As experiências das mulheres muçulmanas variam enormemente entre e dentro de diferentes sociedades. Ao mesmo tempo, a sua adesão ao islão é um fator partilhado que afeta as suas vidas em graus diferentes e lhes dá uma identidade comum que pode servir para fechar as diferenças culturais, sociais e económicas entre elas. Enquanto que as mais importantes tradições e práticas do profeta Maomé foram preservadas e transmitidas pelas mulheres mais próximas (as esposas e filhas), as mulheres têm ficado com papéis mais secundários, sobretudo na história recente de vários países de maioria muçulmana – mas, mesmo neste universo, a realidade é diversa consoante o contexto ou os países de que falamos.
Num debate, em 2016, sobre Qual o futuro das mulheres no Islão?, a moderadora Barkha Duttiniciou a conversa da seguinte maneira: “Num tempo em que convivemos com o Estado Islâmico e em que o radicalismo cresce, somos confrontados com a questão: será que o islão é por inerência preconceituoso contra as mulheres ou serão aqueles que deturpam a mensagem do islão os responsáveis por esta discriminação?”
A questão continua presente e a realidade das mulheres em sociedades maioritariamente islâmicas é bem diferente consoante se fale da Arábia Saudita ou da Tunísia, do Irão ou do Paquistão, da Indonésia ou de Marrocos. Segundo Fatma Osman Ibnouf, autora do estudo Igualdade de género e direitos humanos das mulheres em textos islâmicos, “o declínio no estatuto da mulher e no seu poder económico tem estado mais relacionado com o aumento do islão político”. Neste caso, diz, “não são as ideologias islâmicas que determinam a posição das mulheres muçulmanas, mas sim o islão político, as interpretações primitivas de textos e as ideologias patriarcais” que constroem a posição da mulher.
No Alcorão, pode ler-se (Sura 33: 35): “Homens e mulheres que se renderam, homens crentes e mulheres crentes, homens obedientes e mulheres obedientes, verdadeiros homens e verdadeiras mulheres, homens resistentes e mulheres resistentes, homens humildes e mulheres humildes, homens e mulheres que oferecem a caridade, homens que jejuam e mulheres que jejuam, homens e mulheres que guardam as suas partes privadas, homens e mulheres que se recordam de Deus com frequência – para eles Deus preparou o seu perdão e uma recompensa abundante.”
Este versículo do Alcorão, nota Faranaz Keshavjee, muçulmana ismaili e investigadora em assuntos islâmicos, “mostra como Deus, através do Alcorão, trata de igual modo homens e mulheres”, diz, em declarações ao 7MARGENS. A investigadora portuguesa cita, a propósito, o livro dos historiadores e investigadores Farhad Daftary e Zulfikar Hirji, Islam, an Illustrated journey, para recordar que houve mesmo períodos em que as mulheres exerceram papéis destacados nas sociedades muçulmanas.
Zulfikar Hirji resume essa realidade e um dos episódios: “Ao longo da história islâmica, as mulheres foram participantes plenas de todos os aspectos da vida. Nas cortes de muitas dinastias islâmicas, as mulheres eram patronas de muitas instituições cívicas e culturais, e algumas ascendiam às mais altas hierarquias de poder. As mulheres reais das famílias mongóis muçulmanas, conhecidas como khatuns, eram muito estimadas. O seu estatuto é claramente refletido em muitas histórias oficiais mongóis e manuscritos pintados onde elas aparecem sentadas ao lado de governantes masculinos com um séquito de servidores reais. Shajar al-Durr (m. 1257), uma monarca da dinastia egípcia Bahri Mamluk (1250-1382), tinha moedas de ouro cunhadas com o seu próprio nome, privilégio caro e reservado aos governantes muçulmanos. Ela é uma das várias mulheres na história islâmica que ocupou o cargo de governante por direito próprio.”
Leis fundamentadas na religião
Noutro âmbito, a sharia, conjunto de leis religiosas que formam parte da tradição islâmica, deriva de preceitos religiosos do Alcorão e da Suna (os ditos e feitos do Profeta, consagrados também como lei) e considerados leis imutáveis de Deus. Por outro lado, o fiqh (interpretação humana da sharia) e a maneira como estas são aplicadas em tempos modernos tem sido objeto de disputa entre muçulmanos reformistas e tradicionalistas. Em várias sociedades islâmicas, ao contrário do que ocorre na maioria das sociedades ocidentais, não há separação entre a religião e o direito. Todas as leis são supostamente fundamentadas na religião e baseadas nas escrituras sagradas ou nas opiniões de líderes religiosos.
Fora do campo religioso em sentido estrito, há vários âmbitos que, influenciados pela sharia, permitem a leitura de que as mulheres são subalternizadas: violência doméstica, estatuto pessoal, casamento de crianças e direito da mulher à propriedade e consentimento:
– Muitos defendem que a sharia encoraja a violência doméstica contra mulheres, quando um marido suspeita de desobediência, rebelião ou deslealdade da parte da sua mulher (Alcorão, 4: 34).
– Em 2011, um relatório da UNICEF considerava que as leis da sharia discriminavam as mulheres numa perspetiva legal: em tribunal, um testemunho de uma mulher valia metade do testemunho de um homem.
– Os tribunais religiosos permitem o casamento de raparigas com menos de 18 anos, apesar das disposições legais de todos os países (exceto os do Irão, Líbano e Bahrain) proibirem casamentos de crianças. Nestes casos, a shariapode sobrepor-se à lei civil.
– Também a violação é considerada um crime em todos os países mas, em alguns (Bahrain, Jordânia, Iraque, Líbia, Marrocos, Síria e Tunísia), e de acordo com a sharia, permite-se que um violador escape à pena se se casar com a vítima. Noutros casos de violação, a vítima é acusada de adultério.
– A sharia garante às mulheres o direito de herdar propriedade; no entanto, dependendo do caso, pode ser menor que o direito do homem. Por exemplo, a herança de uma filha é normalmente metade da herança de um irmão (Alcorão 4:12).
Na sua maioria, as mulheres muçulmanas são encorajadas a estudar. O Alcorão defende os direitos das mulheres e homens de procurarem o conhecimento, independentemente do seu sexo.
Ler o Alcorão como um todo
Um estudo do Pew Research Center, instituto de investigação em sociologia, mostra que a falta de educação formal das mulheres costuma estar mais relacionada com a economia do que com a sua religiosidade: em países da África subsariana, os anos de escolaridade são mais baixos que na maioria dos países do Médio Oriente.
Na prática religiosa em si, as mulheres não podem animar orações ou fazer sermões tradicionais de sexta-feira. Em grandes mesquitas, onde elas podem entrar, ficam quase sempre separadas dos homens, sentando-se na parte de trás ou em espaços próprios.
Segundo Shabir Ally, presidente do centro de informação islâmica do Canadá, os muçulmanos tendem a ver tudo o que está escrito no Alcorão como “a fase final, a demarcação final de direitos e papéis na sociedade para homens e mulheres: não vemos que estas são normas que são parte de um progresso (que) tem de continuar.”
Ainda assim, há mulheres a tentar mudar o seu papel no islão. Alaa Murabit, física canadiana de origem líbia e uma das conselheiras do secretário-geral das Nações Unidas para os Objectivos do Desenvolvimento do Milénio, fundou, em 2011, uma organização sem fins lucrativos, A Voz das Mulheres Líbias, que pretende melhorar os direitos das mulheres naquele país. Como contava numa conferência em 2015, a organização encontrou um grande eco entre homens e mulheres pela utilização de interpretações e passagens do Alcorão que invocassem a ideia de paz e de igualdade entre homem e mulher.
Asma Barlas, investigadora e teóloga muçulmana, diz que terão de ser as mulheres a libertar-se da opressão que ainda vivem no islão – uma realidade construída com base em leituras erradas e parciais do Alcorão, considera. Numa entrevista publicada em Deus Vem a Público (ed. Pedra Angular, 2011), afirmava: “(A leitura) tem sido muito patriarcal, favorece o homem. Baseia-se em quatro ou cinco palavras do Alcorão – nem sequer são passagens, é meia linha aqui, meia linha ali. Mas é com base nelas que se constrói essa hierarquia de opressão, e se toma todo o texto refém dessas linhas. Os muçulmanos têm que desenvolver um método hermenêutico mais sofisticado, lendo o Alcorão como um todo.”
Faranaz Keshavjee alerta para a necessidade de “sair das generalizações que confundem teorias e práticas”: muitas muçulmanas portuguesas, por exemplo, estão integradas na vida e nos ritmos do país e a sua situação não tem a ver com o que vivem outras muçulmanas em outras latitudes.
“Há problemas relativos ao estatuto da mulher em todas as sociedades muçulmanas e não muçulmanas”, diz. Admitindo que o islão “carece de uma hermenêutica do Alcorão feita por mulheres” e que muitas delas “não se libertaram ainda das tarefas e papéis castradores da sua eventual capacidade de transformação social e de género”, acrescenta que, tal como todas as outras mulheres do mundo, também as muçulmanas “precisam de dinheiro para estudar, pensar, investigar e escrever”. Mas isto não é um problema religioso, acrescenta.
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