No centro da discussão esteve a utilização de um medicamento para tratar doentes com Covid-19. Problema? O medicamento em causa ainda não foi aprovado para este fim pela entidade reguladora dos EUA. O episódio tem apenas três dias e aconteceu à porta fechada na "Situation Room" da Casa Branca, mas já deu muito que falar. Nem por isso, o assunto ficou mais claro. Mas pode ajudar-nos a perceber as decisões que vão sendo tomadas pelo país.
A informação sobre o que se passou na discussão entre dois dos conselheiros de Donald Trump foi inicialmente revelada pelo Axios (site de notícias norte-americano). Mais tarde, o The New York Times e a CNN reportaram sobre o mesmo assunto.
O que se passou afinal?
Tudo começou no sábado, dentro daquela que é conhecida como a “Situation Room”, a Sala de Crise da Casa Branca. Estava reunida a equipa de combate ao novo coronavírus.
A dado momento, Stephen Hahn, diretor da Food and Drug Administration (FDA, órgão que supervisiona a comercialização de medicamentos nos Estados Unidos), trouxe uma das questões previstas na ordem de trabalhos: uma atualização dos resultados dos testes que estão a ser feitos sobre uso da hidroxicloroquina para tratar a Covid-19 (um medicamento usado contra a malária, que Trump muito tem publicitado).
Com o tema em cima da mesa, Peter Navarro, conselheiro de Trump para os assuntos comerciais, levantou-se e distribuiu um conjunto de pastas pelos presentes - estavam ali Anthony Fauci, consultor científico da Casa Branca e director do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecto-contagiosas, Deborah Birx, coordenadora da equipa de resposta ao novo coronavírus, o vice-presidente Mike Pence, Jared Kushner, genro de Trump e conselheiro da Casa Branca, entre outros.
Nessas pastas (uma pilha delas), encontravam-se cópias de relatos e de estudos sobre o uso do medicamento para o tratamento da Covid-19.
A partir daí gerou-se a discussão. Navarro assegurou que a eficácia terapêutica está comprovada por variadas investigações e quer tomar medidas para garantir o stock nos EUA, através da compra do medicamento ao estrangeiro e da sua produção no país.
Anthony Fauci, por seu turno, contrariou Navarro, afirmando que estes são apenas dados dispersos, que os estudos não foram validados cientificamente e que é preciso garantir a eficácia e a segurança do medicamento, através de testes clínicos, antes de recomendar o seu uso de forma generalizada.
Segundo os relatos, feitos por fontes anónimas, a conversa subiu de tom, com Navarro a elevar a voz para Fauci. Dizem os presentes que Mike Pence e Jared Kushner tentaram moderar a discussão e acalmar Navarro.
Quem são os protagonistas desta história?
Anthony Fauci, 79 anos, é um dos nomes mais famosos do momento nos Estados Unidos (de resto, aparece no topo da popularidade em várias sondagens). E porquê? É um dos principais consultores no que diz respeito à estratégia para combater a Covid-19 no país. Fauci é o diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecto-contagiosas. Desde 1984, ou seja, desde a presidência de Ronald Reagan. Estas credenciais não o tornam infalível ou imune a decisões erráticas. Em fevereiro, por exemplo, Fauci dizia que o impacto da Covid-19 nos EUA ia ser “minúsculo”. Entretanto, tem vindo a ganhar cada vez mais projeção e é uma das vozes mais citadas no país.
Peter Navarro, 70 anos, é doutorado em Economia pela Universidade de Harvard, é consultor da Casa Branca e responsável pela política comercial e industrial do país. Navarro é a pessoa que tem aconselhado Donald Trump nas tomadas de decisão na guerra comercial com a China. A sua posição crítica da política económica chinesa não é um segredo. Em 2012, publicou um livro chamado “Death by China”, onde fala da China como ameaça ao domínio norte-americano. No âmbito da pandemia, Navarro foi mandatado por Trump para incentivar as empresas privadas a responder às necessidades colocadas pelo combate ao novo coronavírus, através do acionamento da Lei de Produção de Defesa (“Defense Production Act”).
O que aconteceu depois da reunião?
Logo na conferência de imprensa que se seguiu, Trump falou na hidroxicloroquina, nos mesmos termos em que Navarro tinha trazido na reunião - o registo dos dois aproxima-se muito em vários aspetos. O presidente disse que os EUA têm 29 milhões de doses do medicamento armazenadas e que estas serão distribuídas para que os médicos possam usar o medicamento nos hospitais. Trump foi mais longe: “Eu talvez tome. Ok? Eu talvez tome”, disse.
Pegando nas palavras de Trump, com os devidos ajustes e recuos, Hahn veio confirmar que o medicamento é um dos que estão a ser mais considerados para ensaios clínicos (fase que assegura a eficácia e a segurança e que antecede a autorização pela FDA). O responsável acrescentou que alguns médicos podem, em conjunto com o paciente, decidir utilizar ao medicamento, dependendo do perfil do doente e fazendo uma avaliação dos riscos e benefícios da toma.
O tema continuou a dar que falar no dia seguinte. Na conferência de imprensa de domingo, Trump assegurou que a FDA já aprovou o medicamento. No entanto o uso do hidroxicloroquina para fins de tratamento da Covid-19 ainda não foi autorizado.
Quase no final, houve um momento mais constrangedor - para Fauci, pelo menos. Quando um jornalista pediu ao especialista para comentar o uso do medicamento, Trump impediu-o de responder.
Esta foi a troca de palavras:
Jornalista: Pode comentar este assunto da hidroxicloroquina? O que acha disto? Quais são as evidências médicas?
Donald Trump: Sabes quantas vezes já respondeste a esta pergunta? [dirigindo-se a Fauci]
Anthony Fauci: Sim…
Jornalista: Mas eu gostava de o ouvir.
Trump: Talvez umas 15. 15 vezes. Não tem de fazer essa pergunta.
Jornalista: Ele é o seu especialista nesta área, certo?
Trump: Ele já respondeu a essa pergunta 15 vezes.
A pergunta ficou sem resposta.
Já esta segunda-feira, Peter Navarro foi interpelado por diversos órgãos de comunicação, tendo sido questionado sobre a reunião de sábado.
Numa entrevista à Fox News, o consultor de Trump confirmou que houve uma discussão sobre o medicamento centrada no facto de os dados existentes serem ou não suficientes para considerar seguro o uso da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-29.
Segundo Navarro, todos os elementos presentes na reunião concordaram que as 29 milhões de doses armazenadas devem ser canalizadas para as zonas mais críticas do país, para serem administradas por decisão de cada médico, junto do seu doente.
Já segundo os relatos da Axios, “a maioria dos membros da equipa apoia uma abordagem cautelosa ao medicamento até que ele seja comprovado” clinicamente e concordou que a posição oficial deve ser de que “a decisão de utilizar o medicamento é para ser tomada entre os médicos e os pacientes”.
Pilhas de estudos e “eu tenho um doutoramento”: argumentos da autoridade ou autoridade dos argumentos?
Se nalguns pontos Navarro pode não estar longe do que defendem alguns especialistas, nas várias entrevistas que deu esta segunda-feira o consultor de Trump para o comércio foi usando alguns argumentos que o distanciaram claramente do campo da ciência.
Uma das situações mais singulares aconteceu numa entrevista à CNN. A interação foi escalando a partir do momento que o jornalista perguntou a Navarro em que é que se baseava para discordar de Anthony Fauci, um dos maiores especialistas do país em doenças infecciosas. Navarro respondeu: “Tenho duas palavras para si: segunda opinião”.
Esboçando um sorriso de quem parecia surpreendido pela resposta, John Berman, jornalista da CNN, insistiu: “Quais são as suas qualificações para achar que a sua avaliação vale mais do que a de Dr. Anthony Fauci? Porque é que o devemos ouvir a si e não ao Dr. Fauci?”.
A resposta não tardou: “As minhas qualificações, em termos de olhar para a ciência, é que eu sou um cientista social. Eu tenho um doutoramento. (…) Eu sei como ler estudos estatísticos, sejam eles de medicina, direito, economia ou outros”.
John Berman interrompeu na hora: “Desculpe, mas isso não o habilita a tratar doentes. E o senhor sabe disso”.
Desta vez, a resposta tardou um pouco mais a chegar.
Também esta segunda-feira de manhã, na entrevista à Fox News, Navarro trouxe mais dois argumentos de legitimidade questionável numa discussão que se quer científica.
Primeiro, começou por dizer que a sua aposta em termos de quem tem razão neste debate vai para a “intuição do presidente Trump”.
E, depois, reforçou essa opinião com base em todos os artigos científicos que leu. E foram muitos: “Mais ou menos desta altura”, gesticulou com as mãos o tamanho da pilha de estudos consultados.
Um medicamento que vai sendo usado, enquanto espera aprovação
A verdade é que a informação trazida por este consultor na área do comércio não deixa de estar em linha com aquilo que tem sido a prática nos hospitais norte-americanos, incluindo em Nova Iorque - a agência Reuters escreveu longamente sobre isso esta segunda-feira.
Fica apenas confusa a informação por todo o ruído de que se faz acompanhar: é trazida por um economista, por oposição ao especialista em doenças infecto-contagiosas que aconselha a Casa Branca; sai cá para fora como uma mensagem dividida, e não uniforme, da Administração de Trump; e não esclarece verdadeiramente o que está em causa no uso do medicamento.
Em resumo: não, o medicamento ainda não está aprovado pela entidade reguladora dos medicamentos norte-americana. Estão a decorrer testes clínicos para avaliar a sua eficácia e a segurança. Este não é o único método terapêutico a ser testado para o tratamento da Covid-19 (em breve, mais sobre este assunto no SAPO24). Mas, sim, a cloroquina e a hidroxicloroquina estão a ser usadas de forma limitada, caso a caso, em contexto hospitalar, de forma controlada, numa decisão que cabe a cada médico e seu paciente. A administração deste medicamento traz muitas questões, em particular o risco de trazer efeitos secundários indesejados, nomeadamente complicações cardíacas graves.
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