O gosto pela medicina e pela política surgiu cedo e simultaneamente, muito influenciado pelo seu próprio médico e pelas histórias fascinantes que o ouvia contar.
Esteve na fundação da JSD, encantado por Sá Carneiro, e, em 1985, quando o PS perdeu as eleições para o PSD por cerca de 500 mil votos, inscreveu-se no Partido Socialista, exactamente no mesmo dia que Francisco Assis. Garante que, como Sá Carneiro, "Soares era um liberal europeu e um social-democrata" muito mais do que "um socialista tout court".
Passaram 35 anos e Álvaro Beleza, especialista em Imuno-Hemoterapia e director do Serviço de Sangue do Hospital de Santa Maria, continua a sentir-se um socialista liberal ou um liberal de esquerda: liberal na economia e nos costumes, conservador no que toca à saúde e à educação, que devem ser públicas e para todos, acredita.
Diplomata, custa-lhe criticar os amigos que fez ao longo de mais de três décadas no partido e na política. Diz que o PS, tal como Portugal, "precisa de ambição e de algumas ruturas. E é preciso coragem para fazer ruturas". É isso, aliás, que vai defender enquanto presidente do conselho coordenador da SEDES - Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, criada há 50 anos, e que tem pela primeira vez à sua frente um médico.
Numa conversa sobre a inevitável pandemia, o governo e a governação de António Costa, fé e até futebol, Álvaro Beleza faz um diagnóstico do país e avança algumas terapêuticas.
Nunca fui tanto ao hospital como neste período
Como é ser director do Serviço de Sangue do Hospital de Santa Maria em tempo de pandemia?
Nunca fui tanto ao hospital como neste período. Ainda hoje dei por mim a pensar nisso: vou fazer 62 anos, a minha vida de hospital começou aos 17, o que significa que mais de dois terços são medicina e metade do tempo é hospital. Já fiz de tudo lá dentro: já lá dormi, já lá passei passagens de ano, já vi campeonatos do mundo de futebol, já namorei, já fiz tudo isso. Quando a pandemia começou fiquei praticamente dois meses sem ver o meu filho e meti o meu cão num hotel em Monsanto. Ia todos os dias ao hospital. Claro que no meu serviço o trabalho diminuiu, porque havia menos doentes, mas o serviço de sangue está mesmo por cima da urgência, ao lado do laboratório onde se fazem as análises, e tenho os pedidos de transfusões dos Covid. Passado este tempo todo, e tenho 110 pessoas no serviço, ninguém foi infetado, zero. E continuamos a ter hospital de dia, foi o serviço que manteve mais consultas presenciais, porque as transfusões não param, os doentes com cancro precisam de sangue mesmo com a pandemia.
A medicina é um bocadinho como a guerra: não faz sentido querer ser militar e, se há uma guerra, não ir
Teve receio?
Antes de mais, fiz questão de dar o exemplo, porque pode atingir qualquer um de nós e qualquer um de nós pode ir parar aos cuidados intensivos, é um Totobola. Quis estar mais presente - nomeadamente junto das pessoas que estão à frente, os administrativos, que são quem recebe as pessoas, os auxiliares, os enfermeiros, os médicos - porque sou o mais velho e sou aquele que corre mais risco, porque já tive uma aneoplasia [cancro], porque sou homem e porque tenho mais de 60 anos. A medicina é um bocadinho como a guerra: não faz sentido querer ser militar e, se há uma guerra, não ir. Em Inglaterra só a nobreza tem acesso a graus superiores no exército, na marinha ou na aviação, com um pequeno problema: quando há guerra, ao contrário de outros códigos militares, em que os oficiais estão atrás a comandar, eles vão à frente. Os israelitas também, por isso é que o irmão do atual primeiro-ministro israelita [Yonatan Netanyahu] morreu no ataque ao aeroporto [Operação Entebbe, Uganda]. A medicina tem essa caraterística, uma pandemia é a nossa guerra, temos de estar na frente, não podemos ter medo. Agora, quem protegeu isto foram as pessoas que se confinaram, o sistema de saúde aguentou porque as pessoas se portaram bem. Claro que também é bom e tem profissionais dedicadíssimos. Por exemplo, eu pedi voluntários de outras especialidades, sobretudo aos mais novos, e todos se ofereceram, ninguém se recusou. Isso é bonito. Também vi o medo na cara das pessoas, mesmo nos profissionais de saúde, pessoas que fizeram o possível por não ir, é a natureza humana. Mas a guerra ainda vai a meio.
a mãe de todas as medidas é a máscara. Penso que vamos ter de tornar a máscara obrigatória sempre
Há uma diferença entre o início da pandemia e a fase em que nos encontramos?
A diferença é enorme, a terapêutica evoluiu imenso. Por exemplo, na minha área percebeu-se que esta patologia tem um problema ao nível da coagulação, os doentes muito graves morrem com problemas de coagulação vascular disseminada, um problema gravíssimo. Agora fazemos testes de diagnóstico mais cedo aos doentes com Covid para saber se vão ter esse problema e, se tiverem, já estamos a dar anticoagulantes, já estamos as ser preventivos. Também se perceberam outros efeitos positivos, dos corticosteroides, do Remdesivir, do plasma convalescente - ainda agora estive numa reunião sobre isso - ou de uma terapêutica de oxigénio mais adequada, com uma pressão inferior. No fundo, é uma terapêutica de paciência. Depois, o sistema de saúde preparou-se, temos mais cuidados intensivos do que tínhamos. E, além disso, e das medidas de higienização (que são para ficar, não devem ser só por causa do Covid) ou de distanciamento, foi tomada outra medida, que é a que nos defende mais: o uso da máscara, que evita imenso o contágio, de Covid e do resto. Não estou muito preocupado com a gripe sazonal porque, usando máscara, as pessoas também vão ter menos gripe.
Em alguns locais é difícil cumprir o distanciamento e há ainda muita gente que resiste ao uso da máscara.
O distanciamento em determinados sítios é impossível, há locais onde não vamos conseguir nunca, como nos transportes públicos. Mas a mãe de todas as medidas é a máscara. A questão, aqui, é sermos simples, e penso que vamos ter de tornar a máscara obrigatória sempre. Os espanhóis já fizeram isso, até na praia é obrigatório usar máscara. E faz sentido, porque as regras, para serem cumpridas, têm de ser simples. Simplicidade é eficácia. E é uma medida que faz muito sentido, principalmente agora, que entramos no outono, o período mais difícil para toda a gente, sempre.
para mim, não vai haver segunda vaga. Vamos ter picos, por circunstância de ajuntamentos, de festas, do inverno
Por que motivo ainda não se avançou com a medida?
Penso que é uma questão psicológica: não fazer tudo de uma vez. Mas, para mim, não vai haver segunda vaga. Vamos ter picos, por circunstância de ajuntamentos, de festas, do inverno, que obriga as pessoas a estar mais em sítios fechados, mesmo com máscara. É evidente que o número de casos está a aumentar e vai aumentar ainda mais, porque algumas pessoas que estavam contaminadas nos grandes centros, como Lisboa ou Porto, foram para o Algarve, contaminaram-se lá, e agora regressam e vão contaminar outros. E há a abertura das escolas, é natural que os miúdos se contaminem, por mais cuidados que haja. E estou a partir do princípio que se vão cumprir as regras. Com o outono e o inverno, novembro, dezembro, vamos ter novo aumento. A questão é saber até onde o sistema de saúde aguenta. Porque agora é que vamos ter pressão, vamos ter de tratar todos os outros doentes, quando até aqui estávamos a tratar praticamente só doentes Covid ou doentes muito graves.
Com o outono e o inverno, novembro, dezembro, vamos ter novo aumento (...) agora é que vamos ter pressão
A minha pergunta anterior era mais por aí: de que forma, em termos logísticos, digamos, estamos agora mais preparados do que antes. Não vejo diferenças...
Trato por tu os líderes da saúde, nomeadamente do governo, a começar pelo primeiro-ministro. Sou amigo deles todos. O conselho é que, numa situação destas, não se inventa, tem de se seguir os melhores. E as melhores escolas de saúde pública são, de facto, as do norte da Europa, da França para cima, Inglaterra incluída - Portugal, aliás, fez o SNS inspirado no sistema inglês. Na ciência não se inventa, não há uma abordagem portuguesa. Claro, tivemos aqui um problema, porque seguimos em demasia a OMS [Organização Mundial de Saúde], que demorou imenso tempo a ir para as máscaras, por exemplo.
Somos lentos?
Somos lentos. Nos anos 90 abordei isso num documento que escrevi: Portugal tem um problema geral, que é o da velocidade (ou da falta dela): é no futebol, é no desporto, é em quase tudo. Somos lentos. Lentos a perceber, lentos a agir. A lentidão também tem as suas vantagens, não se cometem os erros de quem faz. Tenho uma ligação especial à República Checa, um dos países que atuou mais depressa e melhor: fecharam logo as fronteiras, que tinha de ser a primeira medida, e depois vieram as máscaras. Mas, num somatório, fizemos bem, e a prova é que Portugal, em termos europeus, está bem. Tivemos o azar de desconfinar antes dos outros, por isso tivemos um aumento de casos primeiro que os outros, o que nos valeu ficar na lista vermelha do tráfego de turistas. Agora entramos na segunda fase, as desculpas são menores.
todos os portugueses devem ter o telefone do médico de família
Entre as coisas que não mudaram está o SNS 24. Para atender mais gente teria de aumentar a capacidade da rede, contratar mais linhas, até com outras operadoras, mas isso não foi feito.
Quando tive responsabilidades políticas defendi, e ainda defendo, a ideia de que todos os portugueses devem ter um médico de família, mas não só: todos os portugueses devem ter o telefone do médico de família.
À semelhança do que acontece, normalmente, com um médico privado.
Claro, e dei esse exemplo. Não pode ser uma burocracia, uma complicação para marcar consultas, o calvário que todos conhecemos. Há unidades de saúde familiares em que os médicos, voluntariamente, dão os números dos seus telefones aos seus doentes. E isso devia ser generalizado. Se tivesse isso, não teria a necessidade de ter uma linha de saúde tão forte. Os pacientes deviam ter o telefone não só do seu médico, como o telefone directo de outro médico, caso este não se encontre, e também dos enfermeiros. Hoje há formas de fazer isto. Atualmente, por causa do Covid, temos muito mais consultas por telefone, muito mais contacto com o doente por email, e isso é bom. No meu serviço temos vários emails, vários telefones diretos e os médicos falam com os doentes. Isso é óptimo. Eu, como responsável do serviço, tenho acesso a todos os emails e preocupo-me que as pessoas tenham resposta no dia, na hora. Esta é uma evolução que é preciso fazer, porque se no privado dão o telefone, por que motivo não hão-de fazê-lo no público? Têm de dar, faz todo o sentido. Na altura foi um burburinho, os médicos de clínica geral não queriam, ficaram todos zangados comigo - e são meus amigos - dirigentes e tudo. Mas é assim que deve ser.
A Segurança Social e a Saúde deviam estar no mesmo ministério, como acontece em França, na Alemanha, em Espanha e em muitos países europeus
Que lição podemos tirar do que está a passar-se nos lares, muitos, aparentemente, ao deus-dará?
Sempre defendi uma ligação entre a Segurança Social e a Saúde, que não liga, como se vê agora exactamente pela questão dos lares. A Segurança Social e a Saúde deviam estar no mesmo ministério, como acontece em França, na Alemanha, em Espanha e em muitos países europeus. Normalmente até se chamam ministérios da solidariedade e da saúde.
Porquê?
Hoje mais de metade da saúde são idosos. Estamos a envelhecer e essa é uma consequência. Se a maior parte do utilizadores de saúde são idosos, não há ninguém num lar que não precise de um médico ou de um enfermeiro. Nos Estados Unidos os lares são conhecidos por nursing homes, casas de enfermagem. Dizem-me que é difícil ter Segurança Social e Saúde no mesmo ministério por causa da dimensão, o que a mim me parece uma coisa esdrúxula. O que não há é vontade. Os lares, sejam privados, públicos ou sociais, deviam ter uma ligação institucional aos cuidados primários e aos hospitais. Hoje temos, e bem, hospital ao domicílio, temos cada vez mais cuidados de saúde primários ao domicílio, tomara nós que as pessoas não tivessem de ir para lares, conseguir tratá-las em casa. Então e não conseguimos ligar isto tudo? Agora, ter dois ministérios, direções regionais, as administrações regionais de saúde, tudo a duplicar e a triplicar... É tudo complicado. Se tiver isto no mesmo lugar, tem de haver quem mande, tem de haver comando.
Fez o programa da saúde do PS para a direção de António José Seguro. Tinha lá essa medida?
Quando foi do primeiro governo de António Costa ainda estive no programa da saúde, porque passei a pasta, digamos assim, da antiga direção. Tínhamos o programa da saúde feito, que, aliás, foi praticamente todo aproveitado pelo Adalberto [Campos Fernandes, antecessor de Marta Temido]. E coloquei essa questão em cima da mesa: isto devia ser o mesmo ministério, na Praça de Londres. Na altura, o professor Correia de Campos concordava comigo e comentei isso com o Adalberto. Até lhe disse: "Não estou a dizer isto para tu não seres ministro, a questão não é essa". Mas optou-se pela via tradicional. Acho que, em geral, temos ministérios a mais, isso acho. Na saúde esta é a grande lição a tirar, porque o problema revela que a situação futura é até pior do que eu estava a imaginar. Hoje, grande parte do Ministério da Segurança Social são IPSS [Instituições Particulares de Solidariedade Social], lares. E o governo não governa só a saúde pública, governa toda a saúde, pública, privada e social. Pode ser que alguém algum dia ainda pegue nisto.
Dou aulas na faculdade, acho que são brilhantes, são inteligentíssimos, são bem formados, são educados. Agora, a questão da saúde é esta: só pode vir para Medicina quem gostar de pessoas
Antes de avançar na parte da governação, não queria deixar de perguntar: há atualmente um gap entre os médicos recém-licenciados e a geração dos 60 anos. Isto causa algum tipo de constrangimento?
Estive há pouco a ver isso, tem piada... Daqui a uns anos vamo-nos reformar vários ao mesmo, da minha geração quase metade dos médicos vai embora. Ficam os mais novos, é verdade. Mas eu, que já fui pai tardio, tive mais paciência para educar o meu filho agora do que teria tido antes, tenho colegas no meu serviço que são ótimos formadores, porque estão na última fase da vida deles, já têm uma paciência e uma arte que não tinham antes. Mas isto é o meu microcosmos. Os mais novos, em relação à minha geração, são muito mais... A minha geração era mais romântica, mais atrevida, mais política, mais interventiva civicamente - somos a geração que apanhou o 25 de Abril (eu tinha 16 anos). Esta geração não é nada política, é muito sensata, mais sensata do que a minha, é mais estudiosa, tecnicamente muito preparada. Dou aulas na faculdade, acho que são brilhantes, são inteligentíssimos, são bem formados, são educados. Agora, a questão da saúde é esta: só pode vir para Medicina quem gostar de pessoas. Tem de se gostar de doentes e de tratar de doentes. E muitos destes jovens médicos fogem de ver doentes. Gostam muito de trabalho de investigação, apresentam muitos papers, muitos trabalhos, mas a relação com os doentes, aquela coisa do dia-a-dia, aí há alguma dificuldade. Costumo dizer nas minhas aulas que a primeira coisa que têm de fazer é olhar para o doente, ouvi-lo, falar com ele. Depois é que começa a consulta, porque as pessoas precisam cada vez mais disso. Esta é uma geração menos gregária, são muito digitais, e agora ainda ficam mais distantes. Mas, quando pedi voluntários para o Covid, vieram todos. Isto vai-lhes ficar gravado na memória, como ficou para nós - para mim não, que não fiz - o serviço médico à periferia (jovens médicos que tinham de ir pelo país fora perceber as necessidade das pessoas). Mas estou otimista, Portugal tem óptimas escolas médicas e de enfermagem, veja-se o que aconteceu em Inglaterra. Os nossos, quando vão para fora, são muito bons: trabalhadores, disciplinados, bom senso e empáticos.
somos criativos, trabalhadores, mas o jogo de equipa é difícil. Das coisas que durante a minha vida médica mais me preocuparam foi pôr as pessoas a falar umas com as outras, a dizer tudo
Por que motivo somos tantas vezes melhores lá fora do que cá dentro?
Normalmente temos um défice de organização. E somos criativos, trabalhadores, mas o jogo de equipa é difícil. Das coisas que durante a minha vida médica mais me preocuparam foi, por exemplo, fazer reuniões, pôr as pessoas a falar umas com as outras, a dizer tudo. É muito difícil. "Zanguem-se aqui dentro e lá fora sejam todos amigos". Isto é uma cultura difícil, só os anglo-saxónicos fazem isso. Nós é sempre aquela coisa, falamos individualmente, falamos com um de cada vez. Eu falo com todos, gosto das reuniões com todos, porque é isso que gera grupo, gera equipa. E isto tem a ver com o desafio do país, que é o desafio da SEDES: a batalha é cultural, é de mudança de mentalidades.
Há um problema com os dadores em Portugal. A malta mais nova não aderiu tanto a estes movimentos associativos, o número de dadores diminuiu e estamos com dificuldade em obter sangue
É director do Serviço de Sangue dos Hospital de Santa Maria. Numa altura tão crítica, como está o país em matéria de sangue?
Há um problema com os dadores em Portugal. Os dadores de sangue, que vinham tradicionalmente de associações de dadores espalhadas pelo país, muitas organizadas pelos militares que vieram da Guerra, estão a envelhecer; a média está na minha faixa etária, 62 anos, e só se pode ser dador até aos 65 anos, não é para sempre. A malta mais nova não aderiu tanto a estes movimentos associativos, o número de dadores diminuiu e estamos com dificuldade em obter sangue. Vamos lá ver: antigamente eu e os meus amigos juntávamo-nos sempre num café, nem precisávamos de avisar. Hoje, os grupos de amigos são do WhatsApp, isto mudou tudo. Os dadores encontravam-se normalmente na associação, que era onde bebiam café, almoçavam, faziam festas.
Isso acabou. Tudo é cultural: Inglaterra era o país do mundo com mais dadores de sangue por habitante, porque desde a Segunda Guerra Mundial que se criou a ideia de que um jovem, a partir dos 18 anos, deve dar sangue - tira a carta, vota e dá sangue. Era um dever cívico fazê-lo uma vez por ano. Por outro lado, em Portugal, o grande consumidor de sangue é Lisboa, enquanto o grande fornecedor é o norte, o centro e a província. Com o interior cada vez mais despovoado, as associações a desaparecer, os dadores desaparecem também. Por isso o esforço, nomeadamente em Santa Maria, para que os estudantes de Medicina, de Enfermagem sejam dadores, e há cada vez mais estudantes a dar.
temos em Portugal um problema de formalidade a mais e há pouca tradição de o líder vir dizer que errou e pedir desculpa, no que eu não vejo problema nenhum, mas onde eles vêem um problema gigante
Não posso deixar de perguntar, e ainda a propósito dos lares, como vê as declarações de António Costa e a atuação do governo e da ordem dos médicos em todo este processo?
Penso que esta altura requer que todos ponham de lado o orgulho e as partidarites. Temos de ser crescidinhos, já todos temos cabelo branco e o problema é maior que nós. O problema é maior do que o primeiro-ministro, do que o governo, do que a Ordem dos Médicos, do que os sindicatos, do que os médicos. E ainda estamos a meio da guerra. O que é preciso é mais reuniões - mas esse é o problema português: muita audiência, pouca reunião. Era melhor a ministra da Saúde ou o primeiro-ministro reunir de vez em quando, em mangas de camisa, à volta de uma mesa, com a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Enfermeiros, com técnicos, com todos. Neste processo é preciso ouvir todos, e isso é válido para isto e para aquilo de que vou falar a seguir: temos em Portugal um problema de formalidade a mais e há pouca tradição de o líder vir dizer que errou e pedir desculpa, no que eu não vejo problema nenhum, mas onde eles vêem um problema gigante. Um amigo jornalista entrevistou o primeiro-ministro da Finlândia, quando a Finlândia entrou na União Europeia. Era perto do meio dia e o primeiro-ministro perguntou-lhe: "Já almoçou?" "Não". "Então e se fossemos ali almoçar?" e atravessaram a rua e foram comer a um snack-bar em frente. Dizia-me ele: "Isto era impossível em Portugal". E a Finlândia é um país rico. A Ordem dos Médicos, os sindicatos, o governo cometeram erros. Mas, vamos lá a ver, numa coisa destas toda a gente comete erros. Não há milagres, mas é preciso mais entendimento.
A SEDES tem, pela primeira vez em 50 anos, um médico na presidência do seu conselho coordenador. Isto tem um significado?
Tudo isto tem um significado, é evidente, que tem a ver com a situação que vivemos: é lógico que é um elogio que os sócios da SEDES estão a fazer aos profissionais de saúde.
E vai representar uma mudança, de alguma maneira?
A mudança é esta: nós, os médicos, temos defeitos e qualidades, mas temos uma característica: somos práticos, o que sempre fez muita confusão a alguns políticos e a alguns economistas da SEDES também. A minha vida é decidir e decidir simples: ouvir os que sabem, não ter vergonha de pedir opinião, não ter problemas em cometer erros e voltar atrás, não sou casmurro, e, quando é preciso decidir, decidir depressa. Em Portugal toda a gente faz diagnósticos fantásticos, mas depois operar o doente, aí é que todos ficam aflitos. Nós fazemos isso com naturalidade. Penso que se perde muito tempo em rodriguinhos - repare, também gosto do convívio, aliás, sou muito gregário, gosto dessa parte da política, porque convivemos, gosto das reuniões, dos jantares a seguir, isso faz parte da vida e é muito importante. Mas não vale a pena complicar muito, por isso os meus colegas da SEDES sabem que vou tentar focar naquilo que me parece essencial.
felizmente, este vírus não é muito mau, já houve bem piores, e vamos superar isto. A questão fundamental é económica: como é que Portugal sai deste problema, recupera e faz o que tem de ser feito - coisa que normalmente não faz
O que é essencial, para si, qual é o tal desafio da SEDES de que falava?
Para fazer qualquer coisa bem feita temos de ter cultura, estudo e memória. Temos de saber história e honrar os que estiveram antes de nós e que nos deixaram o que temos. A SEDES vai comemorar 50 anos e vai homenagear os seus fundadores. E fazer o que eles fizeram, deixar documentos escritos. Vamos fazer um livro com um plano estratégico para as próximas décadas para várias áreas da governação do país. A catástrofe do Covid que caiu sobre nós levanta um problema económico gigante, maior do que o problema sanitário, até porque, felizmente, este vírus não é muito mau, já houve bem piores, e vamos superar isto. A questão fundamental é económica: como é que Portugal sai deste problema, recupera e faz o que tem de ser feito - coisa que normalmente não faz. Temos muita dificuldade em fazer mudanças, em fazer reformas. Temos medo da mudança, somos um país muito conservador na atitude. Mas isto é geral, conservador da direita à esquerda. É cultural. As pessoas são como eu, do Benfica toda a vida, mas não são só os militantes, são os votantes também. E isto revela um país muito familiar. Por exemplo, esta história da festa do Avante e do Covid, a minha preocupação é precisamente o facto de o PC ser um partido familiar, que vai de avós a netos. Preocupa-me a contaminação dos mais velhos e que venham a ter chatices, pessoas ilustres até, políticos. Não estou a fazer uma crítica ao PC, mas é um partido envelhecido, se há partido que tem de ter cuidado com o Covid, é o PC. Custa-me perceber como é que há Festa do Avante, mas não há Meo Sudoeste e Paredes de Coura. E o Jerónimo de Sousa é dos que corre risco. Mas é o país que há.
Custa-me perceber como é que há Festa do Avante, mas não há Meo Sudoeste e Paredes de Coura. E o Jerónimo de Sousa é dos que corre risco. Mas é o país que há
Nem sempre tivemos medo da mudança e de arriscar, mas, como dizia o outro, talvez o problema não seja dos que foram, mas dos que cá ficaram.
Agostinho da Silva tinha essa tese: os melhores, os que eram corajosos, audazes, livres e líderes, saíram. Ficaram os medrosos. Penso que não é só isso. A história de Portugal é de navegação à vista, navegamos vendo sempre a costa africana. Fomos cuidadosos, prudentes. Os espanhóis correram o risco de aceitar a proposta, ao que parece, de um impostor, Cristóvão Colombo, e comeram de uma vez a América toda. Se Portugal tivesse aceitado a proposta de Colombo, que ainda por cima aprendeu cá, tinha tido tudo. Essa, para mim, é a lição: não é o que ganhámos, é o que perdemos. Portugal tem esse problema: é prudente, navega à vista, com pequenos passos, até no futebol. A escola portuguesa era aquele jogo apoiado do Barcelona, só que o Barcelona fazia aquilo com o Messi, com jogadores virtuosos, mas o jogo é tedioso, ninguém gosta de assistir, é muito mais interessante o risco do Cristiano Ronaldo. Portugal é um pouco como aquela marca de cigarros que já não há, o Português Suave. Somos assim. Aprendi umas coisas giras com uma amiga, filha do Anthímio de Azevedo [meteorologista]: somos como o clima: moderado, atlântico, um bocadinho mediterrânico, nem muito quente nem muito frio, nem tanto ao mar nem tanto à terra. Portugal é isto. Tem coisas boas, mas tem medo de fazer reformas a sério quando é preciso, normalmente só as faz com catástrofes, com líderes despóticos e disruptivos. É muito difícil mudar porque há uma decisão coletiva, pensada, construída.
Sabendo isso, o que propõe a SEDES?
Sabendo isto, penso que é obrigação da SEDES ser um pouco o laboratório de ideias para onde vêm aqueles que acreditam que é preciso fazer alguma coisa para mudar. O que pretendo é, com os sócios da associação e com outras pessoas que estamos a convidar, gente mais nova, como o Nuno Garoupa, que está nos Estados Unidos, o Poiares Maduro, que está em Florença - porque também precisamos de gente com um olhar de fora, mais crítico, menos dependente - apontar caminhos. Nesse sentido, criámos sete grupos de trabalho, que vão começar agora a trabalhar para o congresso que vamos realizar em outubro de 2021. Até lá vamos publicar os textos que entretanto vão sendo produzidos.
Tanto papel se tem produzido e Portugal continua a crescer pouco ou nada, não é verdade?
Esse é o problema. Até certo ponto, Portugal andou. Mas depois da entrada do euro, praticamente, começámos a viver dos rendimentos, como antes vivíamos da colónias. É a natureza portuguesa, começámos a viver dos juros baixos, do dinheiro fácil, dos fundos europeus e perdemos competitividade.
O desafio, agora - lá está o médico a falar - é ter um crescimento económico sustentável e robusto de 3% a 4% ao ano. Se a Irlanda, a Holanda, a Lituânia ou a República Checa conseguem, e pego em países da nossa dimensão, porque é que nós não conseguimos?
Aflige-o pensar nos milhões que aí vêm da Europa e na forma como serão geridos?
Já lá vou, essa é uma das preocupações da SEDES. A questão é que, à boa maneira portuguesa desde D. Afonso Henriques, Portugal gosta muito de um Estado protetor. Mesmo no tempo de Salazar foi assim. Seja de direita ou de esquerda, o país é um pouco anti-liberal no sentido económico. Para Portugal crescer é fundamental respirar, ter gente empreendedora, ter um clima amigo dos negócios, da economia, das empresas e ter pessoas que não estão à espera da proteção do pai e da mãe. O desafio, agora - lá está o médico a falar - é ter um crescimento económico sustentável e robusto de 3% a 4% ao ano. Se a Irlanda, a Holanda, a Lituânia ou a República Checa conseguem, e pego em países da nossa dimensão, porque é que nós não conseguimos? Temos portugueses de topo em todas as áreas: no futebol, Cristiano Ronaldo, na banca, Horta Osório, nos automóveis, Carlos Tavares, na ciência, António Damásio, na literatura...
António Costa anunciou um envelope financeiro sem precedentes: 57,9 mil milhões de euros até final de 2029, sem contar com linhas de crédito e programas de gestão centralizada em Bruxelas. São mais de 6,5 mil milhões de euros por ano a entrar no país, o dobro ou o triplo do habitual. Para quê?
Os fundos vêm aí e são uma oportunidade, mas não podemos cometer erros, temos de decidir bem para onde vão. Este processo tem de ser mais transparente e participativo. Como com o Covid, é importante ver o que os outros estão a fazer, caçar ideias e adaptá-las. Mas também temos as nossas ideias, por isso é importante envolver universidades, empresas, jovens, cidadãos em geral. Porque o governo não é dono de Portugal, governa e tem legitimidade até para, se quiser, fazer a coisa só nos ministérios, mas quanto mais participação, melhor para encontrar uma solução. Para crescer, Portugal precisa de três coisas: apostar em indústrias de alto valor acrescentado - e esta é para mim a primeira chave do problema: qualquer país europeu rico anda à volta da indústria automóvel e aeronáutica. Na República Checa, a Škoda equivale a dez Autoreuropas. Não é só automóveis, é também camiões e comboios (comboio, metro, eléctrico, metro de superfície).
Que me lembre, a Autoeuropa foi o último grande investimento feito em Portugal...
Sim, parou-se aí. É preciso fazer investimentos desse tipo. Se vamos explorar as minas de lítio - o mundo passa por aí, vai ser mais eléctrico - então é ir buscar a Tesla. Brinco muito com um amigo que está no governo, Eurico Brilhante Dias [secretário de Estado da Internacionalização]: "O que eu faria era pegar numa malinha e ir namorar o Musk", porque a Tesla já investiu na Alemanha, mas penso que vai fazer mais investimentos. Temos de ter "Autoeuropas" de carros eléctricos ou híbridos, do futuro, mas também ferrovia, essa é a segunda aposta. O mundo vai ter mais comboio.
Tenho dúvidas sobre esta coisa de pôr mil milhões na TAP. Até porque quem desenvolveu o turismo em Portugal não foi a TAP, a TAP, enquanto monopólio, até prejudicou o seu desenvolvimento
Mas o governo continua a injectar dinheiro na TAP, mesmo sem definir o que quer da empresa.
Tenho dúvidas sobre esta coisa de pôr mil milhões na TAP. Até porque quem desenvolveu o turismo em Portugal não foi a TAP, a TAP, enquanto monopólio, até prejudicou o seu desenvolvimento. A concorrência obrigatória, as regras da União Europeia, a entrada das low cost, Ryanair e Easyjet, é que nos trouxe os turistas, mesmo para as ilhas. Admito que é importante ter uma companhia de bandeira para regiões estratégicas do globo, para ligar Portugal a Angola, Moçambique, Timor, Macau... Mas porque é que países ricos como a Suíça ou a Bélgica deixaram cair as companhias quando tiveram problemas nas linhas aéreas, que depois alguém comprou?
Por que motivo é tão difícil tomar decisões?
Porque o país é pequeno.
É preferível ficar na história como um governo controverso e que fez reformas ou como um governo que não levantou ondas mas não mudou nada de estrutural?
[Pensa] Depende da cabeça de quem lidera e depende da maneira de ser e de estar. É evidente que há políticos que se motivam para ficar na história, há outros que se motivam para ganhar eleições.
[Precisamos de] uma carga fiscal mais baixa, a começar pelo IRC. Este é um problema ideológico da esquerda, que, no fundo, é o problema cultural da inveja, porque somos um país pobre
Disse que, para crescer, Portugal precisa de três coisas: indústria de valor acrescentado, ferrovia e qual é a terceira?
Terceira, e sem esta nada é possível: uma carga fiscal mais baixa, a começar pelo IRC. Este é um problema ideológico da esquerda, que, no fundo, é o problema cultural da inveja, porque somos um país pobre. A pobreza, quando é muito enraizada e ancestral, gera inveja. Para deixarem de ser invejosas as pessoas têm de ver uma luz ao fundo do túnel, porque já apanharam muita pancada, Portugal é muito pobre. Claro, estamos melhor do que estávamos, mas continuamos a ser muito pobres, e quem dirige tem a obrigação de dar o exemplo, de dizer o que às vezes não é simpático ouvir. Sem um IRC competitivo, e quando digo competitivo é menor que o holandês, o irlandês, o letão, o checo e o espanhol, que são os países que concorrem connosco, não vamos conseguir. Todos os impostos em Portugal, IVA e IRS também, têm de ser mais baixos que os espanhóis. E agora dirá: com impostos mais baixos, como pagam as despesas do Estado? Ah, pois é, mas isso é que terá de se resolver. E agora é a oportunidade, porque ninguém está a olhar para a despesa do Estado a nível global, o mundo não está a olhar para as despesas dos Estados por causa do Covid, da crise económica, está tudo um pouco distraído. Então, agora é que é a altura certa para o Estado baixar a carga fiscal, para atrair investimento, para se modernizar, para depois gastar menos fazendo mais. Essa é a arte da reforma do Estado, muito falada, mas que ninguém pega nela.
Nem os seus amigos - não resisto à provocação.
Mas também por isso é que quando eu estava mais ativo no partido, e ainda lá estou, mas sou, com o meu amigo [Francisco] Assis e outros, a ala liberal do Partido Socialista [ri], era muito incompreendido. Somos amigos - e somos mesmo - mas...
Afirmou numa entrevista que ser do PS é como ser do Benfica, é para toda a vida. Não é um tanto redutor, tratar a política como clubite?
É a natureza humana. O partido socialista oscila, tradicionalmente, entre uma linha mais à esquerda e uma linha mais moderada. E agora não está na nossa época, mas chegará o momento em que uma linha mais moderada virá ao de cima. Não estou a dizer que seja comigo ou com a minha geração, que não é de certeza, mas será com os mais novos. Até porque acredito que a realidade acaba por se impor: se não for liberal, no sentido económico do termo, se não atrair investimento, se não criar condições para ter uma carga fiscal baixa, um ambiente amigo das empresas, Portugal não vai ter crescimento. Os governos têm de definir políticas que apontem caminhos, essa é a sua responsabilidade. E aqui entramos de novo nos fundos: os fundos deviam, primeiro, ser mais participados. Mas, mais do que isso, assim como houve um professor Costa e Silva para desenhar um plano estratégico, que é um princípio, não o fim, deve haver um responsável pela gestão dos fundos.
Que, em princípio, serão geridos pelo Banco de Fomento, mais uma estrutura em cima de tantas outras.
Não sei se será através do Banco de Fomento ou de outra estrutura, mas o Banco de Fomento poderia ser um instrumento. Mas então, para aí temos de ir buscar os melhores. Eu, se mandasse, ouviria o Carlos Tavares, dos automóveis, ouviria o Horta Osório, do Lloyds, ouviria o António Simões, do HSBC, ouviria grandes empresários portugueses de sucesso, porque temos de ouvir os que criam emprego. Temos gente muito boa, o que precisávamos era de trazer os melhores. Sabendo pelas notícias que Horta Osório quer regressar a Portugal, e estando o país nesta situação, não percebo como é que não convida um homem como ele para ser o gestor de uma task force em matéria de alocação dos fundos. Porque o problema é que qualquer governo, qualquer ministro, vai ser toda a gente a querer dinheiro e vão ser decisões muito difíceis. Temos de fazer como se faz na selecção nacional, ir buscar os melhores para jogar.
a Microsoft, a Apple, o Facebook ou a Tesla apareceram com base em grandes planos do Clinton ou do Bush ou do Reagan? Apareceram porque na Califórnia há um ambiente amigo dos negócios para jovens doidinhos
Quando oiço falar em Costa e Silva não consigo deixar de pensar no Plano Porter, nos PIN - Projectos de Interesse Nacional e sei lá quantos mais projectos falhados.
Mas esse não é um problema só português. A Europa faz estes grandes planos de desenvolvimento estratégico e eu pergunto: a Microsoft, a Apple, o Facebook ou a Tesla apareceram com base em grandes planos do Clinton ou do Bush ou do Reagan? Apareceram porque na Califórnia há um ambiente amigo dos negócios para jovens doidinhos. Claro que muitos também não resultaram ou faliram, mas é isso que faz andar os Estados Unidos e é por isso que a Europa está a perder completamente, ao contrário do que as pessoas andam para aí a dizer. Nos últimos 30 ou 40 anos as grandes ideias, as grandes marcas, as grandes empresas não vêm da França nem da Europa, isto não nasce com planos. Não é por acaso que na SEDES vai criar o prémio jovem empreendedor, com Carlos Moedas a presidir ao júri. Querermos premiar gente da área da economia, do direito ou até da área social. Com tudo isto, pretendemos apontar um caminho. A reforma fiscal é muito a simplificação do país, acabar com a confusão de taxas e taxinhas, de excepções... Não inventem. Se não se fizer é uma catástrofe? Não, o país continua a crescer meio ou um por cento ao ano, continua endividado e a viver de ser pedinte da Europa.
Nos comentários das televisões portuguesas só vê tipos dos partidos, coisa que não se vê nas televisões espanhola ou francesa ou outra qualquer. Aqui tem uns porta-vozes dos partidos, que combinam com as redacções, que acreditam que assim terão mais informação
Mas, aparentemente, os portugueses contentam-se com pouco.
O poucochinho define muito isso, é o que penso tantas vezes. Sermos sensatos, ponderados é mau porque nos prende, temos medo do risco e temos medo de errar, é aquela coisa da culpa. Mas as novas gerações são mais anglo-saxónicas, mais liberais, é com elas que nos podemos safar. Mas há um problema: participam pouco na política e quem decide em Portugal são os partidos. Portugal tem excesso de governamentalização, tem governo a mais, as notícias só falam do governo, saúde, saúde, saúde, mesmo antes do Covid, governo, governo, governo, parece que não sobra nada. Nos comentários das televisões portuguesas só vê tipos dos partidos, coisa que não se vê nas televisões espanhola ou francesa ou outra qualquer. Aqui tem uns porta-vozes dos partidos, que combinam com as redacções, que acreditam que assim terão mais informação. No fundo, tem pouca sociedade civil. E isso é a SEDES e esse era um dos grandes cavalos de batalha de Sá Carneiro: a sociedade civil libertar-se.
Os deputados aqui não têm a liberdade nem a força dos deputados em Inglaterra, e lá o primeiro-ministro vai lá todas as semanas ao Parlamento e é primeiro-ministro de Inglaterra, que é um bocadinho mais difícil do que governar Portugal, e cada deputado, da oposição ou do partido, diz-lhe tudo. Aqui alguém diz alguma coisa ao chefe?
Isso tem a ver com outra proposta, a de alteração do sistema eleitoral...
É por isso é que a SEDES defendeu, e eu defendo há muitos anos, a alteração do sistema eleitoral, com a criação de círculos uninominais, para ter mais sociedade civil e menos partidos. Tem atualmente um sistema demasiado partidário, em que os chefes dos partidos escolhem os deputados e, portanto, o Parlamento vale menos. Se quem está por baixo tem menos independência, quem comanda, comanda tudo, e isso prejudica a sociedade civil. Os deputados aqui não têm a liberdade nem a força dos deputados em Inglaterra, e lá o primeiro-ministro vai lá todas as semanas ao Parlamento e é primeiro-ministro de Inglaterra, que é um bocadinho mais difícil do que governar Portugal, e cada deputado, da oposição ou do partido, diz-lhe tudo. Aqui alguém diz alguma coisa ao chefe? Isso é o nosso cancro inicial, enquanto não resolvermos isso, não resolvemos nada. A regionalização... Há uns anos estive num debate com Rui Rio e disse isto: se houvesse círculos uninominais, não precisava de regionalização nenhuma, porque o deputado eleito por Bragança vai defender Bragança. "Ah, isso era proliferar o queijo limiano", disse. É, os Estados Unidos governam assim há duzentos anos e Inglaterra há 500 anos. Estão atrás de nós? Tudo é negociado e isso é que impede o poder absoluto de quem governa e dá algum poder ao interior. É o sistema americano que permite que o interior não se trame, nomeadamente na eleição presidencial. Por isso é que não tem eleição direta, porque os pequenos estados contam mais do que os grandes e por isso é que o Nebraska ainda conta alguma coisa, senão contava zero. Um presidente dos EUA fazia campanha na California e em Nova Iorque e limpava aquilo. Cá é assim, faz campanha em Lisboa e no Porto e está feito. Isto, se tivesse círculos uninominais e uma engenharia eleitoral correta, equilibrava o país. Agora: CCDR, ARS, regiões, isso é tudo um disparate, mas um disparate total.
Alterar essa relação de poderes está no parlamento, ou seja, nos partidos, em quem comanda. Como se quebra este círculo?
Não sei. O que sei é que nestes dois anos é minha obrigação defender o que achamos que é melhor para o país, o que já não é pouca coisa.
Dez palavras para definir a governação de António Costa.
[Suspira] É tipicamente portuguesa: inteligente, pragmática, prudente. E, como sei que ele é muito inteligente e preparado, gostava que tivesse mais ambição, acho que era capaz de melhor. Mas António Costa gosta de puzzles e sei que ele acha que esta maneira de governar é a que se adequa ao pensamento e à maneira de ser do português. A diferença entre mim e ele é que eu gostava de mudar essa maneira de ser. Mas é por isso é que eu não ganho eleições.
se eu fosse estrangeiro e aterrasse em Portugal sem conhecer o país, acharia este é um país velho (só se fala em reformas), hipocondríaco (reformas e saúde), com a mania que é atleta, mas que não sai do sofá (todos comentam futebol), e onde só há o governo (é tudo o governo)
Qual a sua ambição política?
Nenhuma [ri]. Sempre fiz política, mas não tive nunca nenhum lugar, sempre fiz política porque gosto. E desde que estou no Partido Socialista apresentei moções e textos e sabe-se qual é a minha opinião, não ando ali para ter lugares, ando para defender causas. Estou na Comissão Política Nacional, mas há algum tempo que não falo e uma das últimas vezes que falei disse isto: se eu fosse estrangeiro e aterrasse em Portugal sem conhecer o país, acharia este é um país velho (só se fala em reformas), hipocondríaco (reformas e saúde), com a mania que é atleta, mas que não sai do sofá (todos comentam futebol), e onde só há o governo (é tudo o governo).
Ajudou a fundar a JSD, afinal não é do PS desde pequenino...
Também fui do Sporting.
O que o levou a mudar os PSD para o PS?
Ajudei a fundar a JSD em 1974. Depois afastei-me da política. Quando Sá Carneiro morreu eu estava no Porto, ia a um comício, e fiquei chocado com aquilo. E a reacção de Mário Soares à morte de Sá Carneiro encantou-me - eu disse-lhe isto - foi isso que me aproximou dele, a atitude genuína vinda de um adversário (porque Soares massacrou-o nas eleições). Ele sentiu aquilo muito, isto é o olhar de médico. Porque no fundo, como Sá Carneiro, Soares era um liberal europeu e era social-democrata, mas não era socialista tout court. E o Sá Carneiro também, eram ambos advogados, cultos, burgueses, um de Lisboa e outro do Porto, mas isso aproximava-os. Além disso, eu tinha estado na Alameda, já havia ali uma aproximação. Não é por acaso que apoiei Soares e sai do PPD com o Rui Oliveira e Costa, a Helena Roseta, um grupo de gente que apoiou o Soares em 1985, e acabámos por ir para o PS. Depois o PS virou à esquerda: era o Constâncio, o Sampaio... Estive contra o Sampaio, apresentei uma lista com o Assis. Eu e o Assis entrámos no mesmo dia no PS, a 6 de outubro de 1985, fomos os dois à sede do PS do Porto - tinha tido 20% nas legislativas, foi arrasado: "Dê cá uma ficha que nós vamos inscrever-nos". Sempre achei que o Soares era social-democrata. E era. Já lá vão 35 anos, é uma vida. Depois fiz amigos, não é? Fiz amigos que são para a vida, que vão além da política. E os outros, mesmo que não sejam tão próximos, são amigos. Isto para dizer que já estou velho para mudar.
É um homem de fé ou de razão? A ciência e a religião são incompatíveis?
Não. Mas há grandes cientistas crentes. Eu não sou e tive educação católica, estive nos jesuítas e depois nos maristas e tenho um amigo padre, que baptizou o meu filho, e tenho respeito pela Igreja. Mas nunca fui tocado pela fé.
Acredita, então, que Deus é uma criação do Homem e não que o Homem é uma criação de Deus.
Deus é uma criação do homem. As religiões são criações humanas, que fazem sentido, mas depois, historicamente, as grandes guerras foram em nome de Deus. Penso que a fé ajuda as pessoas: quando estive numa situação difícil de saúde, grave, pensei que era aí que me convertia: "É agora que vou a Fátima", mas não fui. E não me converti.
Tem medo da morte?
Não. Na altura, isto foi há 15 anos, pensei que podia morrer e que não ia ver o meu filho, que tinha um ano, crescer, era esse o pensamento que me assaltava diariamente. Sou um cético. E nunca rezei. Quando eu era miúdo e havia retiros no São João de Brito eu já punha em causa a existência de Deus. Acho que o mundo é muito injusto, em muito dependemos da sorte e do acaso e temos de ser gratos quando temos sorte. Eu sou muito grato, acho que sou um privilegiado. Sabe que todos os anos morrem dois milhões de crianças no mundo por causa da malária? Uma coisa brutal. Isto põe tudo em perspetiva. Mas não sou ateu, tenho sérias dúvidas, e também não vivo com a angústia de descobrir e de pensar que tem de haver uma entidade criadora.
Quando é decidiu que queria ir para medicina, lembra-se?
Ah, isso lembro. Eu estava muitas vezes doente, tive uma hepatite muito grande, estive três meses de cama e isso marcou-me muito. O médico de família, que era o Gomes da Silva, que eu adorava, era mais do que médico, quando chegava era mais de metade da cura. Porque, além de ser médico, falava de outras coisas e conversava com os meus avós e falava de política, era amigo de António José de Almeida [ex-presidente da República], era amigo íntimo de António Granjo [deputado e ministro] e foi deputado na Primeira República e médico, e eu adorava as histórias dele e fui muito influenciado por isso, queria um pouco ser como ele. Mas queria ser médico da Marinha, porque sempre quis ser militar, porque gosto de história e porque a Marinha é mais antiga que Portugal, mas depois descobri que enjoo e fui só para Medicina. Claro que o meu avô ficou muito contente, porque era a profissão do pai dele, que o meu avô, aliás, gostaria de ter tido, mas quando me viu a gostar demasiado da política ficou muito preocupado, porque quando veio o Salazar esse meu bisavô teve muitas dificuldades, tiraram-lhe tudo o que tinha, foi perseguido e teve chatices. E o meu avô dizia uma coisa engraçada: "O dinheiro que vais ganhar na medicina vais gastá-lo na política". Mas não gastei e estou bem assim.
Tive a sorte e o privilégio de conhecer Mário Soares e de ser amigo dele e acho que Marcelo tem outra caraterística de Soares: gosta disto, dá-lhe gozo a política, a vida
Quem será o candidato do PS à Presidência da República?
Que eu saiba o PS não tem candidato à Presidência. O PS é o partido de charneira em Portugal e é sempre nas eleições presidenciais que o PS se divide: teve Salgado Zenha e Mário Sores, teve Mário Soares e Manuel Alegre, teve Sampaio da Nóvoa e Maria de Belém e agora, se tiver, Ana Gomes e Marcelo Rebelo de Sousa. Mas penso que o PS, formalmente, não vai ter candidato. Eu admiro o Marcelo, penso que é um bom presidente que nos representa bem, é um homem culto, de consensos, vai ganhar tranquilo. Tive a sorte e o privilégio de conhecer Mário Soares e de ser amigo dele e acho que Marcelo tem outra caraterística de Soares: gosta disto, dá-lhe gozo a política, a vida.
O segundo mandato de Marcelo será tão facilitador ou tão confortável para António Costa e para o governo?
Os presidentes são sempre mais livres no segundo mandato. Mas penso que está no DNA de um presidente ser mais parte da solução do que do problema.
Se o país fosse sangue, teria uma doença, uma deficiência? Qual?
Anemia.
Se o governo fosse um tipo de sangue, a que grupo de sanguíneo pertenceria?
Zero negativo [0-].
Comentários