fazer estudos: tive de visitar todas as nossas colónias de África e percebi que uma coisa é o que dizem as leis outra é o que se faz. Depois quando fui delegado nas Nações Unidas: a carta da ONU foi escrita exclusivamente por ocidentais, que mandavam no resto do mundo, a que chamavam terceiro mundo. Por exemplo, um dia um responsável não ocidental pede a palavra e fala livremente ao mundo pela primeira vez na história da humanidade. Mas de acordo com a sua cultura. É preciso olhar para esta multiplicidade sem a superioridade colonial. É uma mudança radical no mundo. E é uma graça de Deus que a consigamos acompanhar com boa cara. Isso influenciou muito a minha maneira de olhar para o mundo, tão diferente de Grijó, Macedo de Cavaleiros. Penso que os objectivos frustrados, e que estavam na grandeza dos estadistas que fizeram as Nações Unidas, são talvez redutíveis a isto: primeiro lugar, substituir a tolerância pelo respeito. Segundo, substituir os conflitos violentos pelo diálogo. Cada um deve ceder o necessário para que o essencial seja salvaguardado. Isto é válido até para os governos internos. Se são um órgão, há-de haver alguma coisa comum. E isto é uma exigência.
Falou na grandeza dos estadistas. Ainda os temos, existem líderes?
Não. O que está a acontecer é que a ordem que esses estadistas sonharam, e para os quais não vejo sucessores, porque não vejo estadistas com a dimensão que encontrei quando era jovem, está a desaparecer. Na carta da Nações Unidas, o último projecto para entender e governar o mundo a que chegámos, há dois princípios fundamentais que não estão escritos, mas que são as premissas da carta: o mundo único e a casa comum dos homens. O mundo único significa que não pode haver guerras. A casa comum dos homens significa que a paz e a cooperação são as bases do desenvolvimento sustentado.
No entanto, o mundo está em guera e cada vez mais dividido...
Alguns analistas julgam a situação actual dizendo: guerra em toda a parte. E casos pavorosos, não apenas o terrorismo. Do Cabo ao Cairo, que tanta importância tem na história portuguesa, há umas centenas de milhares de crianças em combate. Quem lhes fornece as armas são os grandes países que têm complexos militares industriais muito desenvolvidos. E não é nenhum exagero poético dizer que o equipamento que sustenta estas atitudes, em valor, chegava para acabar com o problema das dívidas soberanas. No entanto, está a crescer a área dos deserdados. Chegámos a uma situação de tal complexidade que me ocorre algumas vezes usar a expressão “falta de confiança na nossa capacidade de prever”, porque acontece sempre outra coisa. Por isso insisto em que o imprevisível está à espera de uma oportunidade.
Tenho impressão que a Alemanha ainda não sabe se quer uma Alemanha europeia se quer uma Europa alemã.
Soluções?
É necessário criar ânimo, solidariedade. E em Portugal, apesar de tudo, não temos reacções de cólera e violência, embora sofrendo as circunstâncias que nos rodeiam. Portugal precisou sempre de apoio externo – fez alianças, acabaram os impérios e veio a União Europeia. Mas o país sofre as consequências das decisões e factos em que não participa. É preciso olhar para o futuro: a União Europeia não tem conselho estratégico. Tenho impressão que a Alemanha ainda não sabe se quer uma Alemanha europeia se quer uma Europa alemã. A falta de conselho estratégico faz com que não se encontre a harmonia necessária para que a unidade se fortaleça. E a crise europeia vem aí. Um exemplo é esta situação angustiante das migrações e do Mediterrâneo transformado em cemitério, com alguns países europeus a porem muito em evidência o conflito entre meios humanitários e segurança, que levou a senhora – felizmente é uma senhora [Federica Mogherini] - responsável pelas relações externas e segurança da União Europeia [alta representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança] a declarar em lágrimas que precisamos de um exército. Mas andamos com preocupações financeiras e com algum neo-riquismo a discutir décimas. Não reparámos que, tendo a Europa um programa de segurança e defesa comum, ninguém discute que o Brexit leva o maior exército europeu embora. O problema das décimas, se calhar, até vai dar nome à época em que vivemos.
O Reino Unido sai da União Europeia mas mantém-se na NATO...
A necessidade de reformulação da NATO está em cima da mesa, uma questão posta pelo presidente dos Estados Unidos. Ele diz que quem está na NATO tem de pagar.
Os EUA já diziam isso antes da eleição de Donald Trump, que não estavam dispostos a pagar pela segurança de todos.
Sim, podem não estar dispostos a pagar, mas há uma certa diferença entre quem pode e a segurança. Porque pode estar num país sem recursos para pagar a defesa e isso implica falta de segurança para todos os envolvidos, países vizinhos, não só para aquele país directamente. Portanto, não se pode com leviandade deixar de considerar a questão da segurança e do que isso custa. Os Estados Unidos têm direito de pedir o que quiserem e é normal que o façam, mas não sei se Portugal está em condições de pagar - e não tem pago - a fatia total que lhe cabe. Também já vi os EUA exercerem um ponto de vista diferentemente.
O que quer dizer?
Fui algumas vezes a reuniões da Unesco, um organismo que acho fundamental - identifica, defende e assegura o património imaterial da humanidade. Nessa altura tínhamos acabado com o regime colonial e começou a fazer-se a diferença entre os países do Norte e os países do Sul. O secretário da Unesco, que era então presidente do Senegal, pôs em evidência um problema: conhecíamos o mundo através dos meios de informação, só que os meios de informaçáo eram todos do Norte, ou seja, o Sul, pobre, de antigas colónias, não tinha tradução de imagem. E ele queria um regime de informação em que este equilíbrio pudesse ser constituído. Os Estados Unidos mandaram a embaixadora, vestida com uma linda capeline, com esta mensagem: os EUA não podem estar numa organização em que quem paga não manda e quem manda não paga. E deixaram de pagar. Também não é difícil encontrar situações em que os EUA atrasaram contribuições para influenciar as decisões. Mas quando Putin – que há pouco fez um discurso preocupante a dizer que está inquieto com a guerra de valores - começou a alargar a sua influência, não conseguiram resistir de forma eficaz.
Até à Segunda Guerra Mundial tivemos um intervalo, houve uma certa esperança, mas foram morrendo os homens a meu ver tocados de santidade, que esqueceram as destruições, não quiseram indemnizações, quiseram a paz.
Putin, tão preocupado que assinou uma lei que permite que os homens voltem a bater nas mulheres e nos pais...
Quando oiço esta gente falar em valores fico preocupado. É preciso recordar que depois da Primeira Guerra Mundial a Europa teve de modificar a sua estrutura e desapareceram o império alemão, o Império Austro-Húngaro, o império russo... Quem exigiu isso foram os Estados Unidos e a ideia de que cada nação devia ter um Estado. Só que, esqueceu o Lord Acton, em regra é o Estado que cria a nação. Até à Segunda Guerra Mundial tivemos um intervalo, houve uma certa esperança, mas foram morrendo os homens a meu ver tocados de santidade, que esqueceram as destruições, não quiseram indemnizações, quiseram a paz. Perante as dificuldades na Europa, às vezes serve de exemplo aquele à-vontade do ministro das Finanças da Alemanha [Wolfgang Schäuble], que julga que tem uma autoridade geral... Há um conflito nos países entre os tratados e a memória. Ou seja, a meu ver há dois fenómenos novos: a memória em relação ao que foram os grandes países empurra-os para ignorarem as suas obrigações internacionais – daí a resposta do americano sobre se os EUA cumprem sempre os tratados: «Depende». Por outro lado, o esquecimento de que a circunstância faz com que nos esqueçamos de algumas coisas: Portugal, por exemplo, sempre teve apoio externo.
Como é que se pode gerir isso?
Quando caíu o Muro de Berlim a Europa alargou-se. Mas ninguém conhece qualquer estudo prévio sobre a governabilidade do alargamento ou o ritmo a que este devia ser feito. Também não se conhece nenhum estudo sobre fronteiras amigas. O alargamento foi até à Ucrânia, esquecendo-se que foi ali que começou a Rússia. Penso que o senhor Putin se lembrou que, quando os turcos invadiram a Europa, a Igreja Ortodoxa russa fez uma declaração: a primeira Roma caiu, a segunda Roma caiu, a terceira Roma não cairá nunca. Há três Putins, foi eleito três vezes: na primeira e na segunda vez declarou-se inclinado para o ocidente, um dos problemas era a China. Na terceira vez, estávamos a ver a Ucrânia na Europa. Ele fez um esforço e disse: a minha fronteira de interesses é superior à fronteira física - julgo que terá ido à missa a seguir. Este problema de a memória sobreviver para além dos tratados verifica-se com outros países. É provável que o ministro da Finanças alemão, esse pregador em relação às deficiências dos outros, se lembre que a Alemanha era um império.
Este problema de a memória sobreviver para além dos tratados verifica-se com outros países.
São traumas?
São. E até esta questão da Inglaterra me lembrou que a senhora Thatcher quis rivalizar com Maquiavel. Ela dizia que os ingleses não deviam preocupar-se com a superioridade dos Estados Unidos porque o que era importante era manter a superioridade anglo-saxónica. A memória. Isto é mais um factor que dificulta que as novas formas se consolidem, a tal hesitação da Europa, se vai ser federação, se vai ser união, se vai ser associação. A importância da memória é tal que os Estados Unidos da América se chamam união e são uma federação. Tiveram uma guerra civil terrível para serem federação. Mas deixaram ficar o nome, que já não corresponde à realidade. O inverso é verdade noutros lugares. Isso é um dos motivos da incerteza em que estamos: a União Europeia, que é o que nos interessa neste momento, esquece-se que não existe sem circunstância e, portanto, vai decidindo como se não tivesse factores externos. Esta circunstância reflecte-se nos países, em Portugal também.
É só a UE que vacila ou também outras organizações mundiais estão a apagar-se?
Nas Nações Unidas existe um organismo chamado Conselho Económico e Social. Havendo uma crise financeira e económica mundial, já o viu reunir-se? Nem vi tirarem da gaveta um projecto antigo de transformar o Conselho Económico e Social em Conselho de Segurança Económica e Social. Mas Portugal também pertence à Organização Internacional do Trabalho, que prestou serviços enormes no passado. Temos uma grande crise de emprego no mundo e há factores que vão fazer aumentar isso - já viu convocar essa organização? Portugal é o único país dos cinco impérios euromundistas que conseguiu a CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa]. Embora a ideia fosse nossa, quem a fez foi o Brasil. Saímos de Macau e deixámos uma escola de português. Neste momento, salvo erro, há 15 cursos universitários de português na China.
Mas sabemos utilizar o que temos a nosso favor?
Temos o conhecimento da expansão da plataforma continental e a única coisa que ocorreu ao presidente da Comissão Europeia [Durão Barroso] há poucos anos foi que as Nações Unidas reconhecessem o mar europeu. Continua a haver a plataforma continental? O que vai acontecer? Todavia não faltam estudos sobre a sua importância, feitos pela Universidade dos Açores, de Aveiro, do Algarve, serviços de Marinha. Há os estudos, a inquietação, mas e acção? Não temos decisões e a ajuda que nos veio do presidente da Comissão Europeia foi a ideia de um mar europeu. Numa altura fui encarregado de fazer um discurso de homenagem e acho que cumpri todas as regras de cortesia, mas acrescentei um parágrafo: já agora, o senhor tem a ideia de fazer um mar europeu. A minha pergunta é: onde é que isso deixa a nossa pretensão de extensão da plataforma continental? Desaparece.
Não há organizações sem circunstância, mas também não há países sem circunstância. E compatibilizar isso?
Por exemplo, todos os países da CPLP são marítimos, todos têm plataforma continental a defender. Estamos a aproximar-nos de uma época em que a segurança do Atlântico Sul começa a ser importante, pela criminalidade, pelo transporte de drogas. A CPLP é uma divisão do Norte, é a NATO do Sul. Há também a questão dos transportes marítimos, que estão a aumentar e continuam a ser mais baratos que outros transportes. Nenhum dos países da CPLP tem uma esquadra comercial. Então e todos juntos não podem conversar? Talvez pudessem. As circunstâncias tem de ser estudadas.
Populismo é uma saudade de outros tempos. Essa circunstância é que explica os factos que estão a acontecer.
Falamos muito e agimos pouco?
Fui convidado para fazer um discurso na universidade e acabei por ler um texto que se chama “Quando?”, um sermão espantoso do padre António Vieira que diz isto: Antigamente os ministros estavam às portas das cidades, agora estão as cidades às portas dos ministros. Para resolver os problemas, quando? A segurança, quando? A pobreza, quando? Este é um momento muito difícil. E agravou-se com a história das migrações. O conflito entre segurança e deveres humanitários. Há tratados que obrigam, mas os factos trazem à memória a antiga sobrevivência. Mas há as circunstâncias. Genericamente, é a isso, com variadíssimas formas, que se chama hoje populismo. Populismo é uma saudade de outros tempos. Essa circunstância é que explica os factos que estão a acontecer.
A memória e o sentimento de hoje não pertencer a lado nenhum...
Um sentimento a que chamo inidentidade. Precisamos, como sociedade civil, de ter confiança em quem governa e isso foi um grande avanço do Ocidente, ter inventado um estado em que tem de haver quem governe, um sistema jurídico justo e respeitado. E a objectividade vem da adesão do povo à governança.
Que é cada vez menor.
Neste momento o sinal mais claro do que se está a passar são as abstenções nas eleições. Há certamente muitas razões, mas há duas fundamentais. Uma é a inidentidade, porque quando vai votar vota em partidos, mas não sabe quem são os deputados. Conhece alguns, mas a escolha é-lhe oferecida sem lhe perguntarem nada. Isso quer dizer que vai votar na inidentidade, vota no grupo. Outro motivo é a complexidade da governação interdependente mundial que fez crescer um fenómeno: é necessário que as pessoas sejam cada vez mais qualificadas e são necessárias menos pessoas. Mas a complexidade da gestão é tal, que quem é expedido para o governo, fatalmente em grande parte é a inidentidade, que tem de articular a sua burocracia com a burocracia dos organismos internacionais de que também passa a depender. Lá vêm os eurocratas. Como isso é uma multidão que exerce o poder que é delegado, dentro de pouco tempo é o delegado que manda, não é o delegante. De modo que deixa de saber quem realmente decide. E depois as populações vêem que as promessas não estão a ser cumpridas e aumenta o desinteresse por intervir nas eleições, além de não saberem quem é que efectivamente tem poder. E começam a lamentar-se que antigamente sabiam, vem a memória chamar pelas pequenas pátrias.
Acontece o Brexit, o referendo pela independência na Catalunha, agravam-se as coisas em Itália...
Exactamente, acontece o que se está a verificar. Neste momento temos a situação a agravar-se em Espanha, em Itália, em França e em Inglaterra. Ainda por cima é na Escócia, que quer a independência e que preferia manter-se na UE, que estão os principais recursos militares, o que é um problema. Uma vez mais, o imprevisível está à espera de uma oportunidade. É terrível isto.
Os casos de governantes femininos com capacidade e experiência que já temos são extraordinários. A pouco e pouco isso vai permitindo que elas ponham um sentimento que é muito mais próximo do verbo nós do que do verbo eu. Tudo isto é uma esperança.
Quando há pouco falou na política de segurança afirmou que «felizmente» a alta representante da UE é uma mulher. Porquê?
Há um problema que é o facto de a atitude geral em relação às mulheres ter desenvolvido um sentimento de igualdade. Dou-lhe um exemplo: a declaração de direitos de Filadélfia – a do Jefferson, amigo deste que está aqui atrás [retrato do Abade Correa da Serra] - dizia que todos os homens nascem iguais e com igual direito à felicidade. Mas os nativos não, mas os escravos não, mas as mulheres não, mas os trabalhadores não. Apagar estes 'nãos' tem sido um trabalhão e tem levado o seu tempo. Os casos de governantes femininos com capacidade e experiência que já temos são extraordinários. A pouco e pouco isso vai permitindo que elas ponham um sentimento que é muito mais próximo do verbo nós do que do verbo eu. Tudo isto é uma esperança.
A Le Pen é atacada por várias razões, mas no fundo o que ela faz é pôr a memória à frente dos seus actos.
Esperança para mulheres como Marine Le Pen.
A Le Pen é atacada por várias razões, mas no fundo o que ela faz é pôr a memória à frente dos seus actos. O que diz é: a França está a passar mal, mas antigamente passava bem. Tal como calculo que o novo presidente dos Estados Unidos tem à sua volta gente com memória – ele não sei o que é que tem. Estou a ler um livro de um autor brasileiro sobre a formação dos Estados Unidos e é inquietante, porque chama muito à evidência que na base da formação dos EUA estão actos de violência. Penso que a conversa sobre o muro fronteiriço EUA-México vai aumentar o antiamericanismo, o que é péssimo para os ocidentais. Outra mudança que Trump fez, pôr a embaixada dos EUA em Jerusalém, aumenta a falta de esperança dos palestinianos de terem uma nação independente, como as Nações Unidas decretaram.
Esse decreto é da sua altura?
Houve um projecto, que eu sustentava na altura – e não é para dizer que eu fazia lá muita falta, que não fazia nenhuma –, que defendia que Jerusalém fosse uma cidade livre, como já tivemos no passado. Tânger foi uma cidade livre e o último governador foi um almirante português, que ainda conheci, já velhinho. Uma cidade livre permitiria que as religiões diferentes no desenvolvimento mas convergentes na fé mantivessem a paz para toda a gente. Imagino que por lá a embaixada não vai ajudar nada ao sentimento da paz.
Falou no livro que está a ler. Que livros gosta de ler?
Leio menos agora que sei que o tempo de vida que tenho é pouco e naturalmente vou limitando as coisas. Mas sempre gostei muito de ler poesia, porque o meu avô, o tal que tinha estado no Brasil, sabia Guerra Junqueiro de cor, sabia tudo de João de Deus, de Antero de Quental, de maneira que íamos aprendendo. Ainda fiquei com um caixotinho pequenino de livros dele.
Tem poetas preferidos?
Neste momento são os mesmos da infância. Esse período continua a ser para mim a memória. Embora goste muito de Fernando Pessoa, como toda a gente, gosto imenso de Sophia de Mello Breyner – lembro-me de uma vez num tribunal plenário (ainda fiz advocacia), era ela uma jovem, quando acabou o seu depoimento e era para sair levantaram-se todos. Uma coisa de respeito. E depois conheci-a já velhinha, mais acabada. Mantenho interesse por ela. Gostei sempre muito de Alexandre O'Neill, também. E dos brasileiros, vivi um tempo no Brasil e a poesia brasileira, ficamos subordinados a ela. Neste momento, olhando para o que está em cima desta mesa, são tudo livros relativos à desgraça mundial em que estamos. Hoje passo muito tempo em conferências, convidam-me para actividades, para ir aos sítios, e de vez em quando recebo umas homenagens. Dei a minha biblioteca a Bragança, já lá está quase metade e depois de eu morrer irá o resto. Com licença dos filhos, todos assinaram e foram lá assistir à cerimónia.
Deixa testamento?
Não. Deixo umas pequenas indicações, mas por saudades. Por exemplo, o meu último neto tem 14 meses. Coitadinho, apanhou uma infecção de pulmões, teve de andar com oxigénio... Já não vai saber quem era o avô. Recebi uma condecoração de Timor e estava com uma infecção terrível, ainda estou a sofrer os efeitos. E o meu médico, de quem gosto muito, quando me deixou levantar disse-me: "Ó xôtor, daqui para cima [pescoço] está óptimo, mas para baixo é preciso mais cautela". Só que o presidente da República de Timor convidou-me para ir lá – o único sítio português antigo onde nunca fui. Agradeci mas recusei, dizendo que o meu médico não concedia. Respondeu que levasse uma enfermeira. Tive de explicar que o médico não estava preocupado com a enfermeira, era mesmo comigo. Sabe o que fez, um presidente que nem nunca vi? Mandou cá o Ramos Horta trazer-me a condecoração, que é “Pelos serviços prestados a Timor, aos direitos do homem e à humanidade”. Mandei fazer uma moldura e ficou para o meu neto.
Como se chama esse neto?
Adriano. É o primeiro que se chama Adriano. Guarda-se sempre isso para o filho mais velho, mas ele só teve raparigas. Também já lhe dei o meu relógio. São assim umas coisas, de resto nada. Também não tenho nenhuma fortuna.
E o testamento vital, fez?
Não faço.
Porquê?
É Deus que trata disso.
Sobre convites, sei que vai participar num debate acerca da democracia cristã, com Manuel Monteiro e José Ribeiro e Castro, no dia 25 de Março, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Pode falar-me nisso?
Sim. Até achei piada o Manuel Monteiro ter-me pedido isso, porque ele é que chamou Partido Popular ao CDS. Mas é preciso fazer-lhe justiça, porque era o presidente da Juventude Centrista e era muito novo, andou atrás dos velhos, digamos assim, para serem presidentes do partido e ninguém quis. Acabou por ser ele. O problema deles é que os fundadores da União Europeia eram todos líderes da democracia cristã. Eu fui presidente do Centro Europeu de Informação e Documentação, anterior ao 25 de Abril. Ainda existe o instituto e sou membro, uma coisinha na Suíça, já sem actividade. Fizeram-se uma série de congressos, a começar na década de 20, em que estiveram todos os líderes da democracia cristã da guerra, até Churchill lá esteve. Neste momento a única democrata cristã que existe é a senhora Merkel.
A democracia cristã desapareceu na Europa. E agora?
Acontece que os católicos praticantes diminuíram muitíssimo. O que vou escrever tem a ver com o papa Francisco. Neste momento, no fundo a Europa está a desfazer-se - há um livro de um cardeal preto, que nasceu numa tribo, foi circuncidado “Ou Deus ou Nada” - e um missionário levou-o. Já falam nele para papa. E depois ficamos parvos como é que aquele homem sabe idiche, a língua judaica, grego, latim, sabe tudo.
Como é que um homem da ciência consegue não por Deus em causa?
Isso não é bem assim. Depende de quem é o homem e da ciência.
Nunca teve uma crise de fé?
Eu não. Porque tive uma educação de fé sobretudo devido à minha mãe. Porque nós vivíamos em Campolide e em Campolide não havia igreja. A mais próxima era São Sebastião da Pedreira. E, dadas as condições em que vivíamos, ir a pé a São Sebastião da Pedreira e fazer os trabalhos que era preciso fazer não era sempre fácil. Ainda hoje não adormeço sem as orações que a minha mãe me ensinou.
O que reza?
Sempre o padre-nosso, a ave-Maria e o Salve Rainha [emociona-se]. Sempre. Foi o que me ensinou primeiro. E quando acordo às vezes de noite, instintivamente, estou a rezar isso. Mas é da ligação com a mãe. Ficou. Felizmente é uma companhia permanente. Gosto muito do papa Francisco porque usa às vezes esta expressão: as vozes encantatórias. Que os estadistas do fim da guerra tiveram mas hoje não temos. E os debates que vê hoje descem ao insulto com uma facilidade enorme. E houve imensos homens, sobretudo os que conheci quando fui presidente do Centro Europeu, que eram superiores.
Em Portugal, a revolução foi feita por sujeitos que nunca andaram em coisas destas. (...) Aquela ala liberal, e tudo o mais, onde é que eles andaram? Estiveram em África na altura da guerra? Não estiveram. Estiveram nas Nações Unidas? Não estiveram.
Hoje em dia ainda existem esses organismos?
Ainda há o Instituto de Estudos Políticos do Liechtenstein, que também era democrata cristão. E a mobília foi-lhe oferecida pelo almirante Sarmento Rodrigues. Em Portugal a revolução foi feita por sujeitos que nunca andaram em coisas destas. Conversavam, faziam discursos. Aquela ala liberal, e tudo o mais, onde é que eles andaram? Estiveram em África na altura da guerra? Não estiveram. Estiveram nas Nações Unidas? Não estiveram. E portanto estas coisas são ignoradas. Ainda dou aulas na Católica e digo-lhes sempre: os senhores têm de ler isto para saberem. Este papa tem um interesse enorme. Foram buscá-lo ao fim do mundo. Há tempos deu uma entrevista – o jornalista era judeu e amigo dele – e, a propósito do carro em que anda, perguntavam-lhe por que tinha tirado as protecções. E ele respondeu: "Como é que eu dentro de uma lata de sardinhas posso lidar com o povo? Ah, mas matam-no. E com a idade que tenho o que é que perco?"
Sobre as memórias e os traumas. Quais são os traumas portugueses – os que se notam na nossa governação, nos nossos governos?
Portugal tem este problema: este cardeal fala de Portugal terreno dizendo nesta terra que nos calhou ou onde encalhámos. De facto Portugal precisou sempre da expansão para aumentar o poder e a dimensão. Outro dia traduziram um livro, “Império”. E começa assim: “Em Lisboa há uma praça dedicada à memória de Afonso de Albuquerque e Vasco da Gama e onde existe uma loja que vende os chamados pastéis de Belém. É o que resta do império.” Eu tenho a colecção das cartas publicadas, que foi o filho dele que publicou. A última carta é escrita de Mombaça, no barco, e diz que a fortaleza é inexpugnável. “Para o futuro se tratarmos esta gente com justiça seremos considerados guerreiros, se tratarmos com injustiça seremos uns salteadores”. E ele, como militar, era duro como o diabo. Depois comecei a pensar no património que ele tinha, na Casa dos Bicos - e ao que ela foi parar... Sabe qual era o património de João de Castro? Uns pinheiros em Sintra, era lá a casa dele. Era do Estado, agora é de um alemão. A história de Portugal está a ir embora.
Dá-se conta de muita coisa que fez, nos lugares que ocupou, e que está a desaparecer ou já desapareceu?
Havia a Academia Internacional da Cultura Portuguesa. Não andávamos a dormir, o governo talvez andasse, mas nós não. Fizemos a Associação das Comunidades Portuguesas no Estrangeiro. Não havia sócios individuais, eram associações de portugueses no estrangeiro, porque as associações duram. A última reunião dessa organização foi num barco fretado para o efeito, partindo de Lourenço Marques na rota de Vasco da Gama, e acabou na ilha de Moçambique. E aí, onde estavam todos representados, erguemos pela primeira vez na história a bandeira de Portugal e a bandeira do Brasil, "um passo para a criação de uma pátria maior", como afirmou então o ministro da Educação. Veja bem a importância. Nasceu uma criança, foi baptizada lá e chamaram-lhe homem novo. Está lá um rochedo onde se afundou uma das caravelas de Vasco da Gama e havia uma banquinho, um bocado de pedra, onde Sarmento Rodrigues, governador-geral, se sentava a pensar. As mulheres da ilha usavam um creme feito à base de raízes com que andavam o dia todo para à noite ficarem com a pele agradável para os maridos. E usavam as mesmas insígnias que eles, era giríssimo. Isto foi 1966, já eu tinha sido ministro - queriam fazer outra política muito bem, mas comigo não. Visitei todas as colónias portuguesas no estrangeiro: estive em Singapura, em França, no Havai, em Nova Inglaterra. Com cenas giríssimas.
Conte uma dessas cenas, pode ser?
Por exemplo, fui ao Havai, uma terra que me fascina, e ia num cargo oficial, era presidente da Sociedade de Geografia. À chegada havia uma comissão de senhoras, já respeitáveis, que se chamava Comissão de Recepção ao Senhor Professor Adriano Moreira Presidente da Sociedade de Geografia, e havia um grupo de miúdas de perder a cabeça – que eu ainda tinha idade para perder a cabeça -, que faziam bailado e me puseram uma data de flores ao pescoço. Quando isto acabou, as senhoras levaram-me ao hotel e disseram-me: amanhã, se estiver de acordo, vai tomar o pequeno-almoço com o português mais velho da terra. E, se estivesse de acordo, ia pôr no cemitério, na campa dos portugueses que morreram a defender os Estados Unidos na Guerra, as flores que me tinham oferecido. E lá fui ao pequeno-almoço. Quando cheguei havia uma mesa cheia de tudo e eu disse ao anfitrião: Peço desculpa mas não vou comer nada disto, é que eu costumo beber apenas uma xícara de chá ao pequeno-almoço. Responde ele: «Olhe, não vai longe.» [risos] Sai dali para o cemitério. A rua chamava-se Nossa Senhora de Fátima.
Que idade tinha o anfitrião, o português mais velho da terra?
Tinha 90 anos.
E tenho uma teoria: há pessoas inteligentes que não são gulosas. Todos os gulosos são inteligentes.
Continua a alimentar-se da mesma maneira, hoje?
Agora o meu pequeno-almoço é uma xícara de leite com um bocadinho de café e uma torrada. E uma colher de chá de mel. E tenho uma teoria: há pessoas inteligentes que não são gulosas. Todos os gulosos são inteligentes. Depois almoço razoavelmente e como muito pouco ao jantar. Gosto muito de comidas transmontanas, de alheiras - e de vez em quando mandam-mas.
O aldeão também foi longe, apesar da comida.
Também foi. No fim veio o mayor, deu-me uma coisa com o emblema da cidade, de madeira, e a chave da cidade, e depois pediu-me para fazer um discurso em português. No fim a presidente da comissão veio ao pé de mim e disse: "Senhor professor, não percebi nada do que disse, mas a língua é linda." E as miúdas também eram. Não foi justo, não estive lá o tempo suficiente. [risos] Mas tudo isto acabou. A vida é tão engraçada que uma vez fui a Nova Lisboa [actual Huambo] numa cerimónia oficial e vem uma menina trazer-me um ramo de flores. Devia ter uns 14 anos, a miúda. E disse-me umas palavras. E eu disse-lhe: olha, agradeço-te muito e achei tão bonitas as palavras que disseste que por esse caminho chegas a ministra. Hoje é doutora em Economia, foi uma grande apoiante de Savimbi, não chegou a ministra, esteve presa e não transigiu em nada com o governo. Agora vive cá, vai muitas vezes a Angola e diz sempre que é angolana, apesar de branca. Casou segunda vez e eu fui padrinho.
Quem é essa miúda?
É a Fátima Roque, que foi mulher de Horácio Roque [Banif]. Era muito mais nova do que ele. É muito afectuosa comigo e chama-me sempre padrinho. Agora vai lançar um livro sobre a situação africana e pediu-me para escrever o prefácio. Já escrevi estas três páginas, mas ainda tenho de escrever mais umas coisas.
Continua a escrever à mão?
Sempre. Sou do tempo em que o primeiro avanço é a máquina de escrever. Tive umas duas ou três, nunca me habituei. Porque quando ia ler, olhava e não era o meu estilo. Quando vieram os computadores já os meus dedos estavam deformados. De vez em quando doem-me. As minhas netas todas sabem mexer nisso e de vez em quando lá estou atrapalhado com as maquinetas e elas, "ó avô, o avô não percebe nada disto". Mas a minha caligrafia não é das melhores.
Recentemente a sua filha Isabel, deputada, foi aos “Prós & Contras” discutir a procriação medicamente assistida e defender, por exemplo, as barrigas de aluguer. Viu?
Vi.
Fez uma cara de quem preferia não ter visto...
Não. Primeiro, tenho por ela um afecto imenso. Depois tenho sempre respeito pela liberdade de opiniões, de maneira que não me afecta nada que tenha ideias diferentes. Reconheço que ela tem talento, é inteligente, reconheço-lhe toda a liberdade, não afecta em nada a relação pai-filha. Se eu tiver uma dor de cabeça, ela vem a correr. No resto, eu sou democrata cristão.
A Isabel é a única com aquelas ideias no meio dos seis irmãos?
Creio que é a única que não é católica.
Argumentam, conversam sobre os assuntos?
Uns com os outros sim, à vontade.
Onde é que ela foi buscar aquelas ideias?
À vida, aos livros, a pessoas, professores... A gente sabe lá. Vai somando as coisas. Por isso o ter de ser respeitoso, a tolerância dá um ar de superioridade. Quando o sobrinho esteve doente, ela foi incansável.
No início desta conversa falou no visconde Seabra e na importância de cada um ceder o necessário para salvaguardar o interesse principal.
Sim. Veja o Parlamento, se é um, há de haver alguma coisa em que estejam de acordo. A ideia do nós.
Quais são os interesses que é preciso salvaguardar?
Eu penso que o fundamental está definido, como os direitos do homem. Mas nesta matéria não está tudo a ser cumprido, há a questão da dignidade humana. A dignidade de cada ser humano está demonstrada com o facto de cada ser humano ser um fenómeno único e que não se repetirá na história. Tenho o direito de me sentir importante. Já me perguntaram se não me arrependo de nada, arrependemo-nos sempre do que não fizemos – e de coisas que podíamos ter feito mais e melhor. Mas gosto, por exemplo, de ter acabado com o legionato, ter feito o código do trabalho, ter acabado com as culturas obrigatórias, ter acabado com o trabalho forçado.
É verdade que mandou reabrir o Tarrafal? O que se passou?
Essa história está mal contada. O que aconteceu foi que o primeiro trabalho que fiz como professor de investigação foi a pedido do Sarmento Rodrigues, que era ministro e me pediu para estudar a reforma prisional do Ultramar. Aliás, escrevi um livro e ganhei o prémio da Academia das Ciências, que dei à minha mãe para mandar reconstruir a capela da aldeia. Naquele tempo eram 80 contos, imenso dinheiro. Ainda há uns meses fui lá e convidaram-me para os 60 anos da reconstrução da capela. Fizeram um almoço ao ar livre, 200 pessoas. E queixaram-se de eu ter dado a minha biblioteca a Bragança. Respondi que é único sítio onde há ensino superior na região e a biblioteca não é para enfeitar. Mas já lá tenho uns 200 volumes para eles.
Voltando à história do Tarrafal...
O Sarmento Rodrigues saiu de ministro e deixou o Raúl Ventura, que fechou o Tarrafal. Depois aparece esse cavalheiro comunista [Domingos Abrantes], que está no Conselho de Estado e que foi companheiro do Cunhal, que foi quem disse que eu reabri o Tarrafal. Quando lhe perguntaram como era estar no Conselho de Estado respondeu que era uma chatice ter de estar sentado diante de um fascista que reabriu o Tarrafal. Lembro-me que uma jornalista me falou a esse propósito e respondi que o senhor tinha bom remédio, podia ficar de pé.
Mas se não reabriu o Tarrafal, de onde vem a história?
Na reforma que estabeleci ficou incluído que as penas devem ser proporcionais â cultura em que a pessoa vive. E o que era conveniente para nativos de África eram prisões agrícolas. Não era mau, melhor do que levar pancada. Quanto aos prisioneiros europeus, eram tão poucos, que não havia necessidade de os Estados estarem preocupados, tinham nas metrópoles onde os tribunais pudessem funcionar. Quando acabou a guerra, Lopes Alves disse que não podia deixar o ministério sem ir a Angola. Foi com uma equipa médica e fez um decreto a pedido do Estado Maior para poderem fazer uma cadeia em Cabo Verde a expensas de Angola, com pessoal de Angola. Quando eu fui ministro, o governador de Cabo Verde telefonou-me por causa do decreto a dizer que, se Angola é que mandava, ele não estava ali a fazer nada. E lá fiz uma portaria dando-lhe competência para intervir na construção da tal prisão. Nunca o fizeram.
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