Segundo o último relatório de monitorização das linhas vermelhas para a covid-19, do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, “o grupo etário com incidência cumulativa a 14 dias mais elevada” são as crianças com menos de 10 anos (298 casos por cem mil habitantes), que “não são elegíveis para vacinação”.
Já a 30 de setembro, o Centro Europeu para Prevenção e Controlo das Doenças tinha previsto um aumento dos casos entre as crianças, apelando à adoção de medidas em ambientes escolares.
Perante o aumento do número de casos, voltou o debate sobre o alargamento da vacinação às crianças com menos de 12 anos (entre 11% e 12% da população nacional).
Basta uma pesquisa na linha da Lusa ao longo dos últimos quatro meses (altura do primeiro artigo que ouviu pediatras sobre o tema) para constatar a divisão existente.
Até agora, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem assinalado que “não adianta vacinar crianças quando há profissionais de saúde, idosos e pessoas de alto risco no mundo que ainda estão à espera da primeira dose”.
De visita a Lisboa, a 19 de outubro, o diretor regional para a Europa da OMS, Hans P. Klüge, admitia que a decisão de vacinar as crianças abaixo dos 12 anos demoraria “um pouco”, dado que “as evidências ainda não são robustas o suficiente”.
Entre os especialistas portugueses, as opiniões dividem-se. De um lado, profissionais como o epidemiologista Henrique Barros ou o perito em saúde pública Francisco George defendem a vacinação das crianças com menos de 12 anos, mal a segurança e a eficácia da vacina estejam comprovadas cientificamente, como “medida fundamental de proteção”.
Do outro, Jorge Amil Dias, presidente do Colégio da Especialidade de Pediatria da Ordem dos Médicos, tem manifestado reservas ao alargamento da vacinação, considerando que “ainda não há evidência que [o] justifique”.
A Agência Europeia do Medicamento (EMA, na sigla em inglês) anunciou a 18 de outubro que começaria a avaliar a administração da vacina Comirnaty, da farmacêutica Pfizer/BioNTech (atualmente autorizada em pessoas com 12 ou mais anos), em crianças entre os 5 e os 11 anos.
Outras duas vacinas para crianças abaixo dos 12 anos estão já a gerar dados: Spikevax (Moderna) e Vaxzevria (AstraZeneca).
O parecer da EMA deve ser conhecido na quinta-feira e será depois transmitido à Comissão Europeia, que emitirá uma decisão final.
A generalidade dos países tem optado por não vacinar as crianças antes dos 12 anos, mas há exceções, desde logo a China, epicentro do vírus SARS-CoV-2, em dezembro de 2019.
Em junho deste ano, o regulador chinês autorizou a administração de duas das suas vacinas - Sinopharm e Sinovac - em crianças entre os 3 e 17 anos e, em agosto, aprovou outra marca.
O Camboja já está a usar as vacinas chinesas em crianças entre os 6 e os 11 anos.
Cuba também já começou a imunizar crianças pequenas, com as vacinas produzidas nacionalmente, e a Venezuela iniciou a vacinação de 3,5 milhões de crianças entre os 2 e 11 anos, com a cubana Soberana II.
O Chile tornou-se no primeiro país da América Latina, e o segundo no mundo (a seguir à China), a autorizar o uso da vacina chinesa CoronaVac em crianças e, na Argentina, a vacina da Sinopharm pode ser administrada em crianças a partir dos 3 anos.
O caso de maior notoriedade de vacinação infantil é o dos Estados Unidos, onde a taxa de imunização global é baixa e os casos de infeções em crianças aumentaram dramaticamente desde que a variante Delta se propagou no país.
Também o Canadá já aprovou a vacina infantil da Pfizer e, à semelhança dos Estados Unidos, reduziu as doses para um terço da quantidade administrada a adolescentes e adultos.
Na Europa – atualmente a única região geográfica com aumento de casos de infeção –, ainda são poucos os casos de administração em crianças menores de 12 anos.
Duas centenas de crianças com idades entre os 5 e os 11 anos começaram a ser vacinadas em Viena, capital da Áustria, como parte de um projeto-piloto, mas o alargamento à escala nacional está dependente da luz verde da EMA.
Em Itália, aguarda-se a mesma indicação para dar início à vacinação a partir dos 5 anos.
Já na Alemanha, que enfrenta a maior incidência semanal de infeções desde o início da pandemia, ainda não se recomendou a vacinação de menores de 12 anos e isso não deve acontecer antes de meados de dezembro.
O mesmo é expectável em Portugal, onde a Comissão Técnica da Vacinação - que aconselha a Direção-Geral da Saúde sobre as estratégias de imunização contra a covid-19 - ainda não recomendou que os menores de 12 anos sejam vacinados.
O Governo tem evitado pronunciar-se sobre a matéria, adiando uma decisão para depois do parecer da comissão e da decisão da EMA. Já a Madeira anunciou que vai avançar com a vacinação de crianças entre os 5 e os 11 anos, se esta for autorizada pela EMA, para responder aos surtos que têm surgido nas escolas.
Ainda que a EMA emita um parecer favorável à vacinação de crianças entre os 5 e os 11 anos (e que a Comissão Europeia o valide), tal não implica que os Estados avancem nesse sentido, tratando-se apenas da indicação do regulador sobre a segurança e a eficácia da vacina.
Pediatra diz que faltam dados para justificar vacinação de menores de 12 anos
O presidente do Colégio da Especialidade de Pediatria considera que “ainda não há evidência (prova) que justifique” a vacinação contra a covid-19 de menores de 12 anos e que “não se modificou nada” que sustente essa opção.
Jorge Amil Dias disse à Lusa que “neste momento não [há dados novos]” que fundamentem uma alteração da estratégia para aquele grupo e ressalva que, quando se fala em aumento de casos pediátricos de covid-19, “é exatamente disso que se trata: casos, e não doentes".
“Os números que têm sido divulgados de crianças, nomeadamente dos zero aos nove anos (…), são crianças identificadas não em internamento hospitalar, não em cuidados intensivos, mas, seguramente na sua grande maioria, por testagem nas escolas, porque houve um menino, uma empregada ou um professor que foi positivo”, disse o presidente do órgão consultivo da Ordem dos Médicos.
É no grupo etário entre os zero e os dez anos (cerca de dez por cento da população portuguesa) que se tem verificado a “mais elevada” incidência cumulativa a 14 dias (298 casos por cem mil habitantes) de casos de infeção com o coronavírus SARS-CoV-2, segundo o último relatório de monitorização das linhas vermelhas para a covid-19, do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge.
Jorge Amil Dias notou que “estes números não refletem gravidade de doença, nem refletem grande número de doentes”, exemplificando que, se fossem feitos rastreios à bactéria que causa amigdalites e pneumonias, também se encontraria muitos positivos, sem estarem doentes ou a precisarem de tratamento.
Os testes que resultaram no aumento dos números não foram feitos, na “esmagadora maioria”, porque as crianças estavam doentes. “Fizeram-no ou porque [as crianças] andam a espirrar e têm tosse ou têm febre e alguém achou que era prudente fazerem o teste, ou por mero rastreio epidemiológico”, ressalvou o pediatra.
“Aquilo de que precisamos é de tratar pessoas que estão doentes”, focalizou, notando que a “moda” da covid-19 está a desviar a atenção de “doenças severas nas crianças, que não fazem títulos de jornais”. Esta “desproporção” está a consumir recursos, quer humanos, quer financeiros, com um efeito “inapropriado”, considerou.
O estudo entretanto realizado em crianças dos cinco aos 11 anos – em avaliação pela Agência Europeia do Medicamento – mostra apenas que, quando se inocula o antigénio, ao fim de algum tempo há produção de anticorpos.
O estudo “só avaliou se as crianças desenvolveram anticorpos”, destacou o pediatra. “Não mostrou que esta população ficava mais protegida, não mostrou que tinha diminuído a contagiosidade ou que tinha alterado a epidemiologia”, distinguiu, notando ainda que, “em termos populacionais, é um estudo pequeno [cerca de 2.400 crianças]”.
Assim, “qualquer outra extrapolação deste estudo é um abuso científico, porque não foi esse o objetivo, nem os números têm dimensão para o demonstrar”, ressalvou.
Jorge Amil Dias contestou ainda o argumento de “quebrar a cadeia de transmissão” e recordou, a propósito, a vacinação dos adolescentes: o facto de estarem vacinados na sua grande maioria não impediu que, em 17 de novembro, houvesse “mais 4.118 casos” do que no mês anterior, demonstrando que “a vacina não impede a transmissão, nem a aquisição do vírus”.
“A vacina tem sido muito eficaz a evitar mortalidade, a reduzir morbilidade nas populações que têm esse risco. Nas crianças e nos adolescentes, [as vacinas] não só não fizeram desaparecer a pandemia, [como] não impediram a transmissão, não alteraram a vida nas escolas”, onde continua a ir “toda a gente para casa porque apareceu um caso positivo”, notou.
Mesmo com luz verde da EMA, o pediatra entende que “cada país terá de avaliar a sua realidade” e que, no caso de Portugal, não faz sentido optar por vacinar este grupo.
Em países com adesão baixa à vacinação, como é o caso dos Estados Unidos, é “compreensível que os governos se virem para toda a gente”, mas em países como Portugal, com “ampla” vacinação, essa pressão não existe.
“O nosso objetivo não é controlar ao máximo a difusão do vírus, é controlar ao máximo a mortalidade que ele causa. Estas vacinas não impedem a difusão do vírus”, realçou.
Perante o cenário atual, o pediatra defende a concentração de esforços na terceira dose da vacina nos grupos de maior risco e na adoção de uma “visão globalista”, pois “há vacinas que estão a fazer falta noutros sítios, para controlar o processo a nível global”.
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