Se muitos temem o fecho de portas e já sentem na pele a quebra de vendas, que se deverá prolongar a curto e médio prazo, outros mantêm o otimismo, como afirmam à Lusa.
A responsável pela Paraíso do Livro, Amélia Coelho, dá voz à revolta de muitos no setor quando vê outros espaços, não exclusivamente dedicados à venda de livros, que o estão a fazer, enquanto os livreiros “estão retidos”, como “prisioneiros”.
Amélia Coelho teme pelo futuro dos alfarrabistas, que são negócios “independentes sem arcaboiço para aguentar”, até porque se “já estava mau, com isto ainda pior”.
“Ainda há pouco soube de um colega em que o cliente queria um livro da montra. Disse-lhe ‘vá ter à esquina’, e foi vendê-lo à esquina. Depois deu a volta por outro lado. Parece que estamos a roubar”, descreve a responsável pelo Paraíso do Livro.
Na Rua José Falcão desde 2009, os dias de hoje são, diz, aqueles em que se trabalha de forma “completamente limitada”, com a faturação em baixo e parte da clientela habitual sem se habituar à venda ‘online’. “Nem dá para a renda”, conclui.
“Se ao longo dos anos não fosse poupada, não tinha dinheiro nem para comer. O Governo só pensou nele. (…) Ponho-me a pensar: se o dinheiro acaba… É desesperante. Para quem trabalha por conta própria, é desesperante”, lamenta, pedindo apoios e temendo pela continuidade da livraria, se o confinamento se prolongar muito mais.
A esperança numa reabertura para breve corre pelos corredores estreitos destes espaços, seja do Paraíso do Livro seja da Moreira da Costa, há mais de 70 anos instalada na rua do Avis.
Miguel Carneiro, a quinta geração ao leme do projeto, não esconde o desalento de ser esta uma das poucas vezes, em meses, em que abre as grades que escondem a livraria da cidade, para a reportagem da agência Lusa. Usa a ponta de um guarda-chuva para ‘desemperrar’ o lado direito.
No interior do pequeno espaço para clientes, que mal deixa imaginar o vasto armazém por debaixo, além do piso superior ‘atulhado’ de livros em estantes, Miguel explica que estiveram fechados nos primeiros 15 dias do confinamento, depois foram “catalogando algumas coisas”, mas “é uma tristeza estar aqui dentro”.
Uma encomenda “de uma quantidade enorme de livros, por uma quantia significativa”, por um único cliente e durante o primeiro confinamento, deu “fôlego financeiro para aguentar o primeiro e o segundo” períodos em que estiveram, e estão, fechados.
Com “as transformações que a cidade teve”, e com pouca gente na rua, o que Amélia Coelho do Paraíso dos Livros também lamenta, Miguel Carneiro teme que “as pessoas se desabituem a vir”, e vaticina mesmo que os alfarrabistas possam perder 10 a 20% da clientela.
A proprietária da Livraria Varadero, Paula Cântara, tem outro problema para manter, como puder, o estabelecimento a funcionar, mesmo que apenas no ciberespaço, a partir da rua da Boavista.
“Os apoios não chegam, não há qualquer ajuda. Tenho uma filha menor e tenho de estar em casa, o trabalho é exclusivamente ‘online’, e os meus pais é que vão à livraria para tratar das coisas necessárias, porque senão seria completamente impossível”, descreve.
Estes tempos, diz, têm sido bastante complicados e, sem “a possibilidade de venda ao postigo”, que sempre ‘apanhava’ algum cliente que passava na rua que liga a Praça da República à rotunda da Boavista, a Internet dá para “manter à tona, mas muito dificilmente”.
“Sem perspetiva de quando vão abrir”, além de não ver passar “quase ninguém na rua”, a estratégia da proprietária da Varadero é “manter [a livraria] enquanto for possível”, depois de 20 anos no mercado.
Também Paula Cântara acha que esta fase é “muito mais pesada” para os alfarrabistas, porque os livros novos “têm publicidade ou estão nos ‘tops'”, enquanto nestes espaços “o cliente gosta de andar a ver, descobrir coisas novas”.
O otimismo vai esmorecendo e o cenário “é realmente penoso” para os muitos alfarrabistas da baixa do Porto, com rendas altas, dificuldades que “se vão somando” e a economia sem reanimar, deixando um alerta: “Os senhorios nem sempre são pessoas de grande sensibilidade”.
Na Rua Formosa, a Livraria Lumière usou a montra para um protesto silencioso, quando, em tantos outros sítios da Baixa, ela está tapada pelas grades ou pelos estores descidos, ocultando literatura portuguesa, almanaques e outros destaques que chamem a atenção de quem passa.
Com vários bens alimentares na montra, “já que as livrarias não podem vender livros”, Cláudia Ribeiro, da Lumière, aludiu, como já tinha feito a Faz de Conto, em Coimbra, à possibilidade de se vender literatura em supermercados, grandes superfícies e noutros negócios, dos CTT a papelarias e lojas de tecnologia, após o decreto presidencial do estado de emergência e do confinamento regulado pelo Governo.
“Acho que as livrarias nunca deveriam ter encerrado, (…) porque acho o livro um bem essencial. (…) Protestei porque foi injusto, qualquer pessoa de bom senso acha que não foi justo”, considera, à Lusa, desabafando que as vendas “baixaram imenso” num tipo de negócio em que “poder entrar é fundamental pela parte humana”.
A duas ruas dali, na Dr. Alves da Veiga, fica a Livraria Manuel Ferreira, fundada em 1957, onde Herculano Ferreira descreve, à Lusa, uma habituação ao mercado digital que dura há uma década, que lhes permitiu não sentir tanto o impacto.
“Não consideramos que a circunstância da covid-19 tenha sido para nós particularmente prejudicial. Continuamos a vender ‘online’, como há muito tempo, e não sentimos o que muitos colegas poderão estar a sentir”, aponta.
O alfarrabista lembra ainda que há uma tendência para “encontrar o mau da fita”, e esse “é evidente que é a covid-19″, mas há outros problemas: um mercado “completamente desregulado”, a “concorrência desleal” pela Internet, com plataformas paralelas em que “ninguém paga impostos”, e um “esquecimento e falta de sensibilidade” para o livro, patente há décadas.
Mas há mais quem mantenha o otimismo, mesmo com quebras, como António Duarte, da Homem dos Livros, quanto “mais não seja, pela adaptação do ser humano”, afirma. “Isto não vai parar. É uma catástrofe, mas não é uma daquelas sem fim”, assegura.
A paixão pelos livros, a resistência e a confiança no avançar da vacinação e dos cuidados da população fazem-no ter esperança, até porque há no setor livreiro “uma certa resiliência”.
António Duarte deixou a construção civil na última crise e seguiu “a paixão”, para abrir o espaço dedicado ao livro usado, mas também ao vinil e à arte, na rua Mártires da Liberdade.
“Abri para continuar e não para desistir. Não é uma crise como esta que me vai desmotivar”, dispara, mantendo a perspetiva positiva, mesmo quando, há meses, uma inundação danificou parte do armazém, e houve obras durante várias semanas à porta do espaço.
Também a Livraria Térmita, que abriu em novembro de 2020, num antigo armazém de madeiras no Largo de Mompilher, garante que “vai continuar”, ou não tivesse aberto numa altura em que já previam um novo confinamento geral. “Ou abríamos, ou nunca abriríamos. Preferimos arriscar”, conta Hugo Brito.
Com pouco mais de 160 itens, entre livros e CDs, para venda na ‘página web’, até porque é preciso “mão de obra e tempo para colocar livros nas plataformas”, mesmo que façam também uso das redes sociais, a Térmita lamenta que não possa apresentar uma programação cultural como tinha planeado, de exposições a concertos.
“Não critico a venda de livros nas grandes superfícies. Também não critico a venda de fruta nas frutarias. Por isso não posso criticar a venda de livros nas livrarias. (…) Se um supermercado pode vender fruta e as frutarias estão abertas, porque é que as livrarias pequenas não podem estar abertas?”, questiona.
Ainda assim, reforça, a palavra de ordem é continuar. “Não somos facilmente demovidos das coisas”, assevera.
[Simão Freitas (texto), André Sá (vídeo) e Estela Silva (foto), da agência Lusa]
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