A frase que serve como apelo é curta, mas diz tudo: fique em casa. Por todo o mundo, afetado pela pandemia do novo coronavírus, este é o mote. Nas redes sociais, as fotografias de paisagens e cidades movimentadas estão a ser substituídas por quintais, quando os há, e pelo o conforto do lar.
Mas nem tudo é igual. Uns têm de reinventar os dias para sobreviver com miúdos, outros partilham apenas uma vida a dois, e ainda há quem esteja realmente isolado de tudo e de todos. Por outro lado, os hábitos variam consoante a geografia e a capacidade financeira. A forma de estar. A forma de mostrar o que se vive. E se "anónimos" vão partilhando os seus dias neste novo normal, as "celebridades" não são exceção. Mas as diferenças saltam à vista — e, por vezes, são duramente criticadas.
Vejamos como. Mas, antes, comecemos por um conto. Já leu "A Máscara da Morte Vermelha", de Edgar Allan Poe?
Nós resumimos, caso não esteja a par da história.
Viviam-se dias de terror, num país distante. A Morte Vermelha dizimava a população de um reino: quem a tocasse, tinha o lado esquerdo do corpo e rosto banhados de sangue, morrendo ao fim de 30 minutos. E, por motivos óbvios, era temida por (quase) todos. Uma pessoa não tinha medo — o Príncipe Próspero, que se isolou no seu castelo levando provisões e pessoas para que não lhe faltasse a diversão: tinha músicos, atores e dançarinos.
Lá fora, a Morte Vermelha atacava, mas dentro do castelo os dias eram de festa. Quem lá estava achava-se seguro e ali não entrava nem saía ninguém: deitaram a chave fora. Todavia, tudo mudou no dia em que o Príncipe fez um baile de máscaras.
Inicialmente, era só mais um baile. Tudo corria bem. Porém, ao soar as doze badaladas (como mandam as boas histórias), fez-se um silêncio assustador e todos se aperceberam da presença de um estranho mascarado no castelo. Como é óbvio, o Príncipe Próspero não gostou da invasão do seu espaço seguro. Por isso, perseguiu o mascarado pelos salões.
E encontrou-o. Quando conseguiu olhar para o estranho — sim, adivinhou: é a Morte Vermelha —, deixou cair a espada, gritou e caiu morto. Todas as outras pessoas do castelo foram acudir, ouvindo o grito. Arrancaram a máscara do estranho e, surpresa das surpresas, nada havia debaixo. Todos perceberam o que tinha acontecido: quem eles mais temiam tinha entrado no castelo. E, um a um, foram sucumbindo.
Voltemos à realidade e à pandemia do novo coronavírus, batizado de covid-19. Olhando para a história, há que notar a sensatez de ficar em casa. Porém, o problema vem depois: a forma como se pensa ficar isolado sem estar em isolamento, como se não houvesse necessidade de olhar para o resto do mundo. Mas há. Porque, por vezes, é o resto do mundo que vem até nós.
Scot Lehigh, colunista do Boston Globe, escreveu precisamente sobre este conto e deixa a moral da história, aplicada aos dias de hoje, em jeito de pergunta: "quem de nós é semelhante à figura fantasmagórica que vagueia a espalhar a doença?". O pedido, portanto, é para que se fique em isolamento, mas de forma consciente.
Todavia, há quarentenas e quarentenas, critica-se por aí. Talvez sem castelo ou bailes de máscaras, mas com muito luxo ainda assim.
O luxo que ajuda a aliviar o isolamento: a realidade de uns e a crítica de outros
A covid-19 que saltou da China para o resto do mundo começou por gerar uma corrida a alguns produtos. Máscaras, álcool, papel higiénico e bens essenciais. Depois, com o aumento das infeções, das mortes e a inevitável aplicação de medidas de contenção, veio o medo e a incerteza: Terei emprego quando isto terminar? Como se vão pagar as contas? Quem vai ficar com os miúdos que estão sem aulas? Como é que sou pai/mãe, babysitter, chef e me mantenho produtivo em teletrabalho?
Mas nem todos tiveram essas preocupações. Escreve a Forbes que, enquanto isto acontecia para uns, os "super-ricos" embarcaram nos seus iates e jatos particulares, para "fugir dos problemas". David Geffen, produtor bilionário com influência na música e no cinema, escreveu no Instagram (numa publicação depois eliminada), o destino da sua quarentena, estávamos final de março: "Isolado nas Granadinas, a evitar o vírus. Espero que todos estejam seguros".
Nos Estados Unidos da América, as casas abandonas em Manhattan resultaram de fugas para ilhas paradisíacas ou de viagens para os Hamptons [grupo de vilas de luxo, localizadas em Nova Iorque] ou para casas de descanso em áreas rurais no Connecticut. Voltaram a entrar na moda os "bunkers" preparados para catástrofes. E nas viagens para estes novos destinos quase sempre se incluíram médicos ou enfermeiros para tratar das famílias, no caso de serem infetados.
Na Europa, as críticas também não tardaram a surgir. Em França, Leïla Slimani e Marie Darrieussecq, duas escritoras aclamadas, deixaram também o reboliço da cidade para se isolarem no campo — o que lhes valeu acusações de elitismo e comparações com Maria Antonieta, conta o The Guardian.
Slimani escreveu, numa crónica no Le Monde, a descrição do que vê da sua casa. "Pela janela do meu quarto vi o amanhecer surgir sobre as colinas. A erva gelada, os galhos das tílias com os primeiros rebentos a aparecerem". Por sua vez, Darrieussecq escreveu no Le Point o seu cenário. "Vamos ver o mar. Bate, pesado, forte, indiferente. A praia está deserta. Eu tenho uma visão de um planeta sem humanos".
E as reações não tardaram a surgir. Diane Ducret, também escritora, apresentou o oposto da situação, dizendo que vive não um conto de fadas mas um "romance picaresco" [com toques satíricos e que apresenta um herói da classe social baixa, que vive da sua inteligência numa sociedade corrupta].
"Às vezes, as nossas elites intelectuais parecem-me infundadas, como se a revolução francesa não tivesse ocorrido em todas as áreas, como se apenas uma determinada classe social estivesse autorizada a expressar o gosto da época", escreveu. "Da minha janela não se consegue ver o céu. O prédio do lado oposto está sujo, as ruas vazias enchem-me de ansiedade. Ser despida por um vírus nos meus 30 anos, morrer sozinha, talvez num apartamento de dois quartos, não me tenta muito".
Num universo mais próximo de nós, também Cristiano Ronaldo foi alvo de críticas por ficar em suposto isolamento num apartamento de luxo. O jogador português deixou Itália para visitar a mãe, que tinha sofrido um AVC, e acabou por permanecer na Madeira, não regressando a Turim. Depois disto, vários jogadores da Juventus seguiram-lhe o exemplo.
Giovanni Cobolli Gigli, o ex-presidente do clube, comentou o sucedido na Rádio Punto Nuovo. "O Ronaldo disse que foi [para a Madeira] por causa da mãe, mas agora só aparece a tirar fotos na piscina. Quando se abriu a exceção para Ronaldo, a situação descambou e outros quiseram ir embora. Não devia ter sido assim. Deviam ter ficado todos de quarentena", apontou. "Quando regressarem será mais difícil voltarem a recuperar a forma porque vão ter de ficar 14 dias de quarentena. A coisa na Juventus complicou-se quando Cristiano Ronaldo se foi embora", reiterou.
Depois disto, o jogador português foi ainda criticado por ter sido avistado no Funchal a fazer compras, quando se pede o máximo isolamento. Também Georgina Rodríguez foi alvo de crítica ao ter sido avistada a passear na rua com os três filhos mais novos de Ronaldo.
Além da quarentena em locais de luxo, a Forbes evidenciou uma outra realidade: quem tem mais posses parece aceder mais facilmente a testes para o novo coronavírus e a tratamento, se for caso disso.
A título de exemplo, Matt Gaetz, congressista dos EUA na Florida, foi imediatamente testado após ter estado em contacto com uma pessoa infetada. Donald Trump e Bolsonaro também fizeram testes pelo mesmo motivo — e os resultados não tardaram a surgir.
No desporto não foi diferente. Na NBA, um jogador do Utah Jazz testou positivo para Covid-19 e, depois dele, 58 testes foram rapidamente feitos para a totalidade da equipa e organização. Contudo, a explicação apresentada é simples: são pessoas que têm melhores planos de saúde e podem arcar com custos elevados.
Conta o The New York Times que entre os impactos sociais do novo coronavírus está o "rápido desmantelamento do culto das celebridades". Num tempo em que todos vivemos o mesmo, o acentuar da riqueza não é bem visto. Além disso, o "sonho da mobilidade", ou seja, a possibilidade de ascender à mesma condição social, é travado com a economia a parar, com o aumento do número de mortes e com a ideia de um futuro "congelado" dentro de quatro paredes.
Nesse sentido, as redes sociais não perdoam: surgiu a hashtag #guillotine2020, numa alusão à Revolução Francesa, dada a revolta contra as elites e a morte por guilhotina. Além disso, assim que os supermercados começaram a ter falhas nas prateleiras, surgiu outra hashtag: #EatTheRich [comer os ricos, numa tradução livre].
Quando Pharrel Williams pediu aos fãs que fizessem doações para ajudar os profissionais na linha da frente no combate à Covid-19 a resposta não tardou: e se o cantor "esvaziasse os seus bolsos"?
Destinos de luxo, acompanhantes médicos — só ao alcance de alguns — e, claro, produtos topo de gama
Afinal, o luxo pode aplicar-se a tudo, mesmo a máscaras — tantas vezes indisponíveis para quem delas mais precisa, os profissionais de saúde — ou a gel desinfetante.
Sobre esta preparação para o surto da Covid-19, escrevia o The New York Times no início de março que "os ricos não estão a poupar esforços no que diz respeito a minimizar a sua experiência com o coronavírus".
Logo no início do surto — ainda sem existirem recomendações precisas quanto à utilização generalizada de máscaras pelos cidadãos, alguns famosos optaram por se apresentar publicamente com as mesmas. No final de fevereiro, que a atriz Gwyneth Paltrow fez uma publicação no Instagram onde informava estar “a caminho de Paris”, para a Fashion Week, com uma máscara preta, mais robusta do que as habitualmente utilizadas. “Eu já participei neste filme”, escreveu, numa alusão à sua participação no filme Contagion, em 2011.
A máscara em questão faz parte da coleção da empresa sueca Airinum, que apresenta cinco camadas de filtragem e um "acabamento ultravioleta e agradável à pele". Apesar do preço (entre os 69 e 0s 99 dólares, conforme o modelo, a moda pegou e a marca depressa viu as suas máscaras esgotadas. Neste momento, o site apenas permite a compra com um código, proveniente de uma lista de espera.
Também os desinfetantes para as mãos foram preferidos em versões de luxo: a Byredo, uma marca europeia, fez um produto com "notas florais de pêra e bergamota", num valor de cerca de 32€ (e esgotou rapidamente).
Esperando casos mais extremos, surgiram também "kits de sobrevivência". A Judy, uma startup liderada por Simon Huck, amigo de Kim Kardashian, criou vários kits, com preços entre os 60 e os 250 dólares, podendo abranger entre uma e quatro pessoas conforme o tipo. Lá dentro há de tudo um pouco: primeiros socorros, toalhitas, desinfetante para as mãos, pilhas, ferramentas, lanterna, máscaras, entre outros produtos.
SARS-CoV-2 ou Covid-19. Este vírus que assusta o mundo
A Covid-19, causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2, é uma infeção respiratória aguda que pode desencadear uma pneumonia.
Surgido em dezembro, na China, o vírus já infetou mais de 1,4 milhões de pessoas em todo o mundo, mais de 88 mil das quais morreram. Há também registo de mais de 300 mil recuperações.
O continente europeu é aquele onde se regista o maior número de casos.
A maioria das pessoas infetadas apresentam sintomas de infeção respiratória aguda ligeiros a moderados, sendo eles febre (com temperaturas superiores a 37,5ºC), tosse e dificuldade respiratória (falta de ar).
Em casos mais graves pode causar pneumonia grave com insuficiência respiratória aguda, falência renal e de outros órgãos, e eventual morte. Contudo, a maioria dos casos recupera sem sequelas. A doença pode durar até cinco semanas.
Considera-se atualmente uma pessoa curada quando apresentar dois testes diagnósticos consecutivos negativos. Os testes são realizados com intervalos de 2 a 4 dias, até haver resultados negativos. A duração depende de cada doente, do seu sistema imunitário e de haver ou não doenças crónicas associadas, que alteram o nível de risco.
A Covid-19 transmite-se por contacto próximo com pessoas infetadas pelo vírus, ou superfícies e objetos contaminados. Quando tossimos ou espirramos libertamos gotículas pelo nariz ou boca que podem atingir diretamente a boca, nariz e olhos de quem estiver próximo. Estas gotículas podem depositar-se nos objetos ou superfícies que rodeiam a pessoa infetada. Por sua vez, outras pessoas podem infetar-se ao tocar nestes objetos ou superfícies e depois tocar nos olhos, nariz ou boca com as mãos.
Estima-se que o período de incubação da doença (tempo decorrido desde a exposição ao vírus até ao aparecimento de sintomas) seja entre 2 e 14 dias. A transmissão por pessoas assintomáticas (sem sintomas) ainda está a ser investigada.
Vários laboratórios no mundo procuram atualmente uma vacina ou tratamento para a Covid-19, sendo que o tratamento para a infeção é dirigido aos sinais e sintomas que os doentes apresentam.
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