Jorge Moreira da Silva lidera o Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (UNOPS), agência da ONU que, antes da guerra entre Israel e o Hamas, fazia "três milhões de litros de combustível" passar semanalmente pela fronteira de Israel com Gaza e garantia que esse combustível, "com todas as condições de verificação e de monitorização", chegasse à única central de produção de eletricidade que existe em Gaza.
Agora, com esse projeto suspenso devido à guerra e com Israel a não autorizar que combustível entre no enclave alegando receios de apropriação por parte do Hamas, a experiência da UNOPS mostra que é possível que o combustível seja entregue aos devidos destinatários.
Em causa está um projeto datado de 2018 e que envolveu "todas as partes": foi negociado pelo "coordenador especial para o Processo de Paz no Médio Oriente, financiado pelo Qatar, teve uma empresa israelita a fornecer o combustível a Gaza e a UNOPS fez todo o trabalho de levar o combustível desde a fronteira até à central", recordou Moreira da Silva, em entrevista à Lusa, em Nova Iorque.
"É um projeto exemplar, porque envolveu o acordo de todas as partes e envolveu uma outra parte que foi a UNOPS, que assegurou as condições de verificação e de monitorização desse combustível. E, naqueles cinco anos em que operamos, todas as partes consideraram que o combustível estava a ser usado para os seus objetivos", disse.
"Portanto, o que eu quero dizer com isto é que é possível fazer chegar combustível a Gaza assegurando que ele não vai parar a outras mãos que não o destino adequado que está atribuído a esse combustível", garantiu o subsecretário-geral da ONU.
Jorge Moreira da Silva observou, porém, não poder responder "sobre outro combustível que possa ter vindo a ser fornecido".
"Agora, para este projeto em concreto, a experiência diz-nos – e isso foi reconhecido por todas as partes - que é possível fazer chegar combustível sem haver desvios", frisou.
A agência da ONU para os refugiados palestinianos (UNRWA) em Gaza alertou no início da semana que as operações humanitárias podem cessar por não ser permitida a entrada de combustível no território.
Moreira da Silva sublinhou que a falta de combustível tem implicações em vários setores vitais em Gaza - desde a produção de água potável, uma vez que o processo de dessalinização depende de combustível para ser levado a cabo, ao saneamento e para que os hospitais possam continuar a salvar vidas, além de manter a funcionar serviços essenciais como "padarias", por exemplo.
"Portanto, não basta fazer entrar alimentos e medicamentos. A entrada de combustível é essencial", reforçou.
“Como o secretário-geral da ONU tem dito, é indispensável um cessar-fogo humanitário, a abertura dos corredores humanitários e a garantia de que a ajuda, nomeadamente água, alimentos, medicamentos, mas também o ‘fuel’ entrem na quantidade que é necessária”, disse Moreira da Silva, ressaltando ainda a necessidade de garantir condições de segurança para que os camiões que levam ajuda humanitária possam ser operados.
"Ser funcionário da ONU já não é garantia de segurança"
A guerra em Gaza "tem-nos colocado numa posição diferente do habitual quanto à segurança, isso sim é novo", porque, "habitualmente, considerava-se que ser funcionário das Nações Unidas era uma garantia de segurança", disse Moreira da Silva, em entrevista à Lusa, em Nova Iorque.
No entanto, já morreram mais de 100 funcionários das Nações Unidas em Gaza nos bombardeamentos de Israel em resposta aos ataques de 7 de outubro perpetrados pelo Hamas.
"Nunca tantos funcionários das Nações Unidas morreram. Hoje, estar em infraestruturas das Nações Unidas não significa ter qualquer tipo de proteção adicional.
"Normalmente, infraestruturas das Nações Unidas não eram atacadas, as pessoas que estavam em infraestruturas das Nações Unidas não eram atacadas. Ora, hoje, quer os funcionários da ONU, quer as pessoas que estão alojadas em infraestruturas da ONU, estão sobre exatamente os mesmos riscos que o resto da população em Gaza e portanto, isso sim é algo novo que nunca tínhamos visto", observou.
Questionado sobre se isso obrigará a ONU a mudar a sua abordagem, o diretor executivo do Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (UNOPS) disse acreditar que não, mas assegurou que os funcionários terão agora de ter "cuidados acrescidos".
"Vai obrigar-nos a continuar a trabalhar com cuidados acrescidos, na medida em que estamos a defender as populações e, ao mesmo tempo, quem está em Gaza como funcionário humanitário das Nações Unidas tem que se proteger a si próprio", disse.
Jorge Moreira da Silva assumiu ter "um enorme orgulho" nos cerca de 70 funcionários da UNOPS que estão em Gaza e que querem continuar no território, salientando que, apesar das circunstâncias tão difíceis a que estão sujeitos, "aquilo que mais querem é poder ajudar a população".
Todos os escritórios da ONU ao redor do mundo fizeram na manhã de segunda-feira um minuto de silêncio pelos mais de cem funcionários da agência da ONU para os refugiados palestinianos (UNRWA) que perderam a vida em Gaza.
Na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, a bandeira da ONU foi colocada a meia haste como parte da homenagem a esses funcionários que morreram.
Ainda num olhar para outros conflitos ao redor do mundo, e para a falta de financiamento que os apelos da ONU enfrentam, Moreira da Silva salientou que "as outras crises não desapareceram", como no Sudão, Níger, Myanmar, Iémen, Mali, Haiti, Somália, no Afeganistão ou em Moçambique.
"É fundamental que a comunidade internacional se continue a mobilizar para ajuda adicional e não para a substituição de ajuda. Nós não podemos parar de apoiar e de ajudar a mitigação de outras crises só porque existem novas crises, o que significa que nós precisamos de mais solidariedade e mais cooperação internacional", reforçou.
A lacuna para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nos países em desenvolvimento aumentou 56% após a pandemia de covid-19, totalizando 3,9 biliões de dólares (3,65 biliões de euros) em 2020, segundo a ONU.
Depois da pandemia, surgiram ainda novos fenómenos de crise, como os conflitos na Ucrânia e em Gaza, conforme observou o diretor da UNOPS.
"Este é um momento em que a comunidade internacional tem de se mobilizar para mais solidariedade e maior cooperação. É importante que tenhamos noção que estamos a viver um momento de 'policrises'. (...) Além destas crises muito associadas a conflitos ou a fenómenos que não estávamos à espera, como uma pandemia, ainda temos três crises que estão connosco há muito tempo: a climática, a da biodiversidade e a da pobreza", sublinhou.
Contudo, apesar de todo o cenário, os países em desenvolvimento "são sempre desproporcionalmente afetados": "As crises podem ser globais, mas há sempre quem sofra mais e quem sofre mais são sempre os mais pobres. São os mais pobres dentro de cada país e são os mais pobres a nível global", disse Moreira da Silva.
Nesse sentido, o subsecretário-geral da ONU considera fundamental um maior apoio aos países em desenvolvimento, "não só por razões éticas e morais", mas "também porque é do próprio interesse dos países do norte e dos seus cidadãos este apoio à sustentabilidade".
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