A votação, ao fim de duas horas de discussão, teve 232 votos a favor e 197 contra, decorrendo o processo na Câmara dos Representantes do Congresso dos EUA. De destacar que esta votação contou com, pelo menos, 10 votos provenientes de congressistas republicanos, o mais elevado número de apoio bipartidário a um processo de impeachment na história do país.
O recorde anterior tinha sido de cinco votos democratas para destituir Bill Clinton em 1998. O único outro presidente a ser alvo de um processo destes foi Andrew Johnson em 1866, mas apenas Trump foi sofreu impeachment por duas ocasiões, tendo a primeira ocorrido a dezembro de 2019.
A aprovação do impeachment não significa, porém, que Trump tenha sido destituído do cargo de Presidente dos EUA. Esse processo exige primeiro o apoio da maioria na Câmara dos Representantes para que se inicie o julgamento a decorrer na outra câmara do Congresso, o Senado, onde será necessária a aprovação de dois terços para proceder a uma condenação efetiva. É este processo que agora se inicia.
À partida já se sabia que o processo de destituição na Câmara dos Representantes seria aprovado, não só com os votos maioritários dos democratas, mas também com o apoio de, pelo, menos, cinco congressistas republicanos que tinham anunciado ainda antes da sessão de votação que aprovariam o impeachment de Trump. Entre eles regista-se principalmente o nome de Liz Cheney, já que se trata da terceira republicana mais importante da Câmara dos Representantes e disse que “nunca houve uma maior traição por um Presidente dos EUA” do que a perpetrada pelo atual chefe de Estado.
Esse apoio, de resto, foi permitido por Kevin McCarthy, líder minoritário dos republicanos nesta câmara. O congressista, apesar de se opôr à destituição, disse que não iria formalmente fazer lobby para que membros do seu partido votassem contra o impeachment. Já durante a discussão do artigo de destituição, outros dois congressistas republicanos anunciaram que iam votar a favor do afastamento de Donald Trump
Já Mitch McConnell, líder republicano do Senado e um dos maiores aliados de Trump até à data, fez saber que estava de acordo com o avanço deste processo, considerando até que o Presidente cometeu atos passíveis de destituição. Foi, portanto, com um cenário de desagregação dos apoios a Trump no seio do seu próprio partido que o processo de impeachment seguiu para a Câmara dos Representantes, tendo sido liderado por nove congressistas democratas, todos eles advogados de formação.
No arranque da discussão que antecedeu a votação, a líder democrata desta câmara, Nancy Pelosi, disse que os membros do Congresso “experimentaram a insurreição que violou a santidade do Capitólio do povo e tentou derrubar a vontade devidamente registada dos eleitores norte-americanos”.
“Sabemos que o Presidente dos EUA incitou esta insurreição, esta rebelião armada, contra o nosso país. Ele deve ir embora. Ele é um perigo claro e presente para a nação e para todos nós”, disse Pelosi, na declaração inicial do debate no Congresso, lembrando também que Trump “mentiu repetidamente” sobre o resultado das eleições presidenciais de 3 de novembro, que deu a vitória ao democrata Joe Biden.
“Trump semeou dúvidas egoístas sobre a democracia e procurou, de forma inconstitucional, influenciar funcionários do Estado a repetir esta rebelião armada contra o nosso país”, concluiu Pelosi.
Alguns dos congressistas republicanos, todavia, iniciaram a defesa de Trump, acusando os democratas de terem uma longa agenda política contra o Presidente republicano, desde o início do seu mandato.
Jim Jordan, Ohio, lembrou que, logo que Donald Trump tomou posse, em 2017, o jornal The New York Times escreveu que começara a contagem decrescente para a destituição do 45.º Presidente dos EUA, para defender a ideia de que o objetivo dos democratas sempre foi atingir pessoalmente o líder republicano.
Jordan disse que os Estados Unidos são o país que conseguiu colocar um homem na lua e que se deve focar em grandes objetivos e não em “pequenas lutas políticas” que apenas diminuem a imagem do país e da sua democracia.
“Se afastássemos todos os políticos que fazem discursos inflamados, este lugar (o Congresso) estaria vazio”, disse Tom McClintock, republicano da Califórnia, para contestar o argumento de que Trump é culpado de instigar violência contra o Capitólio por causa dos seus discursos inflamados.
Os democratas estão a usar argumentos que apontam para a responsabilidade política do Presidente nos atos de violência, enquanto os republicanos consideram que realizar um julgamento político a Trump é perigoso, neste momento da democracia norte-americana.
“Tentar destituir o Presidente é perigoso. Vai dividir o país e vai criar instabilidade”, disse a representante Louie Gohmert, usando um argumento que está a ser repetido pelos republicanos.
Enquanto decorria a discussão, Trump apelou à calma “a todos os americanos”, dada a aproximação de novas manifestações marcadas por todo o país, especialmente se for de facto alvo de destituição.
“Peço-vos: nada de violência, nada de crimes, nada de vandalismo”, escreveu o inquilino da Casa Branca num breve comunicado. “Não é o que representamos e não é o que representa a América”, acrescentou. “Apelo a TODOS os americanos a contribuírem para reduzir as tensões”, escreveu ainda.
Como é que aqui chegámos?
Este processo surge no seguimento da invasão a 6 de janeiro ao Capitólio dos EUA, levada a cabo por apoiantes do presidente Donald Trump — que resultou na morte de cinco pessoas — e destinada a interromper a certificação dos resultados eleitorais do presidente eleito, Joe Biden, que toma posse no próximo dia 20 de janeiro
No próprio dia da invasão, começou desde logo a ser aventada a possibilidade de impedir o atual chefe de Estado de terminar o seu mandato, citando-o como diretamente responsável por ter incitado os seus apoiantes a tomar medidas violentas e insurrecionais contra o processo eleitoral e a câmara legislativa.
Para tal, os detratores de Trump podiam seguir por duas vias:
- Fazer um pedido ao Vice-presidente, Mike Pence, para que ativasse a 25.ª emenda da Constituição dos EUA — destinada a declarar o Presidente incapaz de executar os deveres do seu cargo —, passando a ser ele a governar o país até à tomada de posse de Biden;
- Levar a discussão em ambas as câmaras legislativas um processo de destituição de Donald Trump, o dito “impeachment”;
Dada a proximidade de Donald Trump de terminar o seu mandato, os democratas seguiram com a primeira hipótese, a ativação da 25ª emenda da Constituição, pois seria a mais rápida de garantir que o chefe de Estado sairia da Casa Branca precocemente.
Por isso mesmo, na segunda-feira deu entrada na Câmara dos Representantes uma resolução pedindo ao vice-presidente Mike Pence para declarar o presidente inapto a governar. Esta, porém, não seguiu automaticamente para a Casa Branca porque um congressista republicano, Alex Mooney, impediu que houvesse “consentimento unânime”, tendo por isso de ser votada na terça-feira.
Antecipando esta situação, os democratas começaram logo no fim de semana a preparar o processo de impeachment, sendo que o seu primeiro passo, a acusação contra Donald Trump, foi formalmente apresentada também esta segunda-feira. Ao contrário do normal ritmo de preparação destes processos de destituição, que habitualmente levam semanas, este foi extraordinariamente acelerado.
"O Presidente Trump colocou gravemente em perigo a segurança dos Estados Unidos e das suas instituições governamentais. Ele ameaçou a integridade do sistema democrático, interferiu com a transição pacífica do poder. Desta forma, traiu a sua confiança enquanto Presidente, à manifesta lesão do povo dos Estados Unidos da América", refere o artigo de acusação.
"Por isso, Donald John Trump, com tal conduta, demonstrou que continuará a ser uma ameaça à segurança nacional, à democracia e à Constituição, se lhe for permitido permanecer em funções. Agiu de uma forma grosseira e incompatível com a autogovernação e o Estado de direito. Donald John Trump garante assim o impeachment e o julgamento, a destituição do cargo e a desqualificação para ocupar e desfrutar de qualquer cargo de honra, confiança ou lucro sob os Estados Unidos", pode ler-se ainda.
O processo citou também como justificações para a sua existência as declarações falsas feitas por Trump sobre o facto de ter derrotado o democrata Joe Biden nas eleições de 3 de novembro e das pressões sobre as autoridades da Geórgia para que se encontrassem mais votos para lhe darem a vitória.
Todavia, ainda antes do processo de impeachment ser sujeito a votação, os democratas voltaram a insistir na invocação da 25ª emenda por Pence, tendo ontem conseguido aprovar na Câmara dos Representantes a resolução que o instou a tomar uma decisão.
O que fez Mike Pence?
Sabendo que seria forçado a decidir se invocaria ou não a 25ª emenda, Mike Pence enviou uma carta a Nancy Pelosi ainda antes da resolução ser passada, anunciando desde logo que não o faria.
“Não creio que tal ação seja no melhor interesse da nossa nação ou seja consistente com a nossa Constituição”, escreveu, justificando a sua decisão com o facto de faltarem poucos dias para o mandato de Trump acabar e defendendo que “a 25.ª emenda não é um meio de punição ou de usurpação”.
Invocando em sua defesa o facto de não ter cedido à pressão de Trump para bloquear a certificação dos resultados eleitorais — o que o levou a tornar-se persona non-grata aos olhos de muitos apoiantes do Presidente —, Pence disse que também não cederia “à tentativa da Câmara dos Representantes de fazer jogadas políticas num momento tão grave”.
Gorada a primeira via, os democratas seguiram pela segunda, a de avançar com o processo de impeachment hoje votado, trazido à votação na Câmara de Representantes por ter angariado a maioria suficiente de 218 promotores.
Trump, de resto, reagiu na véspera desta votação, considerando os preparativos “absolutamente ridículos” e a continuação da “maior caça às bruxas da história da política” dos EUA. O governante disse também que o esforço de impeachment estava a causar “tremenda fúria, divisão e dor, muita mais do que a maior parte das pessoas alguma vez compreenderá, o que é muito perigoso para os EUA, especialmente nestes tempos muito tensos”.
Tenso é a palavra certa para descrever o ambiente em redor do Capitólio e no seu interior. Depois da invasão de dia 6, foram destacados dezenas de militares da reserva, que passaram a noite dentro do Congresso. Muitos dormiam no chão das salas e corredores.
Blocos de cimento foram colocados para separar os principais cruzamentos do centro da cidade; enormes barreiras de metal cercaram prédios federais, incluindo a Casa Branca, e a Guarda Nacional esteve a fazer rondas por toda a cidade.
O que se segue?
Formalmente destituído pela Câmara dos Representantes, Donald Trump aguardará agora pelos resultados na outra câmara do Congresso dos EUA, o Senado, onde será condenado ou absolvido. É aqui que as coisas se complicam.
Antes sequer do processo ser hoje votado, Mitch McConnell, prevendo que o artigo iria passar na Câmara dos Representantes, deixou logo o aviso de que o Senado só se reuniria para discutir o tema a 19 de janeiro. Ora, esta data é um mero dia antes da tomada de posse de Joe Biden, o que significa que o julgamento deverá já decorrer em pleno mandato do novo Presidente.
Dadas estas circunstâncias, o líder da minoria democrata no Senado, Chuck Schumer, já anunciou que vai tentar que seja admitida a invocação de urgência do artigo de destituição, para que o julgamento político possa ser iniciado ainda esta semana. Este cenário, todavia, parece improvável, sendo que a votação deverá acontecer mesmo depois de dia 20.
O facto do julgamento já decorrer durante a presidência Biden pode contribuir para a condenação de Trump, mas pode ser insuficiente também.
Por um lado, com Joe Biden como presidente, as forças políticas no Senado alteram-se e este passa a ser comandado pelos democratas. Neste momento, a câmara alta do Congresso dos EUA conta com uma maioria republicana de 51 senadores para 48 na oposição. No entanto, depois de dia 20, a proporção muda para 50-50, com os dois novos senadores democratas eleitos na Geórgia a ocupar os seus lugares e a recém-empossada Vice-presidente do país, Kamala Harris, a servir de árbitro para desempatar as votações.
Por outro, ao contrário das votações na Câmara dos Representantes, que requerem apenas uma maioria simples, a decisão para condenar formalmente Donald Trump no Senado necessitará sempre de dois terços da votação, ou seja, de 67 votos. Isso implica que, pelo menos, 17 senadores republicanos votem a favor da condenação, o que parece improvável, apesar de nomes como Pat Toomey e Lisa Murkowski, já terem instado Trump a renunciar.
Trump não foi já alvo de impeachment? O que isso significa?
A dias de concluir a sua presidência, Donald Trump obteve assim a dúbia honra de ser o único Presidente na história dos EUA a por duas vezes ser visado por processos de impeachment no seu mandato.
Da primeira vez, em dezembro de 2019, Trump foi acusado de reter ajuda financeira à Ucrânia para obrigar este país a investigar supostos atos de corrupção do filho do seu adversário político Joe Biden.
Esse processo de destituição passou na Câmara de Representantes, ou seja, Trump já foi formalmente alvo de impeachment, mas esbarrou no Senado, acabando o presidente por ser absolvido.
A grande diferença é que, ao contrário da votação hoje realizada, nenhum republicano na Câmara de Representantes apoiou o impeachment anterior contra Trump. Tal mudança de atitude para com o Presidente sugere que a futura votação no senado também vá ser diferente, perdendo Trump apoios junto do seu partido. Em 2019, apenas um senador republicano, Mitt Romney, votou para condená-lo.
De destacar ainda que o facto do julgamento político provavelmente decorrer quando Trump já não for presidente não invalida a sua importância, já que a condenação formal possibilita que as câmaras votem em retirar-lhe benefícios e subvenções normalmente concedidas a ex-presidentes. No entanto, a maior consequência seria mesmo o impedimento em concorrer a cargos federais. Ou seja, sendo condenado, Donald Trump nunca mais poderia candidatar-se à Presidência dos EUA na vida.
*com agências
Comentários