"Mesmo que o Governo quisesse não podia fazer nada, mesmo que a Assembleia da República quisesse, mesmo que o senhor Presidente da República quisesse nenhum de nós o podia fazer nos termos da lei que está em vigor desde 1986. É assim que está na lei", afirmou António Costa no passado fim de semana, durante a apresentação das medidas que iam passar a vigorar durante o novo estado de emergência que dura até ao próximo dia oito de dezembro, quando questionado sobre a realização do Congresso do Partido Comunista deste fim de semana.

A questão não será assim tão simples, mas é possível que seja entendida se se perceber como funciona o quadro jurídico vigente em Portugal.

Ora, o primeiro ponto que precisa de ficar assente é o de que a Constituição da República Portuguesa funciona como a moldura que abraça todo o quadro de leis. Ou seja, todas as leis da Assembleia da República e do Governo têm de respeitar o que está escrito na Constituição.

Desta forma, segundo explicou ao SAPO24 o Professor Miguel Prata Roque, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, pela Constituição, de acordo com os artigos 46º e 51º, não é possível existir uma interferência do Estado no funcionamento dos partidos políticos e as atividades destes não podem ser, em princípio, suspensas – a não ser que haja lei ou decisão judicial que o preveja.

Esta é, assim, a regra base: à partida, o Estado não pode afetar direitos políticos, como o realizar do Congresso do Partido Comunista Português.

No entanto, a mesma Constituição também abre portas a que estes direitos políticos sejam possivelmente limitados, em situações como a do atual estado emergência.

O artigo 19º/6 da Constituição estabelece o seguinte:

“A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e religião.”

Como nos explicou o Professor Tiago Serrão, também da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, estes são, segundo a doutrina jurídica, os chamados direitos “fundamentalíssimos” - aqueles direitos que são tão fundamentais que a Constituição proíbe que em caso algum sejam limitados por quem compõe as leis.

Não obstante, este leque de direitos “fundamentalíssimos” não consagra, como é possível ler, qualquer proteção a direitos de cariz político. Assim, se não são protegidos pela Constituição, então não têm, obrigatoriamente, de ser protegidos pelas leis do Governo ou da Assembleia da República.

Deste modo, em tese, poderia ser escrita uma lei que definisse que “em estado de emergência é possível limitar direitos dos partidos políticos”. Ainda assim, não é isso que está em vigor nas leis atuais (que concretizam, portanto, a Constituição).

O regime que tutela as situações em que é proclamado o estado de emergência é a Lei nº 44/86, de 30 setembro, e nessa lei ficou decidido que, apesar de a Constituição não obrigar a tal, “as reuniões dos órgãos estatutários dos partidos políticos, sindicatos e associações profissionais não serão em caso algum proibidas, dissolvidas ou submetidas a autorização prévia” (como refere o artigo 2º/2,e) da Lei).

Por outras palavras, ainda que a Constituição não o obrigasse, em 1986, quando a lei foi aprovada, ficou decidido que em estado de emergência não fazia sentido proibir reuniões dos órgãos estatutários dos partidos políticos – e é este o regime que vale nos dias de hoje.

Desta maneira, de acordo com a lei em vigor, de facto, nem o Governo nem a Assembleia da República nem o Presidente da República poderiam fazer algo contra a realização do Congresso do Partido Comunista Português, que se inicia nesta sexta-feira.

No entanto, como explicaram ao SAPO24 os Professores Miguel Prata Roque e Tiago Serrão, uma lei, como qualquer diploma legal, pode sempre ser alterada, e esta lei que tutela o regime de estado de emergência não é exceção.

O que seria preciso, então, para que o Congresso pudesse ser proibido?

Para que esta fosse modificada seria necessário que fosse proposta uma nova lei por iniciativa da Assembleia da República. Por exemplo, poderia partir de um grupo parlamentar.

Sendo uma matéria que tem a ver com partidos políticos e liberdade de associação, o Governo não poderia propor tal alteração, porque se trata de uma questão de reserva absoluta de competência da Assembleia da República – de acordo com o artigo 164º, h) da Constituição.

Para ser aprovada esta nova lei seria necessária maioria absoluta dos deputados, ou seja, 116 votos a favor – pelos artigos 166º/2 e 168º/5 da Constituição.

O Professor Tiago Serrão explica que defende uma atualização desta lei, de maneira a ser mais conforme à situação de pandemia que vivemos – propondo, por exemplo, um maior incentivo ao uso de meios telemáticos ou do online neste tipo de ajuntamentos políticos.

O Professor Miguel Prata Roque manifestou, também, preocupação com o facto de uma lei deste género necessitar de ser abstrata, não podendo ser considerada uma “lei-medida” ou uma “lei-fotografia”. Ou seja, a ser criada, não podia ser destinada a um único caso, como o Congresso do PCP, pois tal violaria o princípio da separação de poderes.

  • Caso esta nova lei fosse aprovada, seria ainda necessário que o Decreto do Presidente da República que declara o estado de emergência contivesse uma autorização para que o Governo pudesse afetar direitos políticos.

Atualmente, sob o Decreto do Presidente da República nº 59-A/2020, de 20 de novembro, o Governo não está autorizado a limitar estes direitos políticos.

  • No caso do Decreto do Presidente da República o permitir, o Governo, através do Conselho de Ministros, teria de decidir favoravelmente à limitação de direitos políticos enquanto está em vigor o estado de emergência.

Atualmente, o Decreto da Presidência do Conselho de Ministros nº 9/2020, de 21 de novembro, também não o permite.

Conclusão

Em teoria, segundo os Professores Miguel Prata Roque e Tiago Serrão, seria possível que, juridicamente, o Congresso do PCP deste fim de semana fosse proibido ou obrigado a acontecer em moldes diferentes do que vai acontecer.

No entanto, para que tal acontecesse seria necessário um esforço conjunto entre Assembleia da República, Presidente da República e Governo.

Atualmente, dado o quadro jurídico em vigor, tal afetação dos direitos políticos não é possível.

Pesquisa e texto por João Maldonado

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