Um espelho das lutas pelo poder no Vaticano? Mais um sinal de que a oposição interna ao Papa Francisco não o larga? Manifestações de idiossincrasias pessoais e incompatíveis? Um empurrão a alguém que os seus detractores dizem não ser pró-Francisco? Um sinal de que o Papa está a perder a batalha da reforma? Tudo isso e ainda outros factores escondidos? São muitas as perguntas que decorrem da demissão da equipa editorial da revista Donne Chiesa Mondo (“Mulheres Igreja Mundo”).

Só a decisão sobre a continuidade da publicação de Donne Chiesa Mondo (DCM) e a constituição da equipa que substituirá as redactoras que agora saíram permitirão retirar conclusões mais acertadas sobre o caso que esta semana abalou a Santa Sé. É mesmo de prever que, no próximo domingo, ao regressar a Roma da viagem a Marrocos, o Papa seja confrontado com o tema e ajude a esclarecer mais algum pormenor.

Há sete anos (ainda com o Papa Bento XVI) que Donne Chiesa Mondo (DCM) agitava as águas do Vaticano e do jornal oficial, L’Osservatore Romano (L’OR), com o qual era publicada na primeira quinta-feira de cada mês. A historiadora, que dirigia a revista, era amiga pessoal e colega na Universidade do então director do L’OR, Giovanni Maria Vian, e o Papa Bento XVI aceitou a ideia da edição desta revista feminina.

Desde o início, a nova publicação destacou-se como uma pedrada no charco da “neutralidade” cinzenta com que muitas publicações católicas são escritas e produzidas. Como dizia a ex-directora na carta de demissão que dirigiu ao Papa, ali se tratavam questões como a ciência, a política ou o papel das mulheres na sociedade. Também houve textos sobre o contributo de mulheres para a teologia – Hildegarda de Bingen, Teresa d’Ávila, Juliana de Norwich ou Edith Stein, por exemplo; acerca do papel feminino no anúncio cristão ou nas acções de pacificação no mundo; sobre as pensadoras religiosas muçulmanas que a tradição islâmica esqueceu; ou textos de interpretação bíblica, que deram origem a três livros acerca do papel das mulheres referidas no Antigo Testamento, nos Evangelhos e nas cartas de São Paulo.

Apesar de tudo isso, foi quando tocou em questões de poder que DCM terá agitado demais algumas águas inquinadas: a revista publicou vários artigos sobre a exploração sexual de freiras por membros do clero e acerca do trabalho não remunerado de muitas religiosas em estruturas eclesiásticas ou como funcionárias de padres e bispos.

“Nestes sete anos, o nosso objetivo foi dar voz às mulheres que, como Igreja, trabalham na Igreja e pela Igreja, abrindo-se ao diálogo com mulheres de outras religiões”, escrevia Lucetta Scaraffia na carta que escreveu ao Papa anunciando que ela e a sua equipa tinham decidido “atirar a toalha ao chão”. Apesar disso, a ex-editora do suplemento do L’OR destaca que a equipa trabalhou “no coração do Vaticano e da comunicação da Santa Sé, com inteligência e coração livres, graças ao consentimento e apoio de dois papas”.

“Clima de desconfiança”

Agora, no entanto, as mulheres de DCM sentiram-se “cercadas por um clima de desconfiança e deslegitimação progressiva”, escrevia ainda na carta dirigida ao Papa, queixando-se do actual director do L’OR, Andrea Monda. Este, no cargo desde Dezembro, não apoiou a linha do suplemento, queixa-se Scaraffia, e lançou iniciativas que pareciam competir com o suplemento, para “colocar as mulheres umas contra as outras”.

Monda reagiu negando as acusações e afirmando que garantiu ao DCM a mesma “autonomia e liberdade” que caracterizaram a publicação desde o início, recusando interferir na sua linha editorial e limitando-se a sugerir temas e pessoas para os abordar. O director do L’OR afirma ainda que manteve o orçamento, que incluía a tradução para as diferentes edições estrangeiras: em espanhol, com a revista Vida Nueva; em francês, com La Vie; e em inglês, numa versão digital. E acrescenta que procurou sempre uma linha de abertura e debate, na linha do magistério do Papa Francisco: “Posso assegurar que o futuro do suplemento mensal do L’Osservatore Romano nunca esteve em discussão; e por isso, que a sua história continuará ininterrupta. Sem clericalismo de qualquer espécie”, conclui.

Numa análise publicada no Il Fatto Quotidiano e traduzida no Brasil pela Unisinos, o jornalista Marco Politi chama a atenção para o facto de episódios como este poderem ajudar a espalhar a ideia de que as reformas preconizadas pelo Papa não avançam. “Não há razão para acreditar que o novo diretor, Andrea Monda, queira retroceder em relação à linha do Papa Francisco sobre a promoção do papel feminino na Igreja. Mas é preciso ficar com os ouvidos abertos” quando a historiadora diz o que disse ao Papa. Sente-se a reacção “da Cúria profunda, que nunca tolerou a independência do caderno feminino e entrou em alerta quando, no DCM apareceu a denúncia aberta dos abusos de poder cometidos na Igreja contra as mulheres”, escreve.

O analista do Vaticano acrescenta: “Scaraffia, que sempre foi uma moderada, enfatizou fortemente nos últimos meses que as mulheres na Igreja não importam e não são ouvidas. E muitíssimas católicas – até mesmo teólogas de orientações diferentes da sua ou fiéis comprometidas em atividades eclesiais – pensam como ela. O ano de 2019 realmente não começou nada bem.”

Uma “reaccionária” na bioética

É precisamente sobre a “moderação” de Scaraffia que surgiram outros contornos na história: várias fontes romanas contactadas pelo 7MARGENS apontam a Scaraffia uma linha moral conservadora. Recentemente, no DCM, a historiadora publicou um texto defendendo a encíclica Humanae Vitae, de Paulo VI, que marcou a ruptura silenciosa de muitos católicos com a instituição. E por várias vezes Scaraffia afirmava a sua oposição ao sacerdócio das mulheres, como fez de novo, já depois da demissão, em entrevista ao Corriere della Sera.

Um investigador católico italiano é muito crítico para com Scaraffia. Num depoimento enviado ao 7MARGENS, ele recorda que a historiadora era uma das mais fortes apoiantes de posições católicas intransigentes, por vezes mesmo “reacionárias”, no campo da bioética, além de ser crítica da “revolução sexual” da década de 1960 e do feminismo.

Há outros pormenores: várias fontes asseguram também que o actual director do L’OR é próximo do padre jesuíta Antonio Spadaro, que tem sido um conselheiro do Papa na área da comunicação. Mas, apesar de Spadaro, esta área tem estado sujeita a convulsões várias, com demissões e mudanças sucessivas na Sala Stampa, na Rádio Vaticana e no Conselho Pontifício da área, sem se perceber porque não acertam os responsáveis do Vaticano (e o Papa) nas nomeações feitas.

Em Portugal, a irmã Luísa Almendra, das Religiosas do Sagrado Coração de Maria, tomou conhecimento da demissão “com surpresa e tristeza”. Professora de Sagrada Escritura na Faculdade de Teologia da Universidade Católica, Luísa Almendra escreveu um texto para o DCM em Março de 2017, num convite feito por uma das pessoas da redacção. “Foi então que tomei conhecimento deste suplemento e passei a ler sempre com muito interesse a publicação mensal”, diz ao 7MARGENS. A revista “oferecia-nos um rosto feminino, que percorria diversos âmbitos: social, bíblico, eclesial, histórico… e demarcava-se pela oportunidade e diversidade temática, e ainda pela colaboração que solicitava a mulheres de Igreja oriundas de diversas partes do mundo”, acrescenta. Agora, a religiosa portuguesa espera que a publicação continue, sem perder a riqueza de perspetiva que ofereceu até ao momento.

Na próxima quinta-feira, 4 de Abril, estará na rua o número 78 de Donne Chiesa Mondo, o último dos dirigidos por Lucetta Scaraffia. O futuro?…

Autor: António Marujo