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A Passadeira Rolante do Ditador

Nunca serei conhecido como o ex-presidente do Zaire.
Mobutu Sese Seko, ex-presidente do Zaire

Ser um ditador é como estar preso num círculo vicioso, numa passadeira rolante da qual não se consegue nunca sair. Os tiranos podem correr e correr, mas o melhor que farão é permanecer de pé. Se se distraírem por um só instante, as suas pernas podem escorregar, e eles magoar-se-ão. Muitos ditadores que caem nunca mais se reerguem. E também não conseguem sair em segurança. No mundo dos tiranos, tentar permanecer no poder pode acabar mal, mas renunciar-lhe voluntariamente pode ser ainda mais perigoso.

Porém, se é tão difícil sair da passadeira rolante, porque haveria alguém de entrar nela, desde logo?

Não é necessariamente um mau lugar para se estar, pelo menos durante algum tempo. Os políticos de todos os lugares tendem a ser relativamente ricos. Por exemplo, a riqueza média de um membro do Senado dos Estados Unidos situava-se nos 1,76 milhões de dólares em 2018. Nas democracias, alguns ex-líderes podem ganhar milhões com palestras e livros. A Boris Johnson (ou Alexander Boris de Pfeffel Johnson, para ser mais preciso), por exemplo, pagaram quase 250.000 libras para fazer um único discurso em Singapura, depois de ele abandonar Downing Street.

Contudo, as democracias têm regras que impedem os políticos de meterem as mãos nos cofres do Estado. Por muito que os líderes políticos democráticos possam querê-lo, há uma forte probabilidade de serem descobertos se se envolverem em corrupção, uma vez que enfrentam jornalistas investigativos, polícias independentes e uma sociedade civil vibrante. Se forem mesmo descobertos, é provável que haja consequências sérias, porque os juízes raramente podem ser influenciados (ou pagos) para fechar os olhos. Assim que uma infração vem à tona, os políticos da oposição farão o melhor que puderem para tornar as vidas dos líderes tão miseráveis quanto possível, de maneira a vencer a eleição seguinte. Não é um sistema perfeito, mas geralmente impede os piores abusos.

Os tiranos, em contraste, operam num ambiente que se parece mais com o do Faroeste. Podem existir regras, mas elas não são aplicadas, ou são aplicadas seletivamente. As autocracias são máquinas de enriquecimento. Livres das restrições que refreiam os líderes democráticos, as oportunidades para roubar são quase infinitas.

"É Desta Que Leio Isto"

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Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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A capital precisa de um novo aeroporto? Os tiranos podem dar o contrato à sua nora para garantir que fica tudo em família. Uma em- presa estrangeira não quer mais problemas com as autoridades fiscais? Fá-las pagar uma «taxa» para encerrar o caso. Importa assim tanto se todas as munições encomendadas chegam até ao exército? Talvez uma parte delas possa perder-se em trânsito, depois de uma certa conta bancária estrangeira ser creditada com o valor correspondente no saldo. Uma empresa estatal está prestes a ser privatizada? Porque não vendê-la a um apoiante por 10 por cento do seu valor real? Uma mão lava a outra e o dinheiro nunca para de fluir.

Quando tudo é feito de forma eficaz, todos os que estão no topo fazem dinheiro. Porém, e o tirano propriamente dito? Ele pode ficar inacreditavelmente rico.

O Turquemenistão é uma das sociedades mais secretas do mundo. Sendo um dos países menos visitados do planeta, o seu povo costumava ser incrivelmente pobre. Em 1998, mais de quatro em cada dez turcomanos viviam em pobreza extrema — tendo acesso a menos de 2,15 dólares por dia. Contudo, isso não significa que o Turquemenistão, o país propriamente dito, seja pobre. Longe disso. De acordo com o Banco Mundial, «estima-se que as reservas de gás do Turquemenistão sejam as quartas maiores do mundo, representando cerca de 10 por cento das reservas globais». «Além do algodão e do gás natural», dizem os analistas do Banco, «o país é rico em petróleo, enxofre, iodo, sal, argilas bentoníticas, calcário, gesso e cimento — tudo potenciais investimentos para indústrias químicas e de construção».

O problema do Turquemenistão não era tanto não haver dinheiro, mas o dinheiro não ser distribuído às pessoas que dele precisavam. Contudo, há pelo menos um turcomano que é sempre rico: o homem no topo. Na viragem do milénio, esse homem era Saparmurat Niyazov, um ditador mais conhecido pelo absurdo culto da personalidade que criou depois de ter chegado ao poder em 1985. Entre outras ações, proibiu que se fumasse em público depois de uma cirurgia cardíaca o ter obrigado a deixar os cigarros, deu a si próprio o título de «Turkmenbashi» (o pai da nação), proibiu os homens de ouvir rádio em carros e renomeou os meses do ano em homenagem a si próprio e à sua mãe.

Niyazov também escreveu um livro chamado Ruhnama. Uma combinação de biografia, poesia e autoajuda, o livro foi essencialmente tratado como um texto religioso. Todos os estudantes turcomanos tinham de o ler. Os funcionários públicos tinham sessões de estudo obrigatórias sobre ele todas as semanas. (O ministro dos Negócios Estrangeiros, por exemplo, tinha as suas às 17.30, às quartas-feiras.) A glorificação era tão extrema que o próprio Niyazov uma vez constatou secamente: «Várias pessoas dizem que é um culto de personalidade.» E era.

Quando Niyazov não estava ocupado a criar regras arbitrárias para o povo turcomano, estava a roubá-lo. Em 2001, o Turquemenistão e a Ucrânia assinaram um acordo relacionado com o gás. Segundo uma investigação posterior da revista alemã Der Spiegel, o acordo deveria gerar cerca de 1,7 biliões de dólares só no ano seguinte. Contudo, uma vez que o Turquemenistão era (e continua a ser) uma ditadura, grande parte do dinheiro não foi para o orçamento do governo, mas para contas bancárias estrangeiras sob o controlo direto de Saparmurat Niyazov. Os detalhes exatos são desconhecidos, mas mesmo que os relatórios sejam algo imprecisos e Niyazov tenha «apenas» desviado 10 por cento, isso representa 170 milhões de dólares num único acordo, num único ano. E, claro, este não foi o único caso de corrupção. Quando uma organização não governamental (ONG) com sede em Londres investigou as finanças do ditador, concluiu: «Uma porção significativa da receita nunca chega aos cofres do estado.» «Uns assusta- dores 75 por cento dos gastos do Estado», continuava, «parecem ocorrer fora do orçamento [do governo]». Dadas estas oportunidades, não é de admirar que os ditadores sejam frequentemente os homens mais ricos do seu país.

Esse é um incentivo muito grande para entrar na passadeira rolante. Contudo, a passadeira é implacável.

A 5 de janeiro de 2022, Asel, de cinquenta e sete anos, estava na praça principal de Almaty. O regime vigente no Cazaquistão, o maior vizinho do Turquemenistão, tinha vindo a cortar subsídios ao gás de petróleo liquefeito. Os protestos começaram rapidamente no Oeste do país, onde o gás era especialmente importante para as pessoas se deslocarem. Quando Asel entrou na Praça da República, em frente ao que costumava ser a residência presidencial, o país havia sido tomado por manifestantes.

Naquele dia, na maior cidade do Cazaquistão, a situação ficou fora de controlo. Enquanto Asel protestava pacificamente, chegou um grupo de jovens. Com os rostos escondidos por máscaras, quebraram janelas e destruíram carros a caminho do edifício do governo, mesmo ao pé da praça. Balas começaram a voar e as pessoas entraram em pânico. Asel perdeu a consciência. Quando recuperou os sentidos, a sua perna sangrava gravemente. Ela havia sido atingida e, se não conseguisse receber tratamento médico, não sobreviveria por muito tempo. Mais balas zumbiram pelo ar, quase lhe acertando.

Arrastada em direção a um camião por dois homens, ela foi levada ao hospital. A dor era agora tão intensa que não conseguia evitar gemer de aflição. Algumas pessoas no veículo sobrelotado estavam muito pior. «Várias pessoas estavam em cima da minha perna ferida. Algumas não respiravam», disse Asel mais tarde à BBC. No hospital, o pesadelo de Asel não terminou. Homens armados foram de enfermaria em enfermaria, procurando pessoas que ha- viam ousado protestar contra o regime. «Se forem protestar outra vez, matamos-vos», gritou um deles. A única razão pela qual Asel não foi levada por eles naquele dia foi porque a bala na sua perna a impossibilitava de andar.

Vista de fora, parecia ser a história clássica de um regime tirânico a lutar contra o próprio povo: este insurgiu-se e o regime fez de tudo para o reprimir. Contudo, por dentro, a agitação cazaque era muito mais do que isso. Era a luta de um tirano, que havia formalmente renunciado, contra outro, que tentava sair da sombra do seu chefe.

Nursultan Nazarbayev entrou na passadeira rolante em 1984, com a jovem idade de quarenta e três anos, quando se tornou primeiro-secretário do Partido Comunista do Cazaquistão. Nessa época, o país ainda fazia parte da União Soviética. Depois da dissolução da URSS, ele tornou-se ditador do Cazaquistão. Posteriormente, em 2019, ele tentou renunciar.

Nazarbayev havia sido bem-sucedido a acumular um poder pessoal incrível ao longo dos anos. No dia da sua demissão da presidência, ele disse: «Tomei a decisão, que não foi fácil para mim, de renunciar como presidente... Continuarei com vocês. Cuidar do país e do seu povo continuará a ser a minha preocupação.»

Inicialmente, tudo parecia correr bem para o antigo presidente. Astana, a capital do país, foi renomeada «Nur-Sultan» em sua honra. Se visitassem a cidade vindos do estrangeiro, o mais provável é que voassem para o Aeroporto Internacional Nur-Sultan, também rebatizado em homenagem a Nazarbayev. Na cidade propriamente dita, poderiam igualmente deparar-se com a Universidade Nazarbayev e a Avenida Nazarbayev. O homem em si já não era presidente, mas ele manteve o título de «Elbasy» — ou «Pai da Nação» em cazaque. O título de Elbasy, que lhe foi concedido em 2010, significava que ele continuava a ter privilégios especiais — como a imunidade contra processos. Nazarbayev era intocável; ou pelo menos assim parecia. Contudo, ele deparou-se então com um problema que muitos haviam enfrentado antes dele: é difícil proteger-se depois de abdicar das alavancas do governo. Isso porque é impossível ser ditador sem quebrar leis e fazer inimigos. Há ditadores que roubaram, torturaram, talvez até tenham matado. Então, se alguma vez eles quiserem renunciar, precisam de se assegurar de que nada disso os perseguirá. Para o fazer, precisam de alguém no topo que zele por eles. Encontrar essa pessoa é incrivelmente desafiante.

O sucessor escolhido a dedo por Nazarbayev, o diplomata de carreira Kassym-Jomart Tokayev, era visto como tão incapaz que foi uma vez descrito como a «mobília» de Nazarbayev. Na verdade, o controlo de Nazarbayev permaneceu inicialmente tão rigoroso que o novo presidente tinha de ter a aprovação formal do antigo presidente para escolher a maioria dos novos ministros. O presidente Tokayev não pôde sequer escolher o chefe do seu próprio serviço secreto sem a aprovação de Nazarbayev. O facto de Nazarbayev conseguir limitar Tokayev desta forma foi parte da razão pela qual ele foi escolhido. Além disso, uma vez que Tokayev havia passado grande parte da sua vida profissional no estrangeiro, representando o regime em locais como Singapura e China, Nazarbayev julgava que Tokayev carecia das redes e alianças internas para o desafiar. O plano era simples: Nazarbayev renunciaria formalmente, mas continuaria a exercer o poder através de Tokayev e de outros, para garantir que se manteria em segurança.

Não é uma história incomum. Os ditadores entram na passadeira rolante a julgar que podem tornar-se ricos ou desfrutar do poder que tal posição acarreta. E, por um tempo, isso funciona para eles. Contudo, mais tarde ou mais cedo, devido à idade avançada ou ao cansaço, eles querem renunciar. Então concebem um plano: ceder um pouco aqui, ceder um pouco ali, sair da máquina.

Na realidade, ceder um pouco não funciona: se eles cedem um pouco, arriscam tudo. Em pouco tempo, isto também se tornou claro para Nazarbayev. A sua sorte começou a esgotar-se quando os protestos se espalhavam. «Shal, ket» («Velho, vai embora!»), gritavam os manifestantes. Sendo grande parte da raiva direcionada contra o sistema que o velho havia criado, Tokayev aproveitou a oportunidade para expandir o seu poder.

A 5 de janeiro de 2022, o dia em que Asel foi alvejada em Almaty, Nazarbayev perdeu a sua presidência do Conselho de Segurança. Tokayev também assumiu a liderança do Nur Otan, o partido político presidencial que desde então foi renomeado Amanat. E o feriado que celebrava o ex-presidente do país? Cancelado. E a capital de Nur-Sultan? Voltou a ser Astana. Talvez mais preocupante para o antigo presidente, o sucessor escolhido a dedo também começou a remover alguns dos homens de Nazarbayev das estruturas de poder do regime. O chefe do KNB, a poderosa agência de inteligência interna do país, não só foi substituído no seu cargo como também preso por traição. Então, na manhã de 6 de janeiro, veio o golpe final para Nazarbayev, quando três mil paraquedistas russos, a pedido de Tokayev, aterraram no Cazaquistão para defender o regime. Com a força do exército russo aparentemente do seu lado, Tokayev era agora inquestionavelmente o homem mais poderoso do país.

Nenhuma lei, título pomposo ou posto num conselho significa o que quer que seja assim que os tiranos deixam o poder. O único fator que importa é se as pessoas que vêm depois do tirano são suficiente- mente poderosas para começar a minar o poder do seu predecessor de maneira a expandir o seu. Se o forem, normalmente vão fazê-lo — e isso começou a acontecer na Astana Nur-Sultan. Os eventos estavam fora do controlo de Nazarbayev. Ele arriscava perder o dinheiro, a liberdade e até mesmo a vida. A sua família estava também em risco.

Há aqui um dilema central que não pode ser resolvido. Por um lado, os tiranos que procuram renunciar têm de encontrar alguém suficientemente poderoso e competente para protegê-los quando eles já não estiverem no poder. Por outro lado, alguém que é suficientemente competente e poderoso para os proteger também os pode destruir. E, frequentemente, os seus sucessores efetivamente destroem o tirano que está de saída, porque é raro que um tirano que se preze se permita desempenhar um papel de segundo plano.

Os ditadores que tentam passar a tocha muitas vezes queimam-se. Então, se isso não funciona, que alternativas existem depois de eles entrarem na passadeira rolante? Uma opção seria transformar o país numa democracia, ao invés de passar o poder para o próximo tirano. Soa apelativo, principalmente porque punições severas para antigos líderes são menos prováveis em democracias do que em autocracias. Como descobriram os cientistas políticos Barbara Geddes, Joseph Wright e Erica Frantz, a democratização mais do que duplica a probabilidade de um «bom» resultado para os líderes depois de eles abandonarem o cargo.

Há vários modelos diferentes de democracia. A democracia alemã envolve um sistema parlamentar, no qual múltiplos partidos se juntam para formar coligações. No Reino Unido, o sistema de votação é diferente, pelo que as coligações são mais incomuns — mas já não são inéditas. Nos Estados Unidos, o presidente é também o chefe das forças armadas e, se necessário, ele ou ela pode ordenar uma ação militar. Os suíços organizaram a sua democracia de uma maneira que é muito mais direta. Por vezes, quando são recolhidas assinaturas suficientes, todos os envolvidos podem votar, não apenas nos políticos que os representam, mas a favor ou contra políticas específicas. Em setembro de 2022, por exemplo, os eleitores suíços tiveram direito a um voto direto a respeito da «pecuária industrial» — poderiam tê-la proibido, mas escolheram não o fazer.

A maioria dos tiranos prefere prejudicar a ajudar a democracia. As democracias variam enormemente, mas o que todas têm em comum é que os eleitores estão no comando. Pode haver intermediários (na forma de políticos) e nem todos os votos poderão ter a mesma importância, mas o povo pode mudar o seu governo se estiver insatisfeito com ele.

Para os tiranos, ser um presidente ou um primeiro-ministro mediano numa democracia não substitui o comando de todo o Estado a partir dos confins do palácio presidencial. Deveriam eles, de repente, permitir o jornalismo de investigação? O Glorioso Pai da Revolução deverá ser constrangido pelos parlamentares? E deixar de ser possível transformar concessões mineiras em milhões? Não, obrigado.

Talvez o mais importante seja que não há garantia de que uma tentativa de democratização permita que os tiranos permaneçam no poder. Eles podem, apesar de tudo, acabar por perder o cargo ou, pior, ser responsabilizados por parlamentares habilitados ou juízes independentes. Tais cenários são especialmente ameaçadores para os ditadores personalistas. De acordo com um estudo sobre o colapso de regimes autocráticos, a probabilidade de um resultado «bom» para eles é apenas de 36 por cento, mesmo que a democratização resulte. Outros tipos de ditadores têm maiores incentivos para democratizar. Para os líderes autoritários que obtêm o seu poder do facto de estarem no topo de um partido político, o partido pode atuar como um escudo, protegendo o antigo tirano das massas. Contudo, um ditador personalista, o tipo com mais poder pessoal, não tem nada disso. Assim, mesmo que ocorra uma transição para a democracia, há uma grande probabilidade de ele ficar em apuros.

E mesmo que desativar a passadeira rolante fosse desejável, não é uma opção que todos os tiranos tenham. Podem tentar puxar a tomada, mas isso não significa que eles verdadeiramente alcançarão um ponto no qual o seu país se torne numa democracia. As principais razões para isso são as preocupações das elites ao seu redor.

Esta não é apenas uma decisão para os líderes, mas também para os cortesãos e mediadores de poder ao redor do palácio, que terão igualmente interesse na sobrevivência do regime. Tal como o tirano, muitas destas pessoas terão quebrado a sua quota-parte de leis. Talvez tenham sido elas a fazer desaparecer os inimigos do líder. Talvez tenham sido elas os apoiantes leais que receberam uma empresa recentemente privatizada por 10 por cento do seu valor real.

Todos estes fatores podem complicar uma transição para a democracia, mas isso pode tornar-se ainda mais difícil quando o exército se opõe à democratização. Imagine-se o seguinte cenário: um autocrata decide que chegou a hora da democratização, porque é o rumo menos mau para ele. Os oficiais militares não concordam. Talvez eles tenham atualmente muitas oportunidades de enriquecimento e prefiram ser ricos e servir um ditador a ser pobres e servir um líder democrático.

Contudo, para os soldados, trata-se de mais do que de dinheiro. O cenário de pesadelo para os oficiais é uma tentativa de democratização que conduza não só a um novo sistema de governo, mas também a um novo líder. Quando isso acontece, há uma dupla ameaça: a própria existência da democracia torna mais provável que os soldados, que haviam anteriormente servido a ditadura, sejam responsabilizados. Porém, não é só isso: o novo líder tem um enorme incentivo para agir contra as forças armadas porque é provável que ele esteja preocupado com a possibilidade de os militares, temendo pelos seus antigos privilégios, se voltarem contra ele. Os oficiais, por outro lado, têm um forte incentivo para dar o primeiro passo, porque muitos dos novos líderes democráticos iniciam o seu mandato a reformar o setor da segurança.

Livro: "Como Caem os Tiranos"

Autor: Marcel Dirsus

Editora: Saída de Emergência

Data de Lançamento: 23 de janeiro de 2025

Preço: € 19,90

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Por razões compreensíveis, eles não confiam na velha guarda que protegeu a ditadura.

Este cenário não é puramente hipotético, tem-se desenrolado repetidamente e é uma das razões pelas quais desligar a passadeira rolante pode ser tão arriscado para os tiranos. Os líderes podem querer desligá-la, mas as pessoas ao seu redor simplesmente não deixarão que tal aconteça. Assim, em vez disso, eles são efetivamente forçados a continuar a correr, mesmo que estejam doentes ou cansados de o fazer.

Quando os ditadores efetivamente abrem caminho para a democracia, geralmente não é por escolha. Eles são forçados a isso, ou simplesmente cometem erros. O poder é tomado, não oferecido. Como defendeu Daniel Treisman, da Universidade da Califórnia, depois de examinar a história das democratizações desde 1800, a democracia muitas vezes acontece por engano.

Na primavera de 1982, a ditadura argentina de Leopoldo Galtieri enfrentava dezenas de milhares de pessoas nas ruas. «Eleições já», exigiam elas. Relutante em dar aos manifestantes o que eles queriam, Galtieri fez uma aposta arriscada: foi para a guerra. Dias depois, forças argentinas atacaram as ilhas Falkland, um arquipélago controlado pelos britânicos, localizado cerca de 480 quilómetros a leste da Argentina, no sul do oceano Atlântico. Inicialmente, o plano de Galtieri funcionou: as multidões aplaudiram e Galtieri desfrutou da sua nova popularidade. Havia apenas um problema: todo o plano se baseava na suposição de que os britânicos não estariam dispostos a usar da força para recuperar as ilhas. E, de facto, era nisto que o ditador acreditava. Uma resposta seria «absolutamente improvável», disse ele.

Margaret Thatcher, então primeira-ministra, foi pressionada por muitos dos seus conselheiros mais próximos a fazer um acordo com Buenos Aires. Contudo, depois de o seu antecessor lhe aconselhar excluir o chanceler do seu Gabinete de Guerra «para que o dinheiro não fosse um problema na tomada de decisões militares», a Dama de Ferro foi para a guerra. Uma frota britânica composta por cento e vinte e sete navios de guerra, submarinos e navios mercantes reutilizados zarpou em poucos dias. Não demorou muito tempo para que se tornasse claro que Galtieri havia cometido um erro de cálculo. Em lugar de uma vitória gloriosa que lhe teria permitido permanecer no poder, as suas forças foram derrotadas pelos britânicos e ele não tinha mais cartas para jogar.

A 14 de junho, a Plaza de Mayo em Buenos Aires estava nova- mente repleta de multidões furiosas por o governo se ter rendido aos britânicos. Três dias depois, Galtieri foi forçado a renunciar e a Argentina estava a caminho da democracia. Na Argentina, a democratização não era uma escolha: foi o que aconteceu quando o tirano tentou desesperadamente manter-se no seu lugar, para permanecer na passadeira rolante.

Para a maioria dos ditadores, reis e teocratas, renunciar não é uma verdadeira opção e eles sabem disso. Mesmo que fosse possível, fazê-lo seria perigoso porque não garante que o tirano não será responsabilizado. Isso deixa duas opções: continuar a correr ou olhar em redor para ver o que os outros países têm para oferecer. Se a reforma não é possível no país natal, talvez seja possível noutro lugar? A palavra mágica é exílio. Contudo, como estamos prestes a descobrir, é também uma opção repleta de dificuldades e incertezas.

O exílio é comum — ou, melhor, foi comum. Quando Abel Escribà-Folch e Daniel Krcmaric analisaram os dados em 2017, descobriram que cerca de um em cada cinco ditadores que perderam o poder depois da Segunda Guerra fugiu para o estrangeiro.

O ditador ugandês Idi Amin foi da Líbia para o Iraque e depois para a Arábia Saudita após perder uma guerra contra a Tanzânia; Ben Ali, da Tunísia, foi para a Arábia Saudita. O autoproclamado «Messias» congolês Mobutu estabeleceu-se em Marrocos, apesar de ter dito que nunca seria conhecido como o ex-presidente do Zaire. Porém, não são apenas regimes duvidosos que oferecem exílio a estes líderes cruéis que causaram tanto sofrimento ao próprio povo. Muitas personagens desagradáveis encontraram refúgio em democracias liberais. A França acolheu uma série de ditadores africanos depostos durante e depois da Guerra Fria. Alberto Fujimori, o antigo tirano do Peru, fugiu para o Japão depois de perder o poder.

O exílio é uma opção que é geralmente escolhida, não porque seja apelativa, mas porque não há alternativa — além da morte ou da prisão perpétua, obviamente. Raramente os autocratas fazem as malas e partem simplesmente porque já não estão interessados em ter poder político. Na grande maioria dos casos, os ditadores são forçados a sair. De acordo com o estudo de 2017 acima mencionado, cerca de 84 por cento dos ditadores exilados que foram para o estrangeiro «fizeram-no no meio de um golpe, revolta ou guerra civil e por isso corriam o risco de retaliação».

Há múltiplas razões pelas quais o exílio não é uma opção apelativa. A primeira, obviamente, é que leva à perda do poder. Tendo trabalhado incansavelmente para se instalarem num palácio, para serem alguém, os ditadores exilados são repentinamente reduzidos a uma figura ultrapassada. Porém, mais importante é o facto de ser extremamente difícil encontrar o local indicado para se esconderem. E se os tiranos arruinarem a sua estratégia de exílio, terão meramente adiado a morte por um dia ou por um mês, ao invés de navegarem em direção à reforma.

Uma vez que essas decisões tendem a ser adotadas num momento de crise, é difícil dizer o quão racionais estão os líderes quando as tomam, mas há vários elementos que eles devem considerar quando pensam sobre o seu futuro destino de «reforma». Isso pode ser difícil, uma vez que o tempo é essencial quando chega um momento de ameaça ao regime (ou, pelo menos, de ameaça ao líder), e pensar é algo difícil de fazer nessas circunstâncias.

A 21 de dezembro de 1989, depois de ter sido secretário-geral do Partido Comunista da Roménia por mais de vinte e quatro anos, Nicolae Ceaușescu encontrava-se na varanda da sede do partido. Vestido com um casaco preto e um chapéu a condizer para enfrentar o inverno do Leste europeu, ele estava prestes a fazer o discurso mais importante da sua vida. Dezenas de milhares de pessoas estavam diante dele, na Praça do Palácio de Bucareste. Alguns dias antes, o ditador ordenara às suas forças de segurança que disparassem sobre os manifestantes em Timișoara, no Oeste do país. Agora, a Roménia estava em caos e, exibido na televisão, o discurso do grande líder deveria fazer a sua parte para restaurar a ordem. Seria difícil, sem dúvida, mas o autoproclamado Génio dos Cárpatos julgava-se à altura da tarefa.

Contudo, à medida que o génio falava, a sua expressão mudou lentamente quando ele sentiu que estava a perder a multidão. Em vez de aplaudi-lo, interrompiam-no e vaiavam-no. Ceaușescu tinha uma expressão de desconcerto no rosto. Como é que eles se atreviam? E como era isto possível? Num sistema político baseado em perceções de invulnerabilidade e força, este foi um momento embaraçoso para o regime e a transmissão pela televisão foi rapidamente interrompida.

O secretário-geral já enfrentara problemas antes, mas esta crise era diferente. Mais tarde nessa noite, Nicolae e Elena, sua esposa há quarenta e três anos, encaminharam-se para o telhado do edifício. Um helicóptero das forças armadas romenas, que levantara voo do aeroporto da capital, apanhou-os. O plano era que o helicóptero fosse até uma cidade próxima, onde outros helicópteros deveriam reunir-se-lhes. Quando se tornou claro que os outros helicópteros não chegariam, o piloto partiu novamente na direção de um aeródromo militar.

Quando já haviam estado no ar durante aquilo que deve ter parecido uma eternidade, chegou uma voz através do rádio do helicóptero. O governo havia sido derrubado, dizia. Tendo os militares deixado de apoiar a ditadura, Ceaușescu (e toda a gente na aeronave) corria perigo iminente. Quando o piloto disse a Ceaușescu o que acabara de saber, ele ficou incrédulo. Eles tinham de aterrar, e tinham de o fazer rapidamente.

«Não. Isso são apenas mentiras horríveis. Não estás a servir a causa?», perguntou ele. Porém, depois de lhe dizerem que eles poderiam ser abatidos a qualquer momento se não aterrassem, ele finalmente cedeu. Ao sair da aeronave, Ceaușescu perguntou novamente ao pilo- to: «Estás a servir a causa?». «Que causa deveria eu servir?», replicou o piloto.

Tendo o exército trocado de lado e estando o ditador e a sua esposa agora em terra, era demasiado tarde para escapar e os Ceaușescus foram encontrados pouco depois. Após um julgamento-espetáculo, que foi mais espetáculo do que julgamento, ambos foram condenados à morte. Ao ser levado para fora da sala de audiências, Ceaușescu cantou A Internacional, uma canção de luta comunista, enquanto a sua esposa Elena gritava «vai-te foder» a um soldado que zombava deles. Sabendo que a morte era agora certa, eles tinham um último desejo: queriam ser executados juntos. O carrasco concedeu-lhes o desejo. Alinhou-os contra uma parede e disparou sobre eles com a sua Kalashnikov. Ambos morreram instantaneamente.

«Todas as revoluções exigem sangue», diria mais tarde o carrasco a propósito desse dia. Ele havia sido forçado a fazer um juramento de lealdade a Ceaușescu apenas quatro dias antes de apertar o gatilho — um juramento em como apoiaria e protegeria o ditador.

O grande erro que o ditador romeno havia cometido (além de escolher uma profissão excessivamente perigosa) foi não ter concebido planos adequados para o dia em que ele pudesse cair, antes de esse dia efetivamente chegar. Ele estava demasiado confiante. Quando finalmente se apercebeu de que aquele poderia ser o seu último dia no poder, já não podia escapar.

Porém, será que isso é realmente surpreendente? Estamos a lidar com pessoas que levaram vidas impossíveis e realizaram atos impossíveis. O jovem Ceaușescu foi preso por atividades comunistas aos dezoito anos; o seu país passou depois pela Segunda Guerra Mundial e pelo domínio soviético. Nascido numa família de camponeses, Nicolae conquistou uma vida em que pôde construir para si próprio um dos maiores palácios que o mundo alguma vez havia visto.

Ele não foi o único a ter vivido uma existência tão surreal que pareceria pouco convincente se a víssemos num filme. Ben Ali passou de combatente contra as forças coloniais francesas nos desertos da Tunísia para ditador do seu país, apenas para ser derrubado por protestos maciços contra o seu regime. O coronel Kadhafi, Idi Amin ou Mobutu: todas estas pessoas tiveram inúmeros encontros com a morte. Porque é que a ocasião que verdadeiramente trouxe o seu fim haveria de parecer diferente? Tendo já realizado feitos impossíveis, eles indubitavelmente acreditavam que poderiam fazê-lo de novo. Talvez até precisassem de acreditar nisso para continuar no poder durante todo aquele tempo.

Porque, quando tudo acaba, o tempo é muito importante: é essencial ser capaz de fugir para um lugar que esteja ao alcance — mesmo que seja apenas de passagem para um destino final. Para muitos, isso por si só é já um obstáculo inultrapassável, porque há muitas ditaduras que não estão propriamente rodeadas de amigos. Porém, esse não é o único problema. Mesmo que um líder vizinho seja amigável e ofereça a um antigo tirano uma oportunidade de reforma relativamente tranquila, os muitos inimigos do déspota usarão tudo o que estiver ao seu dispor para mudar a opinião desse líder. Para sobreviver em relativa liberdade, os tiranos precisam de encontrar um país que não ceda à pressão e não os expulse. Mas é mais fácil falar do que fazer, principalmente para os líderes mais cruéis do mundo.

Para Charles Taylor, um criminoso de guerra da África Ocidental notoriamente brutal, isto tornou-se numa preocupação muito concreta. Quando ele abandonou o poder em 2003, fê-lo com a condição de que poderia viver o resto dos seus dias em exílio na Nigéria. Inicialmente, tudo parecia estar a correr bem — como se a vida anterior de Taylor não estivesse a persegui-lo. O então presidente da Nigéria prometeu explicitamente que não o deportaria para enfrentar a justiça. «Esforçar-nos-emos para ser bons anfitriões enquanto ele estiver na Nigéria», afirmou o presidente Obasanjo quando Taylor chegou a Abuja. As suas novas condições de vida também não eram más de todo: três villas no cimo de uma colina, guardadas por um corpo de polícias nigerianos. Até o presidente dos Estados Unidos disse que cabia aos nigerianos decidir como lidar com ele.

Porém, a vida confortável de Taylor à beira-mar não durou muito tempo. Sob enorme pressão de organizações de direitos humanos e das democracias liberais, o governo nigeriano disse inicialmente que estava «na obrigação de honrar o seu acordo para lhe oferecer refúgio». Contudo, no fim de contas, as promessas não valem muito num negócio que se resume a poder e dinheiro. Apenas três anos após ter dito que isso não aconteceria durante o seu governo, o presidente nigeriano deixou de proteger Taylor. Sem o seu protetor, Taylor estava acabado. Depois de ter sido condenado a cinquenta anos de prisão, Charles «Carniceiro de Monróvia» Taylor está agora a passar o resto da sua vida na cela de uma prisão britânica no condado de Durham. Ele correu um risco ao ir para o estrangeiro e não resultou.

Para evitar um destino semelhante, os ditadores forçados ao exílio têm de encontrar um país que não os entregue. Mas como? Os tiranos têm uma melhor hipótese de reduzir a probabilidade de serem entregues se encontrarem um país anfitrião que seja não democrático e poderoso. Algumas democracias no passado já estiveram dispostas a receber ex-ditadores, mas os seus governos são muito mais vulneráveis à pressão popular. Compreensivelmente, muitos eleitores não se sentirão entusiasmados quando o seu governo disser que abrirá as portas do país a um ditador que é principalmente conhecido por uma série de crimes de guerra. No julgamento de Charles Taylor, o juiz-presidente disse: «O acusado foi considerado responsável por ajudar e instigar, bem como planear, alguns dos crimes mais hediondos e brutais da história registada.» Que eleitor quereria alguém assim no seu país? Eu não. Vocês provavelmente também não.

Os líderes democráticos podem resistir à pressão eleitoral por um tempo considerável se acreditarem que isso é do interesse nacional, mas chega um momento em que provavelmente cederão. E mesmo que um governo em particular consiga resistir, o próximo governo pode não o fazer. Nessas condições, não há segurança genuína para os tiranos. Estão numa contagem regressiva.

Outros regimes autocráticos são preferíveis por duas razões: porque estão mais isolados das reivindicações dos cidadãos e há uma forte probabilidade de que o regime não mude drasticamente a sua política durante um longo período. Contudo, isso só funciona se o regime anfitrião for estável e capaz de resistir à pressão externa.

Se os tiranos tiverem muito azar, fogem para uma ditadura não democrática apenas para descobrir que ela um dia se torna numa democracia. Isso aconteceu ao ditador do Chade, Hissène Habré, que fugiu para o Senegal. Quando o sistema político ali mudou de autoritário para democrático, também se modificaram as probabilidades de Habré ter uma reforma relaxada sob o sol senegalês. Em 2013, depois da democratização senegalesa, ele foi indiciado por crimes contra a humanidade, tortura e toda uma série de crimes de guerra.

Há também, claro, uma preocupação de segurança mais direta: o exílio pode reduzir a ameaça imediata a um ditador porque os seus inimigos já não se encontram frente ao palácio, de forquilhas na mão. No entanto, isso não significa que esses inimigos tenham desaparecido no ar no momento em que o tirano deixou as portas do palácio. Os inimigos ainda estão por aí, potencialmente escondidos atrás de cada esquina, esperando para atacar a sua vítima, agora que ela já não está num pedestal, rodeada por soldados armados com baionetas. Abandonar o poder libertará alguma pressão da panela, mas isso não significa que ela já não possa explodir. Pode sempre. A resiliência contra a pressão não é suficiente; a resiliência precisa de ser combinada com força, e isso é uma combinação que poucos destinos de exílio podem oferecer.

Na perspetiva do tirano, o tipo de país a procurar é um lugar como a Arábia Saudita. Governada pela mesma dinastia desde que foi unificada pela Casa de Saud em 1932 e sem guerras civis desde então, é incrivelmente estável — especialmente para um país governado por um monarca absoluto. É também um grande produtor de petróleo, com despesas militares anuais estimadas em mais de 55 biliões de dólares.100 Não há liberdade de expressão, nem meios de comunicação livres, nem uma verdadeira sociedade civil que se oponha ao governo. Embora isso não torne Riade invulnerável, é certamente difícil exercer pressão sobre ela a partir do exterior. O país também já demonstrou a sua adequabilidade ao hospedar com «sucesso» múltiplos ditadores depostos no passado. E, uma vez que os seus líderes mudam enquanto o regime permanece o mesmo, é improvável que aconteçam modificações drásticas na política de maneira rápida. Se o pai concorda em acolher um ex-ditador agora, o seu filho provavelmente não o expulsará quando for a sua vez no trono dourado.

Uma dificuldade central em tudo isto é que os tiranos precisam de persuadir alguém a recebê-los. E porque haveria alguém de estar pronto para o fazer? Independentemente do tipo de regime, pode haver várias razões para fornecer exílio a um autocrata deposto. A primeira é a utilidade que um governo pode retirar por ter o dito autocrata no seu país — ou, mais em geral, por o manter vivo. Talvez o dito autocrata tenha boas conexões no país e o governo anfitrião acredite que poderá usar essa influência a seu favor. Ou talvez haja a hipótese de que o tirano consiga inverter a situação, tendo para com o país anfitrião uma dívida de gratidão quando estiver novamente no poder. Um exemplo de déspotas que regressaram ao poder depois de um período no exílio são os talibãs, que na verdade tinham uma sede (a dada altura até com bandeira) no Catar.

Se um tirano não puder jogar esta cartada por um regresso ao poder parecer altamente improvável, tem outra jogada. As instituições e as pessoas têm recursos e atenção limitados. Cada momento que passam a pensar num bicho-papão, real ou imaginado, que está num lugar que elas não podem controlar, ficam distraídas. Isso pode ser uma vantagem para outro governo, e é potencialmente uma forma de o tirano tornar-se valioso.

Outra estratégia é apelar à lealdade. Quando as tropas ocidentais abandonaram apressadamente o Afeganistão no verão de 2021, um grande número de afegãos que os haviam diretamente ajudado — por exemplo, como tradutores — foi simplesmente deixado para trás. Sem a proteção dos americanos, britânicos, alemães e por aí fora, ficavam agora à mercê das mesmas pessoas que tentaram manter afastadas do poder. Em grande escala, e de forma pública, isto transmitiu a mensagem de que os governos ocidentais não eram de confiança.

Fornecer exílio a líderes nacionais em dificuldades que cooperaram com outros países enquanto estavam no poder pode simplesmente enviar o sinal de que tais líderes não serão esquecidos, mesmo que a situação se torne complicada. Além da lealdade, há também o desejo explícito de evitar o derramamento de sangue. Quando os ditadores se encontram numa situação em que sentem que não têm outra escolha além de matar para permanecer no poder, podem apelar a potências estrangeiras para que estas lhes forneçam um «paraquedas dourado». No caso das Filipinas, ambos os elementos se juntaram. Tratava-se de lealdade para com um líder cooperante que agora estava em apuros, mas também de evitar uma carnificina.

A 30 de junho de 2022, Ferdinand «Bongbong» Marcos Jr. subiu ao palco no Museu Nacional de Belas Artes de Manila. Recém-indigitado presidente das Filipinas, ele disse ao seu povo que não estava ali para falar sobre o passado. «Estou aqui para vos contar sobre o nosso futuro», disse ele.102 Não era uma coincidência. Trinta e seis anos antes o seu pai, Ferdinand Marcos, teve de tomar talvez a decisão mais difícil da sua longa ditadura. Com multidões de filipinos nas ruas e figuras-chave do seu regime a desertar sob pressão popular, ele ligou para o senador americano Paul Laxalt, um confidente do presidente Reagan.

Era a meio da noite e Marcos estava assustado. Não conseguia dormir. «Saia e saia de forma limpa. O tempo chegou», disse-lhe Laxalt. Isto foi seguido por uma longa pausa. A pausa acabou por se tornar tão longa que Laxalt perguntou a Marcos se ele ainda lá estava. Estava. «Estou muito, muito desapontado», disse Marcos, antes de desligar.

Às 21h05, dois helicópteros americanos descolaram das proximidades do palácio presidencial das Filipinas, com Marcos e a sua comitiva a bordo.104 Destino: a Base Aérea de Clark, a cerca de sessenta e quatro quilómetros de Manila. A partir dali o ditador voou, através de Guam, para o Havai, num avião de transporte C141 frio e barulhento. Outra aeronave voava na mesma rota.

A bordo, havia mais do que a comitiva — bastante mais. Sabemos exatamente o que ele levava porque teve de ser registado na alfândega. Dado que Marcos não ganhava oficialmente mais do que 13.500 dólares por ano, o registo alfandegário de vinte e três páginas ultrapassa o que seria credível. Entre outros objetos, os aviões transportavam cento e quarenta botões de punho cravejados de joias, duas dúzias de barras de ouro e um Jesus de marfim com um colar de diamantes; e também 27 milhões de pesos, a moeda nacional das Filipinas. Contudo, mesmo estes ridículos aviões repletos de joias e ouro representam apenas uma pequena fração de todo o dinheiro que Marcos roubou ao seu povo. De acordo com uma estimativa posterior do Supremo Tribunal das Filipinas, Marcos poderá ter roubado até 10 biliões. E isto em dólares americanos, não em pesos filipinos.

Para democracias como os Estados Unidos, a questão do «para- quedas dourado» — conceder exílio a ditadores — é difícil. Por um lado, o exílio para tiranos como Marcos pode reduzir significativa- mente a probabilidade de um massacre, salvando assim muitas vidas inocentes. Por outro lado, os Estados Unidos efetivamente ajudaram Marcos a roubar ainda mais dinheiro à sua nação, depois de já terem contribuído para mantê-lo no poder durante anos. E era verdadeiramente isso que Marcos merecia? Certamente que não. Depois de todos esses anos no poder, roubando e maltratando o seu povo, o ditador deveria ter sido levado perante um juiz, não para uma villa havaiana. Contudo, há aqui um dilema, como sempre: se os estrangeiros não ajudam nessa situação, um ditador cansado, assustado e perigoso não tem nenhuma saída que não envolva a morte de civis totalmente inocentes. O mais provável é que muitos mais filipinos tivessem morrido se esses helicópteros não tivessem levado Marcos, o velho, para um lugar seguro.

Nas últimas duas décadas, encontrar um local de exílio seguro tornou-se ainda mais difícil para os tiranos. Isso deve-se ao Tribunal Penal Internacional (TPI) e dos respetivos avanços na justiça internacional. Situado em Haia e operacional desde 2002, a ideia por trás do TPI é inquestionavelmente boa. Em circunstâncias nas quais os mal- feitores não podem ser responsabilizados pelos seus crimes pelos tribunais nacionais, o tribunal internacional pode intervir e contribuir para um mínimo de justiça. O modelo tem tido algum sucesso. Em 2012, por exemplo, o tribunal condenou um senhor da guerra congolês chamado Lubanga a catorze anos de prisão por sequestrar crianças e depois forçá-las a lutar. Aquando do julgamento, uma proeminente ONG de direitos humanos comentou: «A sentença de Lubanga é importante, não apenas para as vítimas que querem que se faça justiça, mas também como um aviso para os que usam crianças-soldados ao redor do mundo.» É um aviso, e poucos discordariam de que é algo de bom. Se um só comandante rebelde que seja, ou um só general de exército for persuadido a não forçar uma criança de doze anos a pegar numa Kalashnikov por causa da existência do TPI, isso é uma vitória.

Contudo, essa vitória não vem sem custos. Para as pessoas que usaram crianças-soldados ou cometeram crimes de guerra, a mera existência do tribunal e a ameaça de julgamento significa que há uma razão adicional para permanecer no poder por tanto tempo quanto possível — com todas as consequências sangrentas que isso acarreta. Porque mesmo que os tiranos consigam não «desaparecer» ou ser mortos pela pessoa que lhes suceder, podem muito bem desaparecer para os Países Baixos (ou para o condado de Durham, como Charles Taylor), onde passarão o resto da vida atrás das grades.

De acordo com um estudo publicado em 2018, o exílio mudou drasticamente. Anteriormente, os líderes que haviam cometido atrocidades, e mesmo os que não o haviam feito, iam para o exílio sensivelmente na mesma proporção. Agora, com todos os avanços na justiça internacional e com a relutância dos Estados em fornecer um «paraquedas dourado» para os piores dos piores, estes últimos são «cerca de seis vezes menos propensos a escolher a opção do exílio». Essa descoberta foi publicada numa revista académica dirigida pela Midwest Political Science Association e por isso poderá não ter chegado aos palácios presidenciais do mundo, mas os ditadores sem dúvida notaram o facto de que a situação mudou. Quando o coronel Kadhafi, da Líbia, descobriu que o governo nigeriano havia decidido entregar Taylor, ele disse: «Isto significa que qualquer chefe de Estado pode conhecer um destino semelhante. Estabelece um precedente sério.» Robert Mugabe, o ex-ditador do Zimbabué, era amigo de Taylor. Depois de ver o que lhe acontecera, disse que havia apenas uma forma de ele abandonar o Zimbabué: num caixão.

Logo para começar, nunca foi fácil encontrar um bom destino de exílio, por causa da constante ameaça de se ser morto ou extraditado. No entanto, agora que o mundo se tornou mais pequeno e as probabilidades de se ser expulso são maiores, é ainda mais desafiante. Como resultado, a única escolha racional que alguns tiranos podem tomar é permanecer no poder até não poderem, de todo, continuar. Se isso significar mais assassinatos e mais roubos, é isso que eles farão. Abandonar a passadeira rolante é tecnicamente possível, mas os riscos são elevados e poucos estão dispostos a jogar. Confrontados com a escolha entre fugir, puxar a tomada ou tentar saltar, a maioria dos tiranos escolherá continuar a fugir. Contudo, enquanto eles estão nessa passadeira, a superfície em movimento não é tudo aquilo com que precisam de se preocupar. Enquanto eles se movem, precisam constantemente de estar vigilantes, porque as pessoas mais próximas deles geralmente representam o maior perigo.