O consumo de drogas está de volta às ruas. Todos os dias, cada vez mais, se volta a ver o consumo a céu aberto. As instituições dizem que estão lotadas, a crise na habitação, e o aumento do custo de vida, agrava o problema. Se Portugal já foi um exemplo mundial no combate ao consumo, com programa de apoio à toxicodependência e despenalização das drogas, agora olhando para algumas zonas das cidades parece ter regredido,mas não foi isso.

“O que aconteceu foi a falta de investimento ao nível dos recursos humanos”, afirma João Goulão, diretor-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), em conversa telefónica com o SAPO24.

Depois de 2012, não tem sido possível “manter as equipas com a mesma capacidade de resposta”, explica Goulão, refutando, contudo, que tenha havido um “desinvestimento formal a nível orçamental”, embora reconheça que “os mecanismos que tinham, permitiam captar novos profissionais, repondo os que iam saindo”, seja por reforma, seja por outros motivos.

“Tem sido uma progressiva sangria de profissionais dedicados a estas matérias”, aponta o responsável pelo Serviço que é diretamente tutelado pelo Ministério da Saúde, quando deixou de ser IDT - Instituto das Drogas e Toxicodependência, e que tinha na altura 1600 profissionais dedicados.

“Quando o IDT foi extinto, tínhamos cerca de 1600 profissionais, transitaram para o SICAD, que foi criado com o estatuto de Direção Geral, cerca de 80 a 90 profissionais”, lamenta João Goulão, lembrando que os todos os outros foram para as administrações regionais de saúde (ARS) e enquadrados em “tarefas relacionadas com o SNS”.

O diretor já não consegue precisar o número exato de profissionais dedicados ao serviço das dependências, porque estão dispersos pelos SNS e recorda que quando foi criado o Centro das Taipas, em Lisboa, “era o centro mais poderoso em termos de recursos humanos em Portugal”, diz. “No final dos anos 1980, tinha cerca de 130 profissionais, neste momento tem 30”, aponta.

“A dado momento, parece que os responsáveis políticos se convenceram do sucesso que fomos tendo, no enfrentar desses fenómenos que refere dos anos 1980/90, sobretudo relacionados com a epidemia do uso de heroína”.

Nas últimas décadas do século passado, Portugal viveu o flagelo da droga. O consumo e o tráfico tornou-se um problema social que exigiu a tomada de medidas ditas “inovadoras”. A descriminalização do consumo e a mudança de paradigma face aos dependentes de drogas, que deixaram de ser tratados como delinquentes e a ser aceites como doentes, fez com que passassem a ser integrados no sistema de saúde e a receber tratamento de substituição de heroína por metadona. O consumo de heroína e cocaína baixou, como também baixaram as infeções por HIV entre os consumidores. O programa ganhou reconhecimento internacional e passou a ser exemplo para outros países.

“Na altura, parece que as pessoas se convenceram que estava tudo resolvido e que não era necessário manter o mesmo esforço”, lamenta Goulão.

Que é feito do programa considerado inovador no combate à toxicodependência?

Sala de consumo vigiado de drogas com triplo de utentes do que tinha estimado
Sala de consumo vigiado de drogas com triplo de utentes do que tinha estimado Imagem de arquivo. 20 DE NOVEMBRO DE 2021. ANTÓNIO COTRIM/LUSA créditos: Lusa

Mais de vinte anos depois, o programa parece ter perdido o fôlego. “Aquilo que era identificado como a primeira preocupação dos portugueses, por alturas de 1997, por exemplo, era a primeira preocupação identificada no Eurobarómetro, e isto tinha tradução ao nível das prioridades políticas, foi caindo no ranking dessas prioridades. Costumamos dizer que trabalhamos para a nossa própria extinção: à medida que o sucesso foi sendo sentido na sociedade portuguesa, o carinho dedicado e a atenção dedicada a estes temas foi baixando”.

Apesar de não parecer, o programa de apoio à toxicodependência mantém-se. E os tratamentos com metadona também. “Mantém-se em vários pontos do país”, confirma João Goulão.

“Aquele que inclui o maior número de utentes é em Lisboa. Administrado através de carrinhas que circulam e param em vários pontos da cidade, em horas previamente definidas, mas que servem mais de 1000 utentes diariamente, todos os dias”, garante o diretor do SICAD.

Considerado de importância capital para a resposta, sobretudo durante a pandemia e o corte dos circuitos ilícitos de distribuição de heroína, “de repente aparecem centenas de pessoas a pedir ajuda”.

A dependência de opiáceos impunha que estas pessoas fossem incluídas em programas, nomeadamente o Programa de Substituição de Baixo Limiar de Exigência que se destina a promover a redução do consumo de heroína por via da sua substituição por metadona. Segundo o diretor do SICAD, os programas de consumo vigiado foram e são uma resposta de capital importância e a intenção será “mantê-los e alargá-los quando possível”. O problema tem sido as várias crises que o país (e o mundo) tem enfrentado.

“As consequências de crises sucessivas, desde logo a crise da dívida soberana, teve impactos sérios na sociedade portuguesa. Depois a pandemia e por último, as dificuldades acrescidas a nível social que resultam das consequências da guerra na Ucrânia. Com a inflação, as dificuldades de habitação e por aí fora, há cada vez mais pessoas em sofrimento. Isso tem reflexos na sua saúde mental e nas suas circunstâncias de vida”, diz.

O mesmo acontece com os profissionais de saúde, a sua falta sobrecarrega quem está.

“Isso foi, paulatinamente, fazendo esticar as competências dos profissionais disponíveis até níveis que neste momento são incomportáveis e que nos levaram a ter de novo listas de espera, constrangimentos ou de encaminhamentos para tratamento”, aponta João Goulão.

Daí estarmos a assistir a um regresso do consumo de droga a céu aberto. “E portanto, estes consumos problemáticos estão a tornar-se mais visíveis”, acrescenta. “Temos dificuldade para manter os níveis de resposta, sobretudo ao nível do tratamento”, avisa o diretor do SICAD, que em breve se converterá em ICAD, deixando de ser uma Direção-geral e passando a instituto que lhe trará “maior autonomia, de gestão e financeira”, assim espera.

Associações com falta de recursos

FAROL
FAROL FAROL créditos: LUÍS NOBRE GUEDES | FAROL

Do lado das associações, o problema começa a ser a falta de condições para ajudar e acolher quem pede ajuda, muito por causa do financiamento. Grande parte dos centros de acolhimento e apoio à desintoxicação são associações IPSS que vivem muito de apoios.

O SAPO 24 conversou com três associações que lidam diretamente com pessoas com comportamentos aditivos.

“Temos tido um aumento do número de pacientes, mas como várias instituições fecharam recentemente, não posso precisar se se deve ao aumento do consumo”, diz Assunção Cruz respondendo se nota um aumento do consumo de droga. “O que há, de facto, é menos camas disponíveis. Muitas instituições fecharam por falta de financiamento”, diz a responsável pela Associação Farol ATT.

A Farol recebe utentes que procuram tratamento de desintoxicação e desabituação. A diretora técnica da Associação, com sede em Sintra, lamenta o aumento do custo de vida que está cada vez mais desfasado dos apoios do Estado.

“Temos vindo a sobreviver e outros tiveram que fechar porque a comparticipação que é dada não tem sido proporcional ao aumento do custo de vida. Temos muitas camas convencionadas, a maior parte, e os custos que temos agora não se comparam”, diz a diretora técnica.

No que diz respeito à falta de financiamento estatal e de um potencial abandono das medidas de combate ao consumo de droga, Assunção Cruz discorda que haja desinteresse por parte do Estado. “Não creio que seja desinteresse, mas outras prioridades que se sobrepuseram à toxicodependência, e o dinheiro deixa de ser canalizado para esta área”.

“E nós sofremos essa repercussão”, diz, destacando que um dos maiores problemas é quando mudam os governos.

“Sempre que há mudanças de governo as coisas complicam porque na tentativa de se abordar os novos responsáveis para se atualizar os valores, nunca há verba para nós”, lamenta a responsável. Pelo menos não melhora e “ficamos sempre no fim da linha”, acrescenta Assunção Cruz que alerta para um surgimento de consumo de novas drogas.

“A maioria dos nossos pacientes são consumidores de cocaína, álcool e heroína, mas também temos recebido consumidores de drogas sintéticas”.

É numa faixa etária mais jovem, que temos consumidores só de drogas sintéticas”, diz a responsável, chamando atenção para a nova lei recém-aprovada que despenaliza o consumo de drogas sintéticas.

A nova lei da droga que descriminaliza as drogas sintéticas e faz uma nova distinção entre o tráfico e o consumo dessas novas substâncias, entrou em vigor a 1 de outubro.

O diploma determina que, se a aquisição e a detenção das drogas exceder "a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, constitui indício de que o propósito pode não ser o de consumo”, mas sim o de tráfico, quando antes o limite máximo era de cinco dias.

“É uma área a ter muito cuidado, e é preciso ver qual vai ser o resultado disso, porque tem de haver um apoio generalizado para receber essas pessoas. São drogas sintéticas. Acaba por ser uma falsa questão. Ou seja, despenalizam essas drogas que as pessoas habitualmente acabam por juntar a outros consumos e acabam também por precisar de ajuda”, conclui a diretora da Farol.

Segundo o “Relatório Europeu sobre Drogas 2022: Tendências e evoluções”, foram apreendidas em 2020 quase sete toneladas de drogas sintéticas, substâncias que são vendidas pelas suas propriedades psicoativas, mas não são controladas ao abrigo das convenções internacionais em matéria de droga.

“Existe preocupação quanto ao crescente cruzamento entre os mercados de drogas ilícitas e de novas substâncias psicoativas. (…) Estes desenvolvimentos significam que os consumidores podem ser expostos, sem conhecimento de causa, a substâncias potentes que podem aumentar o risco de episódios de ‘overdose’ fatais ou não fatais”, alertava o relatório.

“A droga, e a saúde mental, sempre foi um parente pobre para o Estado"

No Algarve, a Associação GATO lida com o tratamento de pessoas com problemas de droga e substâncias aditivas há mais de trinta anos.

“A droga, e a saúde mental, sempre foi um parente pobre para o Estado e sempre foi mal vista pela sociedade e pelos governos”, diz Fernando da Costa Segura, diretor técnico da Associação de Faro, em fase de passagem de testemunho ao fim de mais de 30 anos no ramo.

“Houve anos que passamos por muitas dificuldades até conseguirmos receber doentes, muito por questões burocráticas e sobretudo problemas financeiros. Tínhamos os doentes em tratamento, mas recebíamos muito tarde do Estado e isso causava muitos problemas”, recorda o psicólogo clínico.

“A quantia que o Estado paga por doente, desde então até hoje, sofreu um aumento de apenas 5%, o que é nada tendo em conta o atual custo de vida - a inflação”, afirma, “o que ilustra o desinteresse por parte do governo”, lamenta, “dos governos”, corrige.

Segundo o diretor técnico da comunidade algarvia, o Estado deixou de acompanhar a inflação, em termos do que paga em apoios, há muito tempo. “Penso que desde 2008 que não há aumentos. Portanto, imagine o que as associações passam para aguentarem”.

Fernando Segura tem a mesma opinião de Assunção Cruz, “a prioridade na prevenção e tratamento de pessoas com comportamentos aditivos parece ter mudado”, diz. Pese embora o facto do surgimento de novos problemas, sobretudo de saúde mental.

“No início dos anos 2000 estávamos na terceira ou quarta prioridade do Estado, em termos orçamentais, agora devemos estar na vigésima.É preciso lembrar que as instituições privadas, como a nossa, que é IPSS, substituem o governo na tarefa de lidar com o problema, e veja só as dificuldades”, afirma o diretor técnico.

O psicólogo clínico chama a atenção para os problemas de saúde mental, que “têm vindo a aumentar e é preciso estar atento”.

“As pessoas que consomem drogas acabam por ter problemas de saúde mental graves", alerta. E explica que “um consumidor de droga há mais de 30 anos, está ou esteve 30 anos alheado do mundo, da sociedade, é como se voltassem para trás quando os trazemos de volta. Hoje, o sujeito está bem, mas de repente deixa de estar. É como se voltassem a ser crianças de 15 anos. Muitos têm de aprender tudo de novo”, explica Fernando Segura.

“Se não fossem as instituições como a GATO, não sei onde é que estas pessoas iam parar”, desabafa o psicólogo.

Fundada em 1990, em Faro, esta instituição privada sem fins lucrativos surgiu através de um conjunto de famílias que se reuniram para formar o Grupo de Apoio ao Toxicodependente. “Na altura não havia muita resposta e estas pessoas que tinham familiares com problemas de consumo, criaram a associação que hoje é reconhecida como IPSS - Instituição Particular de Solidariedade Social”, explica o diretor técnico.

Fernando Segura tem visto muita gente com problemas de álcool “muito acentuados”. Problemas de adição ao jogo: “sujeitos com a vida feita num oito por causa do jogo”. Portanto, problemas já não só de droga mas de saúde mental, que exige novas práticas de tratamento. Por isso tem de haver esse ajuste de cariz social”.

As pessoas que vão à procura da comunidade GATO são cada vez mais velhas. Pessoas que consumiram há muitos anos, que voltam, muitas vezes, “com novos vícios”.

De acordo com o clínico, “a reinserção social dessas pessoas é muito complicada”. “Há poucas intervenções, por parte do Estado, nesse sentido”, nota, referindo-se à dificuldade que uma pessoa recuperada tem no regresso ao mercado de trabalho, indo, muitas vezes, "parar à grelha dos restaurantes" (é onde são aceites, os que conseguem trabalho).

A associação também recebe jovens, de todo o país, mas mais da região do Algarve e sobretudo depois da época do verão. “Quando são jovens, é mais complicado obtermos um prognóstico porque estão ainda na fase da 'lua de mel' do consumo, isto é, o sujeito que consome há pouco tempo, pensa que está no controle da situação e que domina o vício, mas isso é errado. É tudo automanipulação”, alerta o psicólogo.

Mas a grande dificuldade para a instituição é “a questão financeira”, sublinha o diretor, recordando o difícil período da pandemia que dificultou a admissão de doentes, aumentou os custos e parou os apoios. “Foram dezenas de milhares de euros em prejuízos e ordenados em atraso”, recorda.

E tal como aconteceu na região da Farol ATT, muitas comunidades do Algarve também fecharam por falta de dinheiro. “Tem havido um desinvestimento grande na área”, sublinha. Atualmente, a GATO parece ter ultrapassado essa fase menos boa. “A situação está resolvida, mas foi um período difícil”, conclui Fernando Segura.

Consumo de Canábis e álcool entre os jovens

Canábis
Canábis Imagem de arquivo. 13 de setembro de 2019. CARLOS BARROSO/LUSA créditos: © 2019 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

No Centro do país, o SAPO24 conversou com Ricardo Sousa, psicólogo e responsável pela equipa de intervenção direta do centro comunitário S. José, em Coimbra.

No que diz respeito a apoios, o psicólogo não nota falta de recursos, e acrescenta que a sua equipa é constituída por psicólogos e técnicos e tem dado resposta ao previsto no programa que gere e que é convencionado pela Segurança Social.

Atualmente, o centro de S. José presta apoio a 50 pessoas com dependência física ou psicológica, de drogas ou substâncias tóxicas, no Bairro da Rosa. Um dos objetivos deste centro é “evitar recaídas” das pessoas que pedem ajuda.

“Fazemos um acompanhamento social às pessoas de modo a evitar recaídas ou lapsos”, conta o psicólogo. De acordo com o especialista, "lapso” é quando a pessoa, que está em tratamento, tem pequenos episódios de consumo, mas consegue voltar ao tratamento, sem cair de novo nas drogas.

Questionado se tem notado um aumento de consumo de drogas em Coimbra, Ricardo não consegue precisar se, em termos globais e da cidade, aumentou, mas no que diz respeito ao centro pode afirmar que “não tem notado um aumento de procura de ajuda” por parte de consumidores. “Mantêm-se as 50 pessoas que temos em tratamento”, no S. José, afirma.

Mas quando o psicólogo vai para a rua com a sua equipa, tem notado um aumento do consumo de Canábis entre os jovens, o que o deixa preocupado.

“No dia-a-dia, no contacto de rua, percebemos que há mais consumo de Canábis, nas ruas e à porta das escolas e preocupa-nos que esse consumo seja inconsciente”, constata, esclarecendo que a preocupação não está no potencial avanço de consumir Canábis para as drogas ditas pesadas, “não é isso que se verifica, mas que os jovens percebam que estão a consumir uma substância que faz mal. Que seja um consumo informado, mais consciente”, explica o terapeuta.

Outra questão que o preocupa é o consumo de álcool que tem notado um aumento quando vai para a rua com a sua equipa, problema que “agudizou com a pandemia”. No que se refere às pessoas com consumo de drogas pesadas, as que estão no centro “mantém o programa de substituição com metadona” e tudo corre conforme o programa.

O centro S. José faz parte da Cáritas Coimbra. A instituição presta apoio social em várias frentes, sendo a adição e a toxicodependência uma delas. Nesta valência a Cáritas Coimbra tem equipas de rua, comunidades terapêuticas, apartamentos com capacidade para oito utentes, alojamento para pessoas sem-abrigo e equipas de intervenção direta, onde está o psicólogo Ricardo Sousa.