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Jogava no globo terrestre
Sempre gostei de jogar à bola e não me importava de não ser grande coisa. Em Buenos Aires, chamavam pata dura àqueles que eram como eu. O que significa ter dois pés esquerdos. Mas jogava. Muitas vezes, era o guarda‐redes; esse papel também é bom: ensina a olhar a realidade na cara, a enfrentar os problemas; talvez não saibas donde partiu aquela bola, mas, de qualquer maneira, deves tentar agarrá‐la. Tal como acontece na vida.
Jogar é um direito, e há o sacrossanto direito de não sermos campeões. Atrás de cada bola que rola há sempre um rapaz com os seus sonhos e as suas aspirações, o seu corpo e o seu espírito. Está tudo envolvido, não apenas os músculos, a personalidade inteira em todas as dimensões, mesmo as mais profundas. De facto, de alguém que se está a empenhar muito, diz‐se: «está a dar a alma».
O jogo e o desporto são uma grande ocasião para aprender o melhor de si, mesmo com sacrifício e, sobretudo, não sozinhos. Vivemos hoje num tempo em que é fácil isolar‐se, criar ligações que são virtuais, à distância. Teoricamente em contacto, mas
praticamente sozinhos. Em contrapartida, a beleza de jogar com uma bola é que devemos fazê‐lo em conjunto com os outros, passar‐lhes a bola, aprender a construir ações, crescer como singulares e entender‐se como equipa... Então, a bola torna‐se não
só um utensílio, mas um instrumento, para convidar as pessoas reais a partilharem a amizade verdadeira, a encontrarem‐se num espaço concreto, a olharem‐se na cara, a confrontarem‐se para porem à prova as suas aptidões. Muitos definem o futebol como «o jogo mais belo do mundo», e para mim foi isso.
Quando vivido deste modo, como jogo que deve treinar sobretudo a socialidade e a gratuitidade, poderá mesmo fazer bem a todo o corpo, não apenas às pernas, mas à cabeça e ao coração.
Os rapazes e as raparigas sabem‐no bem, percebem‐no sem necessidade que ninguém lhes explique. Por isso, São João Bosco gostava de dizer aos seus educadores: «Quereis rapazes? Atirai uma bola para o ar e antes de cair vereis quantos se terão aproximado!» Era verdade em 1841, quando nasceu o seu primeiro oratório, e de maneira diferente, é verdade, ainda hoje, numa sociedade que muitas vezes exaspera o subjetivismo, isto é, a centralidade do eu, quase como princípio absoluto.
«Jogava no globo terrestre», diz a Sapiência no Livro dos Provérbios (Pr 8,31). Antes de mais nada. Antes de ter sido criada qualquer outra coisa. Milhões de meninos e meninas de todo o mundo imaginam que jogavam à bola.
Um grande escritor latino‐americano, Eduardo Galeano, conta que um dia um jornalista perguntou à teóloga protes‐ tante Dorothee Sölle: «Como explicaria a uma criança o que é a felicidade?» «Não lhe explicaria», respondeu a teóloga. «Dar‐lhe‐ia uma bola para que jogasse.»
Não há melhor maneira de explicar a felicidade que não seja tornar os outros felizes.
E jogar torna as pessoas felizes, pois pode‐se exprimir a liberdade, competir de maneira divertida, simplesmente, viver o tempo do amadorismo... Pois pode‐se perseguir um sonho sem ter de ser forçosamente campeão. Torna‐nos felizes mesmo que sejamos um pé duro.
Ainda que, segundo contava a minha mãe Regina, que era uma Sívori, nas nossas veias corresse ainda um pouco de sangue dos campeões: também o avô de Omar Sívori, que se tornaria um dos maiores atacantes da história do futebol, era originário da mesma zona de Lavagna, no interior da Ligúria, do qual todos provinham. Omar, que foi o primeiro a ser alcunhado El pibe de oro, quando Maradona ainda estava no colo de Deus, nascera na Argentina um ano antes de mim, e depois de ter vencido o campeonato com o River Plate, transferiu‐se para Itália, para a Juventus e depois para o Nápoles. Quando em família falávamos dos «Sívoris» e da Argentina, e algumas vezes se mencionava também o futebolista, a mamã contava que, de facto, éramos todos parentes, embora em alguns casos distantes, e que ao longo dos anos nos tínhamos dispersado por diversos pontos do país. Omar Sívori vestiria as camisolas das duas nações e, no início dos anos sessenta, seria também premiado com a Bola de Ouro. Éramos quase coetâneos e um pouco aparentados, mas ele não foi dotado de dois pés esquerdos...
Sívori era um campeão, mas não podia ser ele o meu «ídolo» de criança; ainda éramos ambos pequenos e eu era adepto do San Lorenzo! No bairro de Boedo, não muito distante da casa dos avós maternos, o azulgrana de San Lorenzo de Almagro eram as cores mais familiares, coloriam ruas, flutuavam nas varandas, emolduravam janelas. Naquela sociedade polidesportiva, fundada no início do século por um sacerdote salesiano, também ele de origem piemontesa, o padre Lorenzo Massa, com as cores vermelho e azul do véu de María Auxiliadora, o meu pai Mario, que era um homenzarrão, jogava basquetebol.
O básquete também me agradava e jogava um pouco. Também este desporto pode verdadeiramente ensinar a viver. Ainda hoje, quando falo de pontos firmes da existência, e da necessidade de «girar», uma imagem que tenho bem presente e que gosto de utilizar é a do jogador de basquetebol que fixa o pé como eixo no chão e realiza movimentos para proteger a bola, para encontrar um espaço para a passar ou para fazer o arranque e ir para o cesto. Sim, para todos nós cristãos e, em particular, para nós sacerdotes, aquele pé fixado no solo, em torno do qual devemos girar para construir quotidianamente a nossa existência, é a cruz de Cristo.
De entre todos os desportos, era o futebol que dominava o clube. E eu, se como futebolista ou jogador de básquete deixava a desejar, como adepto era indiscutível. Com o papá e os meus irmãos Oscar e Alberto ia sempre ver o San Lorenzo ao Viejo Gasómetro, o estádio‐berço de todos nós, os cuervos, os corvos, a alcunha com que nos batizaram os adeptos rivais devido ao vestuário negro dos salesianos. A mamã também ia muitas vezes. Era um futebol romântico, de famílias, as piores palavras que podíamos ouvir nas bancadas eram «vendido» ou «desgraçado», pouco mais do que isso. Antes do jogo, encaminhávamo‐nos para o estádio, levando dois grandes recipientes de vidro que, ao longo do trajeto, deixaríamos numa pizzeria onde o papá parava para fazer a encomenda.
No regresso, recuperávamos os dois recipientes que, entretanto, haviam sido enchidos com caracóis com molho picante e acompanhados por uma pizza fumegante cozinhada na pedra. Deste modo, qualquer que tivesse sido o resultado, a seguir haveria uma festa.
Parece‐me sentir o perfume daquela pizza: talvez seja um pouco a minha madeleine de Proust. E a bem dizer, sair para comer pizza é uma das pequenas coisas que mais falta me faz. Sempre fui um caminhante. Quando era cardeal, encantava‐me andar a pé pelas ruas, e apanhar o metropolitano. Alguns achavam estranho e insistiam em acompanhar‐me, para que fosse de carro, mas, por vezes, a realidade é assim simples: a mim sempre me agradou caminhar. A rua diz‐me muito, aprendo muito na rua. E gosto da cidade, em cima e em baixo, das ruas, das praças, das tabernas, da pizza comida numa mesinha ao ar livre, que tem um gosto muito diferente em relação àquela que podes levar para casa: sou um citadino na alma.
O Viejo Gasómetro do San Lorenzo já não existe. Em 1979, a ditadura militar obrigou o clube a jogar a sua última partida naquele estádio, que depois foi destruído por uma especulação.
O San Lorenzo foi despejado do seu bairro, do Boedo. Durante cerca de quinze anos, a equipa vagueou por vários campos da cidade, até que um novo estádio foi construído. Porém, permaneceu para sempre o desejo de regressar a Boedo no coração dos corvos. Em 2019, o Club Atlético San Lorenzo de Almagro anunciou ter regressado à posse dos terrenos do velho estádio e de querer reconstruir ali o Gasómetro. Disseram‐me que o novo estádio se deveria chamar Papa Francisco, e a coisa não me agrada muito.
Vi quase todas as partidas domésticas do campeonato de 1946, que vencemos poucos dias antes do meu décimo aniversário e, mais de setenta anos depois, ainda tenho diante dos olhos aquela equipa, tal como se fosse hoje: Blazina, Vanzini, Basso, Zubieta, Greco, Colombo, Imbelloni, Farro, Martino, Silva... Os dez magníficos. E depois... Depois, havia Pontoni.
Era René Alejandro Pontoni, o avançado centro, o goleador do San Lorenzo, o arrebatador do Ciclón [Furacão], o meu preferido. Ele não tinha dois pés esquerdos. Chutava com o direito e com o esquerdo quase indiferentemente, era hábil a driblar, criativo, forte no golpe de cabeça, acrobático no pontapé de bicicleta. Podia fazer golo de qualquer maneira e de qualquer maneira o vi fazê‐lo.
«Vejamos se algum de vós tem a coragem de fazer um golo como o de Pontoni...», disse eu, ao encontrar‐me com as equipas nacionais de futebol da Argentina e de Itália, capitaneadas por Messi e Buffon, num jogo de beneficência, pouco depois de ter sido eleito papa. Aqueles rapazes haviam‐me sorrido um tanto perplexos, provavelmente não sabiam o que pretendia dizer, mas eu tinha aquele golo — aquele tac, tac, tac, golo — gravado na cabeça, tal como muitas das coisas que captam o olhar de uma criança, quando os olhos são uma esponja e, depois, ficam para sempre. Outubro de 1946, o campeonato está a chegar ao fim e o San Lorenzo joga contra o Racing de Avellaneda: cross da esquerda, Pontoni de costas para a baliza, controla com o peito e, sem nunca deixar a bola tocar no chão, passa‐a para trás, depois, do limite da área, faz partir uma seta que se enfia à direita do guarda‐redes. Goooooooooolo!
Se qualquer golo na América do Sul tem mais «o» do que na Europa, se cada golo, mesmo quando é um golinho, se torna um golaço, imaginem aquele. Eu abraço o meu pai, abraço os meus irmãos, todos se abraçam. Pontoni era para mim, criança, o símbolo daquele jogo, daquele futebol, o estar em companhia, o amor por um desporto que não era apenas uma conta bancária, de tal modo que às sereias milionárias que o queriam na Europa preferiu o seu clube, estar perto da família, dos amigos, de quem gostava dele. Era um grande e assim permaneceria, mesmo depois do grave incidente de jogo que alguns anos mais tarde assestou um duro golpe na sua carreira. Vagueou um pouco pela América do Sul, Colômbia, Brasil, depois voltou ao San Lorenzo, antes de pendurar as chuteiras e abrir um restaurante. Teve uma bela vida.
O seu filho, que se chama René tal como o pai, viria ter comigo ao Vaticano, alguns anos depois da eleição.
Não vejo televisão desde 1990, para respeitar um voto que fiz à Virgem del Carmen na noite de 15 de julho daquele ano. Naquela noite, estava em comunidade em Buenos Aires, estávamos a ver televisão e no ecrã apareceu uma cena miserável, que me atingiu amargamente: então, levantei‐me e fui‐me embora. No dia seguinte, devia ser transferido para Córdoba. Foi como se Deus me tivesse dito que a televisão não era para mim, que não me fazia bem. Na missa, fiz um voto a Nossa Senhora e desde então aquela promessa teve raras exceções: o acontecimento de 11 de setembro de 2001, por exemplo, o avião que caiu em Buenos Aires em 1999, pouco mais. Por isso, não vejo um jogo do San Lorenzo na televisão há trinta anos. Um dia, numa entrevista, perguntaram-me se, como papa, me sentia «mais próximo de um Messi ou de um Mascherano», e eu repliquei que não podia mesmo responder, que não sabia distinguir o estilo dos dois, porque, ainda que Messi tivesse vindo ao Vaticano em algumas
ocasiões oficiais, há muito tempo que eu não via futebol.
De qualquer modo, estou certo de que nenhum dos dois é pé duro como eu! Porém, informo‐me, obviamente. Sobre tudo e também sobre o San Lorenzo. Há um guarda suíço que todas as semanas me deixa os resultados e a classificação na mesa. No ano em que fui eleito para o trono de Pedro, os azulgrana venceram o campeonato e depois, pela primeira vez na sua história, a Taça Libertadores. E quando, alguns dias depois, me vieram visitar em delegação com a taça dos campeões da América, no final da audiência geral disse‐lhes: «Sois parte da minha identidade cultural.» Tal como escreveu um grande cantor do futebol, Osvaldo Soriano, também ele um corvo de Boedo: «No futebol não se escolhe um vencedor. Ser do San Lorenzo é uma honra que se insinua na vida com tanto desconcerto e orgulho como ser argentino.»
Juntamente com a mão do meu pai que me acompanha ao estádio em criança, o bairro, a sua gente, a praceta. Os amigos, os nossos sonhos de rapazes...
Ouvi um treinador dos juvenis dizer que no campo é necessário caminhar na ponta dos pés para não pisar os sonhos sagrados dos rapazes. Assim, é importante não oprimir a sua vida com formas de chantagem que bloqueiam a liberdade e a fantasia. E não apontem atalhos que apenas levam à perda no labirinto da existência. É triste quando os pais se transformam em ultras dos seus filhos ou em empresários, tal como infelizmente por vezes acontece. Grandes na vida: é esta a vitória de nós todos, a única que realmente conta.
Para mim, os mais belos jogos de futebol ainda são aqueles que se fazem na praceta, que se chama Herminia Brumana, tal como a minha, ou com qualquer outro nome, no pórfiro, no relvado de um jardim ou num terreno poeirento e soalheiro, qualquer que seja o recanto do mundo em que se encontre.
«Por mais que os tecnocratas o programem até aos mínimos detalhes, por mais que os poderosos o manipulem, o futebol continua a querer ser a arte do imprevisto», escrevia ainda Galeano. E a pertencer ao povo.
Façamos então a contagem e vejamos quem vem fazer equipa comigo; vamos colocar dois sinais na terra e fingir que é uma baliza; talvez o mais pé duro faça de guarda‐redes ou todos façam um pouco de «guarda‐redes voador». Todos juntos a perseguir e a domar uma bola, não importa como te chamas, de quem és filho, de onde vens. Será sempre esta a verdadeira beleza do jogo. Assim se cresce.
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