No Bairro Alto, onde as ruas estreitas costumavam estar cheias de turistas antes do surto da covid-19, as auxiliares de geriatria da Santa Casa Misericórdia de Lisboa (SCML) percorrem a pé todas as vielas da zona.
Num sobe e desce que começa às 08:00 e termina ao final do dia, correm contra o relógio para conseguir chegar aos cerca de 250 utentes, sobretudo pessoas idosas, numa área geográfica que abrange três das 24 freguesias da capital: Misericórdia, Santo António e Estrela.
"Quando elas entram aqui, é um anjinho da guarda que entra", conta à Lusa Alexandrina Jesus, de 72 anos, falando à porta de casa, depois de as auxiliares da SCML terem colocado as chaves na fechadura. Na entrada, a filha até deixou um aviso, com data de 15 de março: "Devido aos meus pais serem um grupo de elevado risco, não é permitido entrar sem máscara e luvas".
Com a devida proteção individual, Paula Ferreira é uma das funcionárias que entra na casa para dar as refeições e tratar da higiene pessoal do marido de Alexandrina, Manuel Jesus, de 86 anos, que está acamado e sofre de Alzheimer. Entre o silêncio da solidão, ouvem-se os gritos de dor que a velhice carrega.
"Conforme está o vírus, neste momento, se nós não viermos a casa dos utentes, há pessoas que não comem, não fazem a higiene, porque não têm como", afirma Paula Ferreira, enquanto espera o sinal do micro-ondas que aquece a comida.
Sabe de memória os nomes, as moradas e até as chaves das portas. São vários quilómetros a pé, percorridos "com medo" do novo coronavírus, mas, "no fim do dia, é gratificante".
"Corremos imenso para poder estar nos apoios todos que damos, mas é um trabalho de que gosto, é bonito e estamos sempre prontas para ajudar os nossos utentes", realça a auxiliar de geriatria da SCML. Ainda que o trabalho seja "um bocado pesado", o principal lamento é o "tempo muito limitado", sobrando poucos minutos para conversar com os idosos.
Ao contrário do marido, Alexandrina Jesus mantém alguma mobilidade, mas é asmática, diabética e sofre do coração. O risco associado à covid-19 impede que saia à rua. Neste período, celebraram ambos mais um aniversário, mas sozinhos em casa, tal como a Páscoa.
"Isto agora é assim a vida, estamos aqui os dois, os dois fechadinhos", acrescenta a idosa, protegida com máscara. Cumprindo o isolamento obrigatório, é na varanda que Alexandrina se refugia, cumprimenta os vizinhos e aproveita os raios de sol, mesmo nos dias de chuva.
Com os condicionamentos provocados pela pandemia, que obrigam ao contacto à distância com a família, este apoio domiciliário da SCML, de que beneficiam há nove anos, ganha maior importância.
"Se não fossem elas, morríamos aqui os dois, porque eu não tenho força para nada", refere a idosa, considerando que as auxiliares de geriatria "são incansáveis". O apoio é assegurado através de quatro deslocações por dia aos domicílios. Coincide com o momento das principias refeições, desde o pequeno-almoço ao jantar, mas é também aproveitado para dar a medicação, troca de fraldas e outros cuidados de higiene.
A viver sozinha, Maria do Céu Santos, de 90 anos, recorda com saudade os tempos em que foi cozinheira nos bombeiros de Lisboa, em que a destreza não lhe faltava. A velhice prendeu-a a uma cadeira de rodas e impossibilitou-a de continuar a ser independente.
"Tem de me lavar, tem de me vestir, tem de me dar de comer. O que eu era e o que eu sou agora", confidencia a idosa. De pijama, com uma mantinha sobre as pernas, agradece o apoio da Santa Casa, serviço que é pago conforme a reforma.
Com uma estatueta de Nossa Senhora de Fátima à entrada de casa, Maria do Céu agarra-se à fé para combater a solidão. O vírus parece ser o menor dos seus problemas: "Nunca saio de casa, não posso apanhar".
"Só tenho medo de noite e quando estou sozinha", disse a idosa, compreendendo que as auxiliares não podem ficar a fazer-lhe companhia, porque há mais pessoas para receber estes cuidados.
A rotina, mesmo com pouco tempo, permite que se formem laços de afeto. Para muitos dos idosos, as auxiliares são uma segunda família ou "até, às vezes, a primeira, é o caso da dona Céu, é uma senhora que não tem ninguém", frisa Paula Ferreira.
No âmbito da pandemia, mantêm-se os apoios que a SCML já prestava e regista-se o aumento da procura pela entrega de alimentação no domicílio. A distribuição das refeições é assegurada duas vezes por semana, com comida embalada para todos os dias.
Na zona do Cais do Sodré, num prédio de estilo pombalino, sem elevador, é preciso subir mais de 100 degraus de escadas para chegar à porta de Isabel Muller Ferreira, de 90 anos, que vive sozinha e beneficia da entrega das refeições.
Apoiada na bengala em prata, que é também uma arma de defesa pessoal, a idosa resiste à ideia de ficar em casa. Sem receio do novo vírus, insiste em sair à rua, contrariando todas as recomendações, inclusive o uso de máscara.
"Quando vou para a rua, Deus vai comigo que eu vou com ele. Deus à minha frente e eu atrás dele", adianta Isabel. Esta é a bênção que faz à porta de casa antes de sair, junto a uma imagem de Cristo, que está pendura na parede da entrada, assim como um letreiro que diz "bem-vindo seja quem vier por bem".
"Sempre a reinar", disse Isabel, esboçando várias gargalhadas para esconder a tristeza da solidão.
"Já não tenho ninguém", confidencia, sem querer contar muito mais sobre a sua história de vida, apenas realçando o orgulho por ter uma costela alemã, da qual diz ter herdado bonitos olhos azuis.
Duas ruas abaixo, num 4.º andar de um prédio na Avenida 24 de Julho, também sem elevador e a viver sozinha, está à espera Maria de Lurdes Rodrigues, de 75 anos, conhecida por Milú. Ainda cozinha, mas a mobilidade já não é a que era, pelo que é uma mais-valia a entrega das refeições.
Ainda a fazer o luto do marido, que morreu há três meses, e "farta de estar em casa", a idosa está consciente de que tem de ser para se proteger da covid-19.
Nascida e criada na casa onde mora, com vista para a ponte 25 de Abril, a idosa enfrenta ainda uma ordem de despejo. O prédio foi vendido a um grupo francês que pretende transformar o imóvel num hotel. Com todo esse processo, encontra-se agora "quase sozinha no prédio".
"Bem trancada", Milú tem passado a quarentena em casa a ler e a navegar no computador, que lhe encurta a distância entre a família, através de videochamada.
Partilhando o amor pelo próximo, a auxiliar de geriatria da SCML reforça que este é um trabalho que "tem de se gostar mesmo, tem de se dar o coração, como se costuma dizer".
"Porque é um trabalho bonito, mas é um trabalho difícil", conclui Paula Ferreira.
Por: Sónia Miguel (texto) e Tiago Petinga (fotos) da agência Lusa
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