Em 2020 nasceu o Vicente, o Miguel, o James, a Ema e a Benedita. O Bento está a caminho, enquanto a Rosa e o Lucas já dominam as rotinas da creche. O último ano nunca poderia ser mau, mas foi diferente em vários aspetos e é essa experiência de maternidade em pandemia que nos traz o relato de Tânia, Vanessa, Ana Rita, Cláudia, Petra e Inês.
E se os desafios da parentalidade em geral, relacionados com a adaptação a uma nova realidade do eu e do casal, não mudaram, o facto é que "a pandemia veio intensificar tudo", explica o psicólogo Bruno Caldeira.
Tânia estava a tentar engravidar há cinco anos e, portanto, longe de imaginar que naquela consulta, a segunda depois de decidirem que estava na altura de a ciência ajudar, já estava grávida.
"A médica não me disse nada, mas quando voltei para saber o resultado dos exames que pediram estava grávida de três semanas", conta.
O Vicente nasceu a 30 de julho de 2020. Quatro meses antes, recorda, "estava tudo assustado com isto da covid-19, as regras eram mais rígidas, as pessoas mais frias, não havia aquele calor, até na forma de lidar com o paciente. O Paulo só assistiu à primeira ecografia. Ele foi sempre comigo, mas ficava no carro à minha espera. Ficou muito de parte. Até marquei uma daquelas ecografias 4D por cinco minutos só para ele pode ver o Vicente".
"Não se sabia muita coisa, ainda se separavam os bebés das mães que testassem positivo para o vírus, o que para mim era inaceitável"
Uma das regras impostas nas várias unidades de saúde, públicas e privadas, durante a pandemia foi exatamente proibir acompanhantes nas consultas e ecografias.
"Quando fui fazer a ecografia do Bento, a das 12 semanas [a probabilidade de aborto é maior no primeiro trimestre], estava muito preocupada: e se o bebé não se estiver a desenvolver, se tiver alguma mal-formação? Eu não tenho ninguém ali comigo", partilha Petra.
Foi na esperança de ter algum controlo que Vanessa decidiu que com o segundo filho, Miguel, a opção seria fazer o parto num hospital privado: "Não tinha escolhido o privado se não fosse esta situação da covid-19. Quando começámos a pensar onde seria o parto, não se sabia muita coisa, ainda se separavam os bebés das mães que testassem positivo para o vírus, o que para mim era inaceitável, e muitos hospitais não aceitavam que os pais estivessem presentes no parto. Então falámos com a média que me seguia e optámos por fazer tudo no privado para o Rui poder estar comigo".
E se Tânia fazia por manter a covid longe da sua gravidez — "Eu não via notícias para não pensar. Fazia de conta que dentro do meu quintal e da minha casa a covid não existia, era assim que me abstraía" —, Vanessa apanhou um susto quando, apesar de todos os cuidados a que uma gravidez de risco obriga, teve contacto com um caso positivo na família. "A partir daí foi só a stressar. Tive mais medos nesta segunda gravidez", confessa.
No entanto, "há um aspeto interessante em que a pandemia ajudou, nomeadamente no desafio da gestão das visitas no pós-parto: Se, por um lado, não podermos ter visitas coloca o desfio do isolamento, por outro, conseguir recusar visitas é mais fácil quando se atribui a responsabilidade a algo exterior. Isso acabou por ser uma coisa positiva. Muitos pais referem isto nas consultas", conta Bruno Caldeira.
"Uma das coisas que foi terrível para mim foi a quantidade de pessoas que tive no pós-parto no hospital", lembra Petra. "Eu chegava ao final do dia completamente exausta, numa avalanche emocional, e a Rosa também ficava muito cansada".
"Sim, nos primeiros dias ninguém foi lá a casa, nem os nossos pais. Foram lá só uma semana ou duas depois, e foi tudo muito rápido, nem ficaram horas nem nada, foi só para conhecer o James. Então, apoiaram-nos fazendo comida e isso deu imenso jeito ", conta Cláudia.
"Tenho pessoas que compraram fraldas para o primeiro ou segundo mês e quando nos conseguimos ver já as fraldas não serviam", diz Tânia. Quando Vicente for crescido vai contar-lhe que em 2020 "ninguém pegava nele, mas que toda a gente brincava com ele".
"Aconselharam-nos a que as pessoas usassem máscara durante as visitas, e no principio fizemos isso, mas a certo ponto deixámos de o fazer — sendo que também só recebemos família direta, e temos o desinfetante logo à entrada, as pessoas descalçam os sapatos...", partilha Ana Rita. "Quando anunciámos a gravidez foi comigo e com o meu marido de máscara e uma máscara na minha barriga, a Ema foi mesmo um 'bebé-covid'", recorda.
O reverso desta moeda é o isolamento: "Este confinamento custou-me mais porque já estava de rastos. Estava difícil manter-me à tona este inverno. Não durmo, não tenho quem fique com o Vicente. Se não fosse a covid ia mais vezes ter com a minha tia, ia aos meus avós, distraía-me. O facto de ter um quintal ajudou bastante, mas sinto que estou a lutar para me sentir bem", conta Tânia.
"O Miguel só conhece as pessoas por vídeochamada", desabafa Vanessa. "A interação que ele tem com o telemóvel seria impensável com o Lucas na mesma idade", acrescenta. "Não te sei dizer quando a minha mãe conheceu o Miguel, mas não foi logo no início, porque eu fiquei muito reticente", diz ainda.
Já a mãe de Inês foi a sua "salvação". "Separei-me do pai da minha filha quando faltava um mês para dar à luz. O que mais me custou depois do parto foram aqueles dias em que estive internada. Custou-me muito ter um ser completamente dependente de mim, numa altura em que ainda bem percebemos bem o que aconteceu, e não ter ali ninguém para me dar a mão, alguém que me diga que estou a ir bem. Se não fosse a minha mãe eu não sei... Ela tirou um mês e meio para me acompanhar no pós-parto", conta.
O suporte familiar permite uma "vivência mais tranquila" da maternidade, diz Bruno Caldeira. Quando isso não é possível, o risco de se atingir um limite é maior.
"A resiliência é uma palavra que está na moda e que fomos buscar à engenharia. O termo descreve a capacidade que um corpo tem de, depois de ser forçado, voltar à forma de origem. Para uma mãe que está sujeita de forma tão continua a um forçar, é preciso uma capacidade brutal de resiliência para voltar à sua forma de origem. Então, o potencial de risco é maior para uma mãe que está sozinha".
Para Inês, "a pandemia trouxe ao de cima o pior das pessoas. O facto de estarem isoladas, de terem de conviver sempre com a mesma pessoa, mesmo que seja com quem escolheram partilhar vida... Acho que meteu muita pressão nas relações amorosas e familiares", sentencia.
E, no seu caso, "sem dúvida" que o acompanhamento psicológico ajudou em todo este processo, diz. "Foi uma grande ajuda a psicóloga dizer-me 'Inês, estás a fazer o melhor que podes e sabes'. Depois eu percebi que se isto não me derrubou, nada derruba. Nós conseguimos sobreviver a tudo desde que eles [os filhos] estejam bem. Quero que a minha filha olhe para mim e veja uma mulher de armas", diz.
"Eu já estava num ponto de desespero, só queria voltar a trabalhar"
Vanessa regressou ao trabalho seis meses depois de o Miguel nascer. "Eu já estava num ponto de desespero em que só queria ir trabalhar. Durante a maior parte da minha licença tive o Lucas [o filho mais velho] em casa [porque as creches encerraram], o Rui em teletrabalho. Com dois filhos, tinha de cozinhar, dar de mamar, arrumar a casa, tentar ensinar coisas ao Lucas, nem tens tempo para gerir o pós-parto. Foi desgastante, eu estava a dar em maluca, não via a hora de voltar ao trabalho", confessa.
Quando lhe perguntamos se preferia estar em teletrabalho é perentória: "não, de todo".
Cláudia, que até estava com algum receio do que seria regressar ao trabalho — "achei que ia correr mal, parece que ficamos burras com o nosso 'cérebro de grávidas', pensei que não me ia lembrar de nada" — assume que foi bom voltar a sentir-se "minimamente normal".
Também ela voltou ao escritório: "acho que em teletrabalho as coisas não resultam, prefiro assim. Eu chego a casa às seis e pouco e o tempo que estou com o James é para ele".
Inês partilha desta visão. Tinha a opção de ficar em teletrabalho, mas preferiu o contrário. "Em casa não me concentro e também estava a precisar de interagir com outras pessoas que não a Benedita. Mais um bocadinho eu já palrava, já não sabia falar", brinca. "Na primeira semana custou-me horrores, mas foi muito bom", conclui.
Já Ana Rita, ilustradora, não imagina outro cenário que não o de teletrabalhadora. "Quando a Ema está acordada aproveito bem o tempo com ela e assim ela até fica mais cansada para dormir a sesta. Depois, ganhei uma certa disciplina: de manhã faço as lides de casa e à tarde, enquanto ela dorme, eu avanço nas minhas encomendas. Depois, ao nível do nosso casamento tem funcionado bem esta dinâmica, gostamos da ideia de eu poder estar com os nossos próximos filhos em casa. Não tenho muito interesse em estar a ocupar tempo em transportes", diz.
Já para Petra o regresso ao trabalho em teletrabalho foi "violentíssimo". "Eu não estava preparada para ficar em casa mais tempo, nem psicologicamente, nem emocionalmente". O plano era este: iria regressar ao escritório em abril de 2020, um mês antes a Rosa entraria na creche. "Eu estava desesperada para voltar a uma vida mais adulta e março era para ser o meu balão de oxigénio, era o mês em que teria tempo para mim, para ir ao cabeleireiro, voltar ao ginásio. Mas a Rosa esteve uma semana e meia na creche porque a pandemia rebentou nessa altura. Logo aí foi um choque, porque não sabíamos quanto tempo as coisas iam durar", conta.
Abril chegou depressa e apesar da "imensa compreensão" que encontrou na sua equipa, isso "não compensava o cansaço e a frustração do multitasking: cuidar do bebé, cuidar de ti, cuidar da casa e trabalhar. E eu não queria voltar ao trabalho e ser a 'Petra-mamã' que não consegue fazer nada. Eu queria voltar e ser a Petra de sempre".
A expectativa, porém, bateu de frente com a realidade: "não foi igual por várias razões, uma delas é que eu não queria que a Rosa se sentisse abandonada, porque passámos de uma dinâmica em que o meu tempo era todo para ela para uma dinâmica em que a mamã passa o tempo a dizer 'espera filha que a mamã já vai, a mamã está só a enviar um e-mail, está só a acabar uma reunião, está só, está só, está só...' Passámos para uma dinâmica de dar o almoço ou o lanche enquanto estou a reunir, ou de atrasar as sestas porque estou só a acabar alguma coisa".
"O meu nível de frustração aumentou muito e não havia nada que o Tiago [que não ficou em teletrabalho] pudesse fazer. Mesmo quando ele chegava a casa, também cansadíssimo, e ajudava a dar o jantar ou o banho, aquele era o jantar que eu tinha cozinhado e o banho que eu já tinha preparado para ganharmos tempo. Eu estava farta de estar em modo dona de casa, a precisar que me tirassem a criança dos braços e a sentir-me culpada por sentir isso porque, afinal, 'ser mãe é isto'". Acaba-se por viver "num estado permanente de culpa, de consciência de fracasso e de saber que amanhã será igual ou pior", porque "não sabia quando isto ia terminar ou quando eu me ia sentir confortável para voltar a colocar a Rosa na creche".
Perante isto, Petra tem "sentimentos mistos" relativamente ao teletrabalho. "Sim, é verdade que ter ficado em teletrabalho me permitiu continuar a amamentação em livre demanda, permitiu-me ver os primeiros passos e ouvir as primeiras palavras da Rosa. Claro que do ponto de vista de segurança e de saúde estava grata por ter a minha filha em casa, estava grata por não estar em lay-off e por poder este contexto me permitir escolher o momento da Rosa voltar à creche. Mas senti-me em constante duelo interno entre estar com ela e não estar com ela". E exemplifica: "No primeiro confinamento ela tinha a Baby TV ligada o dia todo. Quando olho hoje para os vídeos que fiz na altura e que achei fofinhos, da Rosa sentada ao meu lado a olhar para o computador e para a televisão, tenho vontade de os apagar porque hoje não acho que isso tenha sido bom, nem para ela, nem para mim".
"Quando as creches reabriram, o tempo que eu estava com a Rosa era mesmo dela, não estava cansadíssima e com a cabeça em água. E eu tinha vontade desse tempo. O que acontecia quando eu estava a conciliar as duas coisas é que eu não tinha vontade desse tempo, queria tempo para mim. Então, acho que o custo-benefício de termos ficado em casa com os nossos filhos, não sei se o conseguimos avaliar já", conclui.
"Eu costumo dizer que se faz uma maldade muito grande às mães", diz Bruno Caldeira. "Quando é muito difícil diz-se às mães que fiquem em casa com o bebé, e quando começa a ser mais interessante, porque é mais relacional e os bebés já interagem, dizemos às mães que é tempo de voltar a trabalhar".
"Assumirmos que alguém que é mãe ou pai passa a ser perfeito é retirar-lhe a condição humana"
Com o teletrabalho esta "dinâmica é ainda mais complexa: eu não sou capaz de não atender o meu bebé que está a chorar na sala ao lado, mesmo sabendo que está lá o pai ou outro cuidador".
"O que acontece é que este 'corte' de voltar o trabalho é um 'corte' de voltar à vida para as mães. E o facto de isso não acontecer de forma tão evidente cria desequilíbrios, já que as mães também querem demonstrar que mantém a capacidade de trabalho", explica. O desafio é ainda maior para mulheres que "foram de baixa antes do início de pandemia e que saltam de uma realidade para outra que ainda não tinham experimentado e que é esta do teletrabalho".
A resposta pode passar por, se possível, envolver avós ou outros familiares. "Não tanto numa lógica de eles virem para o nosso espaço, mas na lógica de levarmos a criança para o espaço deles. A mudança de espaço ajuda a quebrar esta continuidade de mãe-trabalhadora, obriga a mulher a vestir-se, sair de casa, essas rotinas são importantes".
E sobre os sentimentos de culpa associados ao alívio de voltar ao trabalho, Bruno Caldeira diz que a sociedade "aceita pouco verbalizações das mães de que estão cansadas e estão fartas". Esta ideia de que "uma mãe não diz estas coisas" vem carregada de "culpabilidade".
"É preferível que as mães que verbalizem isso e com quem possamos trabalhar isso. Não precisamos de mães que cumprem todos os requisitos, mas de mães que mantém a sua sanidade mental e que assim podem dar aos filhos todo o afeto e amor que estes necessitam", diz.
A par, critica, esta ideia da parentalidade perfeita, tantas vezes manifesta num post de uma qualquer rede social. "A maternidade é tudo menos perfeita, é cheia de imperfeições, tal como a natureza humana. Assumirmos que alguém que é mãe ou pai passa a ser perfeito é retirar-lhe a condição humana, o que deixa de fazer sentido", conclui.
O teletrabalho foi um dos grandes desafios da parentalidade em tempos de pandemia. Claire Cain Miller, mãe de dois e jornalista do The New York Times, tem-se dedicado a reportar como a pandemia afetou a vida das mães trabalhadoras. "Nesta altura, depois de um ano em pandemia, há simplesmente um sentimento profundo de que fomos esquecidas. É isso que oiço das pessoas que entrevisto", diz.
O projeto em que está envolvida, "The Primal Scream", tem uma abordagem inusitada ao problema: Além da cobertura noticiosa, o The New York Times abriu uma linha telefónica para libertar a frustração. "Bem-vindo à linha grito primário — onde o palco é seu para gritar, rir, chorar ou libertar a pressão por um minuto. Sem julgamentos. Pode fazer uma chamada anónima ou dizer-nos o seu nome e como o podemos contactar. Não vamos publicar informação sua sem o seu consentimento, mas podemos publicar um excerto do seu áudio".
Porque é que isto é tão importante?
"Foi um processo muito lento, desde os anos 1970, para as mulheres chegarem onde estão hoje profissionalmente. Preocupa-me que a pandemia represente um recuo de décadas", diz Claire Cain Miller.
Só nos EUA, mais de 2,3 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho desde o início da pandemia, de acordo com o National Women’s Law Center. Um relatório da Lean In and McKinsey & Co avançava que 1 em 4 mulheres estavam a considerar deixar de trabalhar ou mudar de carreira devido ao impacto da covid-19.
Segundo dados reunidos pela Organização Internacional do Trabalho, as mulheres trabalhadoras estão a ser desproporcionalmente afetadas face aos homens trabalhadores nesta pandemia, o que pode significar um retrocesso nos progressos que vinham a ser alcançados na igualdade de género.
"A crise afeta mais as mulheres porque elas estão sobrerrepresentadas em setores económicos muito afetados pela crise — como o alojamento, a restauração, o comércio, a indústria transformadora —, mas também porque são predominantes nos setores do trabalho doméstico, dos cuidados, da assistência social. As mulheres correm maior risco de perder o posto de trabalho e o rendimento, mas também de serem infetadas, por estarem na linha da frente”, nota a diretora da OIT-Lisboa, Mafalda Troncho, em entrevista.
Em Portugal, as mulheres representam 49,3% da população empregada (dados de 2020).
Tânia, que estava desempregada quando engravidou, terá de esperar até setembro, altura em que Vicente tem vaga na creche para voltar ao mercado de trabalho, mas não antecipa facilidades: "Tenho o 12º ano completo, mas não queria voltar a trabalhar num supermercado. O Paulo só tem os fins de semana livres e eu queria algo que me permitisse esses dias também livres. Estou com muito receio, temos um telhado para mudar e acho que vai ser muito difícil encontrar emprego".
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