O dia começou cedo com aquela ideia de manhã clara que a poetisa nos deixou para sempre e que nunca se gasta. Dormimos numa casa tradicional, o Sonho da Seara, na freguesia do Bico. Somos recebidos como o Minho sabe receber, com generosidade e uma certa altivez que não representa distância, apenas uma certa ideia de que se tem algo de precioso e único.

O pequeno almoço é simples e saboroso, a cozinha é ampla e tradicional. A nossa anfitriã chama-se Perfeita – palavras para quê? Havemos de voltar a falar dela.

Saímos dali em direção à Colónia Agrícola de Chã de Lamas. Há 60 anos nascia em plena área natural um espaço quase laboratorial criado pela Junta de Colonização Interna para tornar cultiváveis extensas áreas de terreno baldio..O nome como que ensombra, mas ouviremos mais tarde que “nem tudo o que o Estado Novo fez era mau”.

Aquele espaço em concreto não era mau. Foi desenhado para acolher 10 famílias que não foram obrigadas a ir para lá, antes concorreram. Cada uma recebeu uma casa, um pedaço de terra e na colónia foi ainda construído um forno comunitário e uma escola – e ainda ficou por construir uma capela e um posto médico. Hoje a escola primária e a residência do professor são as instalações do Centro de Educação e Interpretação Ambiental de Corno de Bico.

“A ideia era impulsionar a produção da batata”, conta-nos Isabel Barreto, uma filha da terra e funcionária da Câmara Municipal de Paredes de Coura, que é uma das nossas guias da visita. Ela própria casada com um filho daquela terra em específico, um dos bebés da colónia.

O projeto inicial compreendia dois núcleos, o da Lameira do Real (com implantação em Arcos de Valdevez e Monção) e o de Vascões, onde nos encontramos, constituído por 15 habitações geminadas, com capacidade para acolher 30 “casais agrícolas”. Vistas de cima - como na fotografia que abre este artigo - parecem fatias de pizza, geometricamente perfeitas.

Os casais que se candidatavam tinham de ser “idóneos”, não ter bens e aceitar fazer um teste de saúde. Os escolhidos recebiam uma casa mobilada, utensílios de agricultura e parcela de terreno. Ah, e um cheque de 10 contos na moeda antiga (50 euros se a conversão fosse direta, mas na verdade valia bem mais que isso).

“A nível económico, na região foi um marco. As pessoas tinham um sítio onde podiam ganhar um salário”, continua Isabel no seu relato. A ideia de ter um salário era extraordinariamente revolucionária num país que na segunda metade do século XX ainda vivia mergulhado numa pobreza antiga, mais ainda nas zonas rurais. Muitas pessoas que não viviam na colónia iam para lá trabalhar a terra – e receber um ordenado; tal como, alguns casais tinham um dos elementos a trabalhar na colónia e outro com um emprego fora dali.

“E a agricultura foi modernizada porque vieram engenheiros agrónomos que ensinavam como trabalhar a terra”. Foi assim que numa terra que conhecia apenas 3 ou 4 espécies de batatas passou a haver mais de 300. “Era a única colónia organizada”, diz sem disfarçar orgulho Isabel. E ficamos também a saber que o Peru é o país que mais batata e mais variedade tem porque “se dá bem com as terras altas”

As outras colónias distribuíam-se por Montalegre, Boticas, Chaves, Alentejo e Serra da Estrela, mas o fenómeno não foi exclusivamente português. Tanto que no ano passado um grupo de historiadores, sociólogos, arquitectos que andou a fazer um levantamento das colónias agrícolas na Europa também passou por ali. “A história que qui encontraram era diferente da de outros locais na Europa onde as colónias serviam de castigo”.

Inaugurada na segunda metade dos anos 50, a colónia começou a perder vitalidade na década seguinte com a emigração massiva em Portugal e na região em concreto. A própria Junta de Colonização Interna começou a retirar técnicos que são recordados como bons técnicos, gente que sabia do que fazia. Os habitantes ou colonos criaram uma associação que se manteria até anos 80, década em que o Estado propôs que pudessem comprar as terras e as casas.

Nos anos 90, a colónia continuava a atrair engenheiros agrónomos e vários viveram mesmo lá. “Este é um projeto de sonho para alguém ligado à agricultura”, comenta Paulo Pereira da empresa Coura Aventura que, em conjunto com o filho, Eurico, nos guiará depois num percurso pelo Corno do Bico a partir dali.

Mas não sem antes ouvirmos e provarmos o que sai das mãos da Dona São. Uma minhota dos cinco costados, nascida e criada por ali, que aprendeu em casa com a mãe, as tias, as irmãs a amassar o pão que na verdade é broa e a fermentar a voz que lhe sai cristalina. Da massa que manuseia sem precisar de olhar vai sair uma broa que se oferece ao mel e um bolo do tacho que poderia ser motivo para iniciar um incidente diplomático sobre a primazia face à pizza.

“Isto agora é o cantinho das pessoas, há pessoas com 80 anos que vieram para cá com 20 e pouco”, diz Isabel Barreto. No auge a colónia foi a casa de cerca de 200 pessoas, as famílias cresceram, os filhos eram muitos na época. Uma das jovens dos anos 60 era a professora Feita – ou Perfeita que de manhã nos recebeu – e que em conjunto com o professor Esteves ensinava as crianças do local. A escola fechou nos anos 90.

Agora são os netos dos colonos, hoje com 20 ou 30 anos, que ganham um interesse redobrado por aquela terra e muitos estão a reconstruir a casa dos avós. Mas também vem muita gente de fora, à procura da terra, do ar, das vistas e da(s) história(s). Dizem que durante o estado de emergência decretado em Portugal neste ano da graça de 2020 "havia aqui mais gente do que no centro da vila".

Aqui, na Colónia Agrícola de Chã de Lamas, ou mais simplesmente da Boalhosa, nome original do projeto e da serra onde está localizada.

Histórias à margem: era uma vez um moleiro

Uma volta ao Corno do Bico não fica completa sem uma passagem pela casa do senhor Manuel, 92 anos, moleiro há mais de 50 anos. É uma casa pequenina com uma mó poderosa lá dentro onde continua a moer o milho que dará a farinha. Quando era jovem saiu um dia da terra para ir para Angola, ainda antes da guerra colonial, e de Angola seguiu para o Brasil - onde quase podia ter ficado. Mas regressou à terra e é desde então o moleiro do Bico e um repositório de histórias de quase um século. A do seu casamento é uma delas. Quando regressou do Brasil, os anos tinham passado e a rapariga que lhe tinha ficado prometida na terra tinha casado. O pai da prometida não quis falhar à promessa e propôs-lhe que casasse com uma das outras três filhas. "Mas como é que eu havia de saber qual?", relata, fazendo lembrar alguns dilemas das fábulas infantis. "Decidi fazer três rifas e a que acertasse no seu próprio nome era aquela com casava". Acertou a Graciete e vivem juntos há mais de 50 anos.

Coura Me | Produtos regionais de Paredes de Coura
créditos: Pedro Marques | MadreMedia

Então o que é que se come aqui?

É uma pergunta que se impõe por todo o Portugal e no Alto Minho dispensa razões. Em Paredes de Coura, a autarquia decidiu facilitar o processo de degustação com um cabaz que nos permite provar a terra. Reuniram-se produtores, chamaram-se designers de produto e o resto, e mais importante, já lá estava – que era o sabor e a qualidade. Nasceu assim a etiqueta Coura Me pela qual se podem encontrar produtos da terra como os enchidos “Nosso fumeiro” e “Laurentino” – há por aqui a alheira vegetariana que rezam as crónicas João Manzarra tratou de tornar famosa ao falar sobre ela num congresso vegetariano – sabonete de mel e de menta, mel desidratado, biscoitos de milho,  fidalguinhos, rosa courense, Woodbowl – uma marca de design inspirada em formas tradicionais e um licor “Inde à Merda” que foi buscar nome a uma frase que é só uma forma de falar por estas bandas.

Uma sugestão de roteiro:

Em breve também poderá visitar o arquivo do escritor Mário Cláudio (doado por ele à Câmara Municipal de Paredes de Coura)

Este artigo faz parte do dossier "Alto Minho: na rota do que é "sustentável por natureza" que conta com o apoio do projeto "ECODESTIN_3_IN", cofinanciado pelo programa POCTEP - Programa de Cooperação Transfronteiriça Espanha-Portugal

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