Alemanha, Itália, Espanha, Áustria, Roménia, Hungria e Portugal. Todos estes países, segundo Fernando Rosas, têm algo em comum. É que todos eles abraçaram o fascismo no Século XX. Tendo dedicado grande parte da sua carreira a estudar o Estado Novo, o historiador lança agora uma obra que pretende dar mais algumas luzes quanto à natureza do regime comandado a pulso por António de Oliveira Salazar.

A ideia parece simples, mas ainda não tinha sido tentada: comparar o Estado Novo com os regimes fascistas da época para compreender se havia com eles mais pontos de contacto do que de diferença. Partindo dessa premissa, “Salazar e os Fascismos”, editado pela Tinta-da-China, defende essa tese, de que, colocado lado a lado com outros congéneres do Velho Continente na mesma época, o salazarismo demonstra ser um sistema político fascista, porque partilhou das mesmas causas e de inúmeras características com esses regimes.

Fernando Rosas, porém, sabe que a sua tese é uma interpretação e não uma verdade absoluta, até porque às tantas na conversa evocará o historiador francês George Duby para lembrar que “"não há história objetiva", pois (já nas suas palavras) “cada pessoa transporta subjetivamente aquilo que é a sua maneira de ver o mundo e esta projeta-se na interpretação que faz dos factos.”

No caso do historiador, esse contexto é mais particular ainda, pois objeto de estudo a que dedicou boa parte da sua carreira académica interseta-se com a sua vida. Afinal de contas, Fernando Rosas esteve 14 meses preso na Fortaleza de Peniche em 1972 pela sua atividade de resistência ao Estado Novo no MRPP, o mesmo edifício que agora vai ser o Museu Nacional da Resistência e Liberdade e do qual é membro da comissão instaladora.

Foi a luta política, aliás, que impeliu o também professor e dirigente partidário -  um dos fundadores do Bloco de Esquerda - a dedicar-se à história, para compreender como é que “uma ditadura manhosa” como se refere à do Estado Novo durou metade do século XX. Seguiu-se então uma vida de estudo que o levou a lecionar durante décadas na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa e a fundar o Instituto de História Contemporânea.

A sua visão do salazarismo, porém, convive com outras. Diz que, para si, não é incomodativo que haja leituras distintas do passado, mas sim que as pessoas se esqueçam de tudo o que a humanidade passou para aqui chegar, num processo decorrente a que chama de “desmemória”. Esta, diz, é o que cria “o indivíduo solitário” que se deixa manipular por notícias falsas e pelas redes sociais, cujos efeitos políticos “são catastróficos.”

O lançamento deste livro surge, afirma, numa fase particularmente urgente, em que a extrema-direita se encontra em crescimento de novo, não só na Europa, como no mundo. Para Fernando Rosas, poupou, para já, Portugal porque “o descontentamento tem tido, até agora, uma representação política” através da Geringonça. Foi, portanto, com os olhos no passado, mas a cabeça no presente, que decorreu esta entrevista realizada na sua residência em que Fernando Rosas considera que os atuais fenómenos estão a surgir de condições parecidas com o passado, mas que “provavelmente o fascismo nunca se vai repetir como foi antes”.

É, portanto, outra coisa que está a surgir, que diz ser alimentada não só pelo atual aparato tecnológico - utilizado pela direita, mas não pela esquerda - como também por um imperialismo financeiro cuja lógica é de “subversão do sistema político que existe”. Mas Fernando Rosas mantém-se otimista e crê saber qual é a solução. É a mesma em que sempre acreditou, o socialismo.

O livro apresenta como tese a ideia de que o fascismo, como regime e como movimento, não apareceu espontaneamente, ou, como às tantas escreve, não “caiu do céu aos trambolhões”. Como surgiu então?

O fascismo surge da crise do capitalismo e do sistema liberal, em particular entre as duas guerras do século passado. E surge como a resposta autoritária de uma parte das classes dominantes, sobretudo nos países da periferia europeia, a essa crise, tendo três objetivos principais. Em primeiro lugar, a eliminação do movimento operário organizado, ou seja, acabar com a ameaça do descontentamento, da reivindicação e da luta do operariado pela melhoria das suas condições de vida e pela revolução social, que era soprada pela influência da revolução russa, na União Soviética. Em segundo, liquidar o estado parlamentar, porque a democracia parlamentar, pluripartidária, era uma espécie de empecilho para tomar as medidas de autoridade que esses setores das classes dominantes desejavam tomar. Em terceiro, com base nos dois objetivos anteriores, intervir ativamente na economia, no sentido de responder à crise, ou seja, repôr as taxas de lucro e de acumulação, regular a concorrência e permitir às classes possidentes uma recuperação económica da situação que viviam. No entanto, esse não é o único parceiro na criação do novo regime.

Quem mais então? No seu livro, escreve que o fascismo não partiu apenas das elites...

A guerra e a crise tinham provocado em amplos setores da população um grande descontentamento, especialmente nas classes intermédias, nos funcionários públicos - os titulares de rendimentos fixos, de forma geral - e nos antigos combatentes. Ora, a derrota que vai sofrer o movimento operário neste processo e a ausência de representação política desse descontentamento no sistema, vai permitir que grande parte seja tutelado pelos chamados movimentos fascistas plebeus.

"Nenhum regime surge pela tomada do poder, sozinho, dos movimentos plebeus, em nenhuma circunstância e em nenhum caso"

E no livro defende que o regime nasce da junção desses dois movimentos.

Há uma necessidade de distinguir bem o que é o movimento fascista do que é o regime fascista. Os movimentos fascistas vão casar-se com essa ambição autoritária das classes dominantes e é desse casamento - do fascismo plebeu com o fascismo conservador - que vai surgir o regime fascista. Nenhum regime assim surge pela tomada do poder, sozinho, dos movimentos plebeus, em nenhuma circunstância e em nenhum caso. Vai tentar algumas vezes, como foi o "putsch" da cervejaria do Hitler em '23, as tentativas dos nazis na Áustria, a Guarda de Ferro na Roménia... eles tentam. Mas sempre que o quiseram fazer sozinhos - e sobretudo, contra o establishment - saíram-se mal.

Portanto, para as coisas correrem bem, as elites tiveram de estender a mão?

Não estenderam sempre, mas quando o fizeram, isso permitiu fazer uma espécie de aliança política com uma parte da elite económica, que fica seduzida pela eficácia dos movimentos fascistas plebeus no ataque ao movimento operário, na violência e na propaganda. Tudo aquilo “fascistizou” uma parte das classes dominantes, que se aproxima dos movimentos fascistas para os utilizar como instrumento de limpeza social e política. Do outro lado, os movimentos fascistas plebeus compreendem que a única forma de chegar ao poder é entrar pela porta que lhes abrirem as classes dominantes. É desse casamento, do meu ponto de vista, que surge um novo tipo de regime, que vai ser conhecido como fascista. Só que o peso relativo de cada parceiro nesse casamento vai originar diversas modalidades. Eles não estão presos em caixas fixas e imutáveis, dão origem a várias espécies do mesmo género.

Como por exemplo?

Há regimes onde o peso hegemónico é claramente do fascismo plebeu, como é o caso típico da Alemanha nacional-socialista, apesar de este ter de fazer grandes compromissos com oligarquia tradicional. A “Noite das Facas Longas” vem daí mesmo, o movimento Nazi, de origem popular, vai ter de sacrificar em parte a sua milícia, as SA, porque a aristocracia prussiana dos Junckers não permitia concorrência ao exército. Ou mesmo os industriais alemães, que obrigaram o partido Nazi a dissolver a sua organização sindical. Mas, sobretudo à medida que a guerra se prepara, há uma hegemonia do partido nacional socialista sobre as classes dominantes tradicionais.

O que é um caso diferente do italiano, portanto.

No caso da Itália, é uma situação de equilíbrio. O fascismo italiano tem de conviver com a monarquia de Saboia, o exército, a Fiat, os agrários, de tal maneira que aí é uma ditadura do Estado sobre o partido, e não o contrário como no caso alemão. De tal forma que, no verão de '43, quando os Aliados desembarcam na Sicília e a derrota italiana está à vista, quem o pôs lá [aristocracia], tirou-o [Mussolini].

E em Portugal?

Trata-se da predominância do fascismo conservador. É o caso de Portugal e da Espanha franquista a partir de '42, em que as classes dominantes tradicionais incorporam subordinadamente os movimentos fascistas existentes. E depois há uma quarta situação, em que a coisa não se resolve, em que há uma situação conflitual permanente entre um fascismo conservador que se sente ameaçado pelo fascismo plebeu e convive com ele mas combate-o. É o caso da Hungria ou da Roménia.

No caso concreto português, avalia-o como um fascismo conservador. Em que é que ele se distingue dos restantes exemplos?

O que o distingue basicamente é a hegemonia da direita conservadora no sistema político. Repare, é um sistema político que cria uma milícia - a Legião Portuguesa -, uma organização fascista da juventude e com uma milícia também - a Mocidade Portuguesa -, mas que nunca deixa de considerar o exército como a espinha dorsal da violência legal do Estado e nunca se deixa de apoiar na Igreja Católica, que em grande parte funciona nessa época como forma de legitimação do regime. E ainda que faça um certo culto da figura do chefe carismático, a lógica da legitimação no caso português é sempre mais conservadora do que populista.

"no fascismo português o chefe vem da elite. Manda quem pode, obedece quem deve"

No que toca aos fascismos, qual é diferença entre ser um líder conservador e um populista?

Por exemplo, enquanto que o fascismo plebeu consagra o chefe carismático como um tipo qualquer que vem da multidão e se distingue pela capacidade de interpretar o 'sentido profundo da raça ou da nação' - e nesse sentido, qualquer cabo do exército pode ser Fuhrer da Alemanha - no fascismo português o chefe vem da elite. Manda quem pode, obedece quem deve. É uma forma tradicional de legitimação da chefia, quem manda é quem mandou sempre. Nesse sentido, o fascismo conservador tem outra distinção importante, o uso da violência. Enquanto que no fascismo plebeu, sobretudo no caso alemão, o que nós temos é o que os juristas chamam o caso prerrogativo, ou seja, a lei é toda a que eu quiser e, se necessário, não há lei sequer. É um estado prerrogativo que exerce toda a violência que é necessária, sendo que esta não tem limite senão a vontade de quem a exerce. Nos fascismos conservadores, há a permanência de um estado normativo. Como se dizia, em Portugal houve um fascismo de toga, a dos juízes.

em Portugal houve um fascismo de toga, a dos juízes.

Ia fazer-lhe essa pergunta. Faz sentido falar do caso português como um fascismo light? No livro, defende que o regime só não foi mais violento porque não precisou, porque estava preparado para isso.

Exatamente. A conceção da violência no fascismo conservador não é muito diferente. A ideia é que a violência é necessária, mas devemos ser prudentes no seu uso porque, a certa altura, semeamos ventos e colhemos tempestades. O critério continua a ser que a violência é regulada por quem a exerce. Quando Salazar, nos seus discursos, falava num estado limitado pela moral e pelo direito, a moral era a que o regime aceitava e o direito era aquele que ele ditatorialmente produzia. Estamos a falar de uma metáfora do estado normativo, ou seja, era um estado que admitia que houvesse regras, ainda que fosse ele que as ditasse e que frequentemente não as respeitasse.

O que me está a dizer é que, pelo menos, estavam no papel.

Não era o puro arbítrio. Havia normas que eram ditadas pela conveniência política do regime, mas não há uma heterofiscalização (fiscalização de fora), pois isso só existe quando há um parlamento eleito em regime de pluralismo político que fiscaliza a sua atividade e um poder judiciário independente. No Estado Novo não havia nada disso. Ainda que houvesse direito, Assembleia Nacional e tribunais, essa separação de poderes era explicitamente negada.

E que mais diferenças há entre os diferentes regimes fascistas?

No imperialismo. O irredentismo imperial é uma das características dos regimes fascistas, o retorno à grandeza imperial mítica do passado. No caso alemão é o “Lebensraum”, o espaço vital, a expansão para leste, o dever da raça superior para realizar os seus interesses de subjugar territorial e racialmente os sub-humanos. No caso da Itália, era o regresso à Roma Imperial. Mas esses são imperialismos agressivos.

Distintos do caso português, portanto. 

O caso português é defensivo, trata-se de defender o património colonial desses mesmos imperialismos irredentistas. O Estado Novo refunda o discurso imperial com o Ato Colonial e Portugal deixa de ter Ultramar para ter Império, cuja cabeça é a metrópole. O discurso imperial é ideologicamente muito marcado e associado à ideia darwinista social da raça branca superior que tem como missão trazer as raças inferiores, os negros, à luz da civilização através do trabalho. No sistema colonial, a escravatura transforma-se em trabalho forçado.

Até aqui falámos do que diferenciava o caso português dos restantes. E o que é que os junta?

Há uma série de características que são comuns aos regimes fascistas, apesar de terem expressões políticas e vidas diferentes. São regimes que entendem que a comunidade não é formada por cidadãos, cada um com um voto, e rejeitam a herança da Revolução Francesa da soberania popular. Pelo contrário, acreditam que a nação é um ente em si próprio, com uma vida própria que transporta uma hierarquia e um sistema de valores que é uma criação do direito natural, anterior ao Estado e que este tem sobretudo de a receber e organizar politicamente através do sistema corporativo ou de formas parecidas. Porque a essência do regime corporativo, que é característico dos regimes fascistas, de natureza antissocialista e anticomunista, é a anulação da luta de classes, desde logo doutrinariamente. Há uma ordem natural que o Estado recebe e quem fomenta a luta de classes assume um comportamento desviante, como se fosse uma patologia, que tem de ser curada e com firmeza.

Na nota prévia que inicia este livro, escreve em como teve de rever “ideias feitas” e de fazer uma “desparoquialização do tema”. Quais eram estas ideias e que desparoquialização é essa?

É muito importante fazê-lo, porque não há só o fascismo português ou o Estado Novo ou o que seja. Há uma época histórica e a comparação é absolutamente indispensável para a compreensão do que é o fascismo português, ou do que não é, para o caso daqueles que entendem que ele não existe. Ou seja, a caracterização ideológica e política do regime português do Estado Novo não dispensa em circunstância nenhuma uma comparação com os regimes idênticos que naquela época existiam na Europa. Durante algum tempo, esse exercício não foi fácil.

Porque é que não foi possível fazê-lo antes?

Os estudos sobre o Estado Novo português chegaram tarde às ciências sociais e tiveram de fazer o percurso de se auto-estudar. Como é que nós podíamos comparar se não sabíamos com o que é que comparávamos em Portugal? Eu participei nesse movimento de fundação dos estudos do Estado Novo, mas tivemos de nos ocupar durante muito tempo com o estudo da realidade portuguesa em particular e descurar um pouco a comparação. Acho que isso fez falta e neste livro eu procuro exatamente fazer o contrário: partir do fascismo em geral para a particularização do caso português.

Qual é a importância dessa comparação?

É essencial porque, por um lado, sem ela não percebemos como é que o Estado Novo se relaciona com esta galáxia de regimes autoritários e fascistas. Por outro, é preciso superar dois tipos de discurso que lidam com a memória, mas que são distintos daquilo que deve ser a base da disciplina da História. De um lado, a oposição ao regime [fascista], que naturalmente se valoriza como tal, mas que tem um discurso por vezes um bocado mitificado. É o discurso heróico da resistência, e foi, mas isso não pode projetar-se na História, ela não se faz de heróis e de vencedores. A história é a história, com as suas grandezas e misérias. O outro discurso, também do uso político da memória, que é o da nostalgia do antigo regime, do fascismo. Um discurso desculpabilizador do Estado Novo.

"A neutralidade não existe (...) Essa ideia do 'clerk' numa torre de marfim, pairando virginalmente acima das contradições do mundo, essa é a pior forma de fazer política."

E entre essas várias formas de olhar para o Estado Novo, qual é o propósito da história aqui? 

Não é construir um discurso neutro, isso não existe em História. Há dias li qualquer coisa a propósito do meu livro, dizendo que os estudos do Estado Novo se dividiam em dois campos, o de uma história política que trazia a política de hoje para a história e outro da ciência pura. Não é isso que divide a história do Estado Novo. São sim as diferenças de conceção acerca da natureza política e ideológica do regime. A neutralidade não existe. Para já, porque toda a história é escrita do hoje para o ontem, por cidadãos, agentes de cultura, que são seres do tempo em que existem, ou seja, incorporam as culturas, as dúvidas, as perplexidades, as convicções do seu tempo. Essa ideia do "clerk" numa torre de marfim, pairando virginalmente acima das contradições do mundo, essa é a pior forma de fazer política.

Política ou história?

Digo-o porque é aquela em que se faz [política], dizendo que não se faz. Todo o historiador transporta em si uma cultura política que projeta sobre aquilo que faz. O George Duby dizia muito bem que "não há história objetiva", porque cada pessoa transporta subjetivamente aquilo que é a sua maneira de ver o mundo e esta projeta-se na interpretação que faz dos factos. O que é científico na história é o método, a maneira de estudar o objeto, os métodos de investigação e inquérito, a crítica das fontes. Dentro deste campo, todavia, toda a história num certo sentido é política porque toda ela é a projeção sobre o objeto de estudo daquilo que é o ser cultural, ideológico, político, de quem a faz. E é isso que torna a história interessante. Imagine que agora havia assim uns seres neutros e cinzentos, sem opinião sobre coisa nenhuma... Não me incomoda nada e é próprio de todas as culturas historiográficas que haja uma pluralidade de interpretações sobre o Estado Novo. Isso não é nada inquietante, vai ser sempre assim. O que é que é inquietante é haver uma única história decretada pela Torre de Marfim ou pelo Estado.

Mencionando essa pluralidade de visões, alguma historiografia tem relutância em caracterizar o regime salazarista como totalitário ou sequer como um fascismo. De onde é que ela surgiu?

Temos de perceber do que estamos a falar quando se trata de totalitarismo. Dentro dos pontos que enunciei, o totalitarismo é uma característica essencial dos regimes fascistas dos anos 20 e 30. Entendia-se, por isso, a ambição dos fascistas de criar um homem novo, fabricado pelas instituições de inculcação ideológica autoritária do regime para a família, para a escola, para o trabalho, para os lazeres, que tinham como missão reeducar ideologicamente a alma dos portugueses e das portuguesas. Portanto, é um projeto total, cuja pretensão era invadir todos os aspetos das sociabilidades quotidianas para as impregnar das novas ideias do regime. Se bem que o paradigma do homem novo também mudava consoante o regime. No caso alemão seria o guerreiro do Nibelungo, os personagens do Wagner. No caso italiano, o herói romano.

[o herói português] é mais o caseiro modesto mas honrado

E qual é que é o herói português?

É mais o caseiro modesto mas honrado. Vem retratado magnificamente num daqueles cartazes que o Estado Novo distribuiu às escolas para os professores darem uma aula sobre cada um deles. O primeiro - Deus, Pátria e Família - em que se vê o homem a vir do campo, com a enxada às costas a entrar na sua casa modesta, onde está o crucifixo e a mulher está no seu lugar, preparando-lhe a refeição. Onde a filha está a brincar às casinhas e às mães, reproduzindo a função social da mulher que o Estado Novo definia e onde o rapaz está a ler, fardado da Mocidade Portuguesa e a levantar-se quando o pai chega, vendo-se através da janela aberta o modelo do castelo de Guimarães com a bandeira a flutuar. Ou seja, um caseiro respeitador da ordem estabelecida, amante do império, da ordem e da lei, trabalhando modestamente e satisfazendo-se com a sua pobreza honrada. É o modelo do Homo Salazarista. Esse é o totalitarismo, a ideia do homem total. No pós-guerra e no contexto da Guerra Fria, este conceito foi reelaborado para meter no mesmo saco, como inimigos dos Estados Unidos, quer o regime nazi, quer o regime comunista. Não o estalinista, mas o comunista em geral.

Fernando Rosas
Fernando Rosas créditos: ANTÓNIO COTRIM/LUSA

No livro lembra essa comparação do fascismo e comunismo como duas faces da mesma moeda, que considera errada.

É errada, é historicamente falsa e até caiu um bocado em desuso. Essa comparação tinha dois efeitos. O primeiro era que, como o comunismo e o nazismo eram a mesma coisa, havia uma espécie de degradé de culpa para os regimes que não se consideravam totalitários. Por isso se vê que no campo ocidental do anticomunismo de repente aparecem o salazarismo e o regime do Franco, há uma espécie de discurso desculpabilizador desses regimes que informa as ciências sociais posteriormente. Então, aquilo [Salazarismo] não é bem fascismo nem totalitarismo, que passa a ser uma moeda com duas faces: o comunismo e o nazismo. Claro que isto é um disparate total o ponto de vista das ciências sociais, além de ser uma manobra ideológica.

Porque é que é uma manobra ideológica?

O nazismo é uma ideologia doutrinariamente feita em nome de uma raça superior, cujo direito e o dever é oprimir e explorar as raças inferiores. É uma ideologia de ódio e opressão assumida como legítima e com uma base social determinada. O comunismo era uma ideologia que, do ponto de vista do seu discurso doutrinário, é emancipatória e democrática, em que a classe operária, emancipando-se, emancipava o povo trabalhador em geral. Não hierarquiza raças e não legitima opressão. Estamos a falar disto do ponto de vista doutrinário, independentemente da degenerescência que sofreu a própria ideia comunista com o estalinismo.

O Estaline mandava matar os inimigos, o Hitler mandava matar toda a gente desde que pertencesse a uma determinada etnia

Ou seja, há uma diferença aplicação prática do nazismo e a do comunismo? Mas não tiveram efeitos semelhantes?

Nunca foram a mesma coisa, porque são regimes que têm um discurso social, político e ideológico diferente. A degenerescência estalinista de qualquer maneira nunca deu lugar a uma coisa única na história que é o Holocausto. O Estaline mandava matar os inimigos, o Hitler mandava matar toda a gente desde que pertencesse a uma determinada etnia. Nas raças inferiores não havia inimigos, era a própria raça, portanto homens, mulheres, crianças, velhos, ia tudo. A única 'culpa' que eles tinham era serem judeus, ciganos, eslavos... era um genocídio racial sem precedentes na história, sobretudo porque esse regime criou uma máquina de extermínio industrial também sempre precedentes. Mesmo os Gulags não têm comparação possível, nem na lógica funcional, nem no tipo de gente que reprimia, nem sua extensão, naquele curto período de tempo. Repare o Holocausto é de 41 até ao fim de 44, eles conseguem matar 6 milhões de judeus, por exemplo. E isso é incomparável. Nesse sentido, comparar o nazismo com o comunismo é um argumento ideológico e político, que já é bastante pouco aceite nas ciências sociais.

Ia apontar-lhe isso. Enquanto argumento político, essa comparação continua a ser recorrente.

Sim, claro. Ainda agora na campanha das eleições europeias, se equiparou a extrema-direita à extrema-esquerda, como se a extrema-direita não fossem os herdeiros políticos dos fascismos e a extrema-esquerda não fossem, no caso português, os herdeiros dos antifascistas, não é? Trata-se de um argumento com pouca base científica.

Quero abordar as eleições europeias, mas antes gostava que falasse num ponto interessante que mencionou, a questão da memória. Na intitulada ‘última lição’ que deu na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, focou a sua atenção no uso público da memória. No atual contexto em que nos encontramos, quais são os riscos dessa utilização?

Bom, a memória serve para tudo e, portanto, todas as forças políticas tentam fazer um determinado uso da memória conveniente aos propósitos que têm. Eu acho que a coisa mais inquietante que se passa com a memória e é a desmemória, a cultura daquilo que o Eric Hobsbawm chamava o "presente contínuo", criada por parte de um certo tipo de cultura hegemónica, muito presente nas redes sociais. Os efeitos políticos disso são catastróficos.

"É muito mais fácil convencer, por exemplo, os trabalhadores da indústria automóvel a trabalharem 12 horas por dia se não souberem ou se se tiverem 'esquecido' que correram rios de sangue para se conquistarem as 8 horas de trabalho"

Em que medida?

É muito mais fácil convencer, por exemplo, os trabalhadores da indústria automóvel a trabalharem 12 horas por dia se não souberem ou se se tiverem "esquecido" que correram rios de sangue para se conquistarem as 8 horas de trabalho. Evacuar a memória das relações sociais é uma forma sinistra de dominação do outro, porque a memória e a comparação são escudos que nos defendem, esclarecem e situam nos conflitos da vida social e política. E portanto, a criação de um ambiente de desmemória é a primeira condição para criar o indivíduo solitário, que é o alvo preferencial da ideologia que corre através das redes sociais.

Pode explorar um pouco mais essa ideia?

Nos últimos 20 anos, não há geração que esteja simultaneamente mais conectada à Internet e que ao mesmo tempo sejam tão solitária. É que a desmemória cria também a rutura dos laços de convivialidade física, presencial. Desestrutura-se a comunidade porque esta desapareceu na família, no café, no sindicato, no partido, na associação cultural. Tudo em função de um ser perante um computador, onde recebe as mensagens que começam a ser propositadamente dirigidas para as suas escolhas, que são previamente conhecidas, por forma a que aquilo funcione como um eco. Portanto, nós estamos a criar uma sociedade cheia de opiniões que não se contradizem entre si num debate plural e democrático, mas que se sobrepõem umas às outras, criando um ambiente de eco e de sectarismo, ótimo para quem controla financeira e ideologicamente as redes sociais e queira mobilizar as almas daquelas criaturas solitárias que começam a ouvir o que querem ouvir. Nesse sentido, e não é por acaso, que ao ciber-otimismo que existiu até à eleição do Trump - as redes sociais e a Primavera Árabe, as mobilizações, etc... - se começou a substituir um ciber-pessimismo: o Trump, as “fake news”, a utilização política e perversa das redes sociais para mobilizar esses indivíduos solitários e indefesos e os moldar demagogicamente na mentira e na manipulação. Nós em Portugal estamos a começar.

No último capítulo do livro, faz uma ponte - ainda que cautelosa - entre os fascismos europeus e a actual emergência de movimentos autoritários à direita. Que cenários antevê de futuro?

A minha inquietação é a emergência da extrema-direita no contexto da nova crise do sistema liberal - a segunda crise histórica deste sistema - com vítimas massivas da globalização, um centro político de partidos socialistas e direita tradicional que abandonou completamente essa gente pela aplicação da lógica neoliberal à economia. A hegemonia do capital financeiro foi veiculada pela rendição dessas forças políticas que monopolizaram o sistema desde a 2ª Guerra Mundial e, novamente, esses setores intermédios de empregados, desempregados, gente marginalizada, sem destino, com medo da perda do seu estatuto social, do seu futuro, de não poder pagar a escola aos filhos. É nesse terreno que a extrema-direita novamente cavalga.

Mas, no entanto, deixa também claro que o que está aí a vir não é o retorno do fascismo.

Há um paralelismo funcional, as realidades são outras. Provavelmente o fascismo nunca se vai repetir como foi antes, mas há um novo autoritarismo que sai de condições parecidas e que tem outra característica importante. É que o sistema financeiro não só corre à margem completamente desvinculado dos parlamentos e da política, como a lógica deste novo imperialismo financeiro é de subversão do sistema político que existe. Não precisa de estados nem parlamentos nacionais, precisa sim de decisões rápidas e centralizadas, tomadas nos verdadeiros centros de decisão paralelos. Portanto, eu acho que utiliza as novas redes sociais de uma maneira que era, até agora, impensável. E é uma luta muito desigual.

"A extrema-direita pode fazer as 'fake news', o Facebook, o Twitter e a Google podem fazer campanhas ideológicas dirigidas para certos tipos de eleitores cujas preferências conhecem através dos sistemas de captação que têm. Como é que a esquerda responde a este desafio? Não pode fazer 'fake news', porque é a esquerda"

Porquê?

Porque a extrema-direita pode fazer as “fake news”, o Facebook, o Twitter e a Google podem fazer campanhas ideológicas dirigidas para certos tipos de eleitores cujas preferências conhecem através dos sistemas de captação que têm. Como é que a esquerda responde a este desafio? Não pode fazer “fake news”, porque é a esquerda. Não é um método de luta seu inventar propositadamente coisas que são mentira para obter certos projetos. Para além disso, no campo estrito das redes sociais, os métodos que até agora se apuraram para combater as “fake news” são métodos um bocadinho inquietantes. Ou se faz como na China que bloqueiam o acesso e acabou ou novos tipos de censura que não se controla. O Facebook tem um tipo de censura organizada, com os algoritmos que assinalam o que se pode ou não fazer. Mas isso não pode ser ideologicamente orientado? Claro que pode. Em nome de prevenir as notícias manipuladas, podemos estar a criar um novo tipo de censura com uma particularidade. É que ninguém controla isso, nem política nem judicialmente.

Ainda sobre esta emergência de que fala dos fenómenos de extrema-direita. Que previsões faz do crescimento destas tendências autoritárias no seio da Europa, particularmente quando estamos prestes a ter eleições europeias? [Esta entrevista foi realizada na semana anterior às eleições europeias]

Todas as sondagens indicam que a extrema-direita vai, provavelmente, a segunda ou a terceira força política europeia e outra coisa que se vai verificar é que isso vai ser fruto de uma enorme abstenção. A extrema-direita que está aí a progredir engravatou-se, não é o mimetismo folclórico dos fascismos antigos. Esses grupos deram todos em contrabando de armas e de droga. Não é aí que, como eu escrevi no livro, a serpente pôs o ovo. O que se passa é que esses grupos estão a emergir, e à semelhança do que se passou nos anos 30, entram pela porta que lhes está a abrir a direita tradicional. O cordão sanitário que separava as direitas políticas sistémicas desses movimentos está a desaparecer. Em Espanha, desapareceu na Andaluzia e teria desaparecido se eles [o partido Vox] tivessem ganho as eleições [legislativas]. Mas em vários outros países... na Itália desapareceu, na Hungria, na Polónia, na Holanda... e portanto, o que significa é que a extrema-direita, mesmo antes destas eleições, já está no poder. Em vários países já está no governo e vamos ver que tipo de subversão política é que o acesso ao poder da extrema-direita vai dar lugar.

Em que é que consiste a subversão de que fala?

Nós sabemos o que se está a passar na Hungria e na Polónia. Ataque à separação de poderes e à independência dos tribunais, ataque à liberdade de imprensa, restrição do direito de associação, apelo xenófobo e nacionalista anti-imigrante e veremos... O capital financeiro operou profundas transformações no campo económico e social, causadas também pela rendição da própria social-democracia e da direita tradicional ao mesmo capital. Mas até aqui, subestimou-se a capacidade de subversão política do sistema que existia e agora está aí.

Como por exemplo?

Pense que o parlamentarismo nasceu da necessidade de fazer aprovar os orçamentos ao rei de Inglaterra. Portanto, a autorização das receitas e despesas tinha de ir ao Parlamento, foi uma conquista genética do parlamentarismo. Hoje temos o que temos é que na União Europeia, os orçamentos são previamente aprovados por comissões que os fiscalizam e que se pronunciam sobre eles ainda antes de chegarem aos parlamentos que formalmente os sancionam. A violência fascista dos anos 30 assumiu funções de destruição do movimento operário e do parlamentarismo. Hoje a metodologia é um bocado o esvaziamento. No caso do movimento operário e sindical, é atacar os sindicatos ao acabar com a contratação coletiva. Não são proibidos, diz-se é "não dá é para fazer contratação coletiva", que foi para o que eles nasceram. Não se fecha o parlamento com a tropa, este tem é funções cada vez mais cosméticas, as coisas são decididas noutro sítio qualquer que não se sabe, nem se fiscaliza nem se elegeu. É essa luta que os cidadãos democratas têm de enfrentar. Porque o centro vai dividir-se com a polarização, vai ser como no tempo do fascismo. Uma parte importante do centro rende-se à direita, uma outra parte emudece e paralisa e talvez uma pequena parte possa vir para a esquerda. Mas o centro, como tal, vai tender a desaparecer da vida política europeia.

"Isto empurra-nos para a urgência da mudança política e social. Se quiser um grande termo, a urgência da revolução, da grande transformação. De uma transformação de fundo que preserve o comunitarismo, a vida em sociedade, o pluralismo político e de opinião"

E como avalia o crescimento da extrema-direita em Portugal?

O caso em Portugal tem tido um desenvolvimento um pouco diferente. Há uma esquerda à esquerda do Partido Socialista que tem conseguido manter as suas funções de enquadramento e representação do descontentamento. Este não foi abandonado, não está à solta nem órfão politicamente. Apesar de tudo, o descontentamento tem tido, até agora, uma representação política, que, mesmo assim, representa quase 20% do Parlamento, o que não acontece em mais país nenhum da Europa. Isso, unido ao facto de haver pouca imigração, não têm facilitado a progressão de um populismo de extrema-direita. Mesmo as sondagens nestas eleições europeias dão a esses partidos uma representação residual. Mas há um problema perigoso em Portugal.

As privatizações, as PPPs, a legislação laboral, são um mar de corrupção, todos os dias se está a descobrir estas redes que têm a ver com uma coisa, que não se fala a propósito do caso Berardo, tratado como uma anedota

Que problema é esse?

É a corrupção, que responsabiliza todos os partidos do centro, os que tomaram conta do sistema político a partir da chamada normalização democrática - da Revolução ou da contrarevolução, como lhe quiser chamar. As privatizações, as PPPs, a legislação laboral, são um mar de corrupção, todos os dias se está a descobrir estas redes que têm a ver com uma coisa, que não se fala a propósito do caso Berardo, tratado como uma anedota. É que este é muito mais um sintoma que uma anedota, é um sintoma do caráter parasitário da reconstituição da burguesia como classe dominante em Portugal. Quando se começaram a reverter as nacionalizações, a reforma agrária, o controlo operário, regressou-se à velha prática anterior de ser o Estado a formar uma classe dominante rentista, parasitária, vivendo à custa da proteção multiforme do Estado e das grandes negociatas. E portanto, a corrupção está intimamente ligada à reconstituição da burguesia como classe hegemónica.

E é essa corrupção acaba por criar desconfiança quanto à classe política?

É claro, e que a [corrupção] associa à democracia, torna-a vulnerável. Foi no quadro da democracia que isto se deu, perante a grande ineficiência dos tribunais. Com a pressão da opinião pública, começou-se agora a abrir os processos, mas e o tempo que demora? Em Portugal, quem tem tempo para ter um bom advogado, o que é facto é que pelo menos consegue ficar muito tempo cá fora, para não dizer que se safa. Quem é que pode garantir que no processo Marquês, os responsáveis vão algum dia parar à prisão? Tudo isto são formas perversas de exercer a justiça que protegem os prevaricadores. E isso é que é terreno fértil é campo fértil para a demagogia populista, porque mistura a política, a democracia, a liberdade, com a corrupção. Até agora, o descontentamento tem sido enquadrado, e a Geringonça funcionou como uma forma de criar expectativas às pessoas, etc. Uma coisa é como é que tem funcionado e os seus resultados, mas isso é do campo da política e só nas próximas eleições gerais é que se vai perceber qual é a correlação de forças e qual é o futuro. Mas o que é facto é que tem funcionado como um obstáculo à progressão do populismo em Portugal.

Apesar do cenário negro que pinta, termina o livro com um apelo ao otimismo vigilante. No entanto, eu pergunto-lhe: neste momento, a que é que nos podemos agarrar?

O caminho é mudar a sociedade, mudar os fatores que criam o presente contínuo e alterar os fatores que desestruturam a comunidade presencial. O caminho é a luta política pela transformação da sociedade. Mas esta é uma luta prolongada, só que eu sou um otimista antropológico e acho que a sociedade vai encontrar os meios de fazer isso. O Marx dizia uma coisa que era: equacionar um problema é o primeiro passo para começar a resolvê-lo e nós estamos a tentar equacioná-lo. O debate que se gerou à volta do início da televisão tinha coisas parecidas, ou seja, seria um meio onde haveria a demagogia, o populismo, etc... Mas a democracia soube defender-se. A televisão mudou a política e a forma de fazer política, mas não liquidou o pluralismo político e a política de esquerda, designadamente. A esquerda aprendeu a fazer política na televisão. Agora, a diferença é que a televisão era um meio de comunicação social, havia um intermediário e aqui não há. Entre a organização política da mentira e o destinatário, a intermediação da comunicação social desapareceu.

a mentira vai direitinha [aos consumidores], o que está a destruir o jornalismo, na televisão e na imprensa escrita. É uma espécie de nova forma de totalitarismo que está aí a emergir

Fala nos chamados “gatekeepers”

É claro, gate-keepers, é mesmo esse o termo. Porque preveniam e era uma plataforma intermediária de discussão da verdade. Isto desapareceu, a mentira vai direitinha [aos consumidores], o que está a destruir o jornalismo, na televisão e na imprensa escrita. É uma espécie de nova forma de totalitarismo que está aí a emergir. Como é que as democracias se defendem disso? É um problema, porque as medidas administrativas e censórias não só não resolvem isso como vão criar perversões novas. Isto empurra-nos para a urgência da mudança política e social. Se quiser um grande termo, a urgência da revolução, da grande transformação. De uma transformação de fundo que preserve o comunitarismo, a vida em sociedade, o pluralismo político e de opinião. Isso é um grande desafio que nós temos e que está longe de ser o último, porque entretanto estas coisas precisam todas de tempo para se realizar e o planeta está a morrer. Isso leva-nos à questão da catástrofe ambiental cada vez mais iminente, provavelmente estamos a ter uma grande discussão e se não tomamos juízo, nem sequer temos tempo para resolver esse problema! (risos)

Mas lembremo-nos disto: o capitalismo demorou séculos a implantar-se enquanto sistema. O socialismo também vai demorar algum tempo até encontramos aquele que coincida a emancipação social com a liberdade política e a democracia

Referiu uma grande revolução, mas como é que ela pode ser pensada em 2019? Até porque no próprio livro escreve que uma das causas atuais de pessimismo é já não existirem os "amanhãs que cantam".

A primeira época histórica do Marxismo baseava-se numa ideia positivista e otimista de que o progresso era uma linha ascendente, eram as ideias do século XIX. No entanto, nós descobrimos no século XX que havia regressões civilizacionais, que a civilização não progredia no caminho da luz ou da emancipação numa linha ascencional e imparável. Não, pelo contrário, há retrocessos trágicos e até o colapso de algumas ideias emancipatórias cuja prática real foi catastrófica. Mas lembremo-nos disto: o capitalismo demorou séculos a implantar-se enquanto sistema. O socialismo também vai demorar algum tempo até encontramos aquele que coincida a emancipação social com a liberdade política e a democracia.

E quando pensa que o socialismo vai chegar?

Precisamos de uma conceção de tempo à chinesa, como o Zhou Enlai, que quando lhe perguntavam "quais foram os efeitos da Revolução Francesa?" e ele respondeu "é cedo para avaliarmos" (risos). A ideia de uma sociedade socialista tem de fazer o seu caminho, sobretudo depois dos desastres do socialismo real que tivemos. Mas é uma ideia muito forte, porque é a ideia de um socialismo que simultaneamente liberta o trabalho assalariado e realiza justiça social, sem prejuízo da manutenção da democracia e do pluralismo político - é nessa linha que eu me filio. Ela não morreu nem vai morrer nunca, vai é continuar à procura dos caminhos da sua concretização. As primeiras experiências correram muito mal e ainda há resultados delas por aí, mas o caminho é esse. Nesse sentido, eu beneficio do otimismo antropológico dos positivistas do século XIX, mas, com a vantagem relativamente a eles de conhecer o que se passou depois!

Eu faço parte duma geração cuja grande perplexidade era perceber como é que uma ditadura manhosa, conservadora, reacionária, opressiva como o Salazarismo tinha durado metade do século XX português

Dedicou grande parte da sua vida ao estudo do Estado Novo e quando começou, disse que o fez porque queria compreender a ditadura. Ao fim de uma boa parte da sua vida a estudá-la, sente-se mais esclarecido?

O que eu fiz com este último livro foi, ao fim deste tempo tudo, ter proposto uma linha interpretativa, criei uma opinião acerca do assunto, a minha. Diz bem, eu faço parte duma geração cuja grande perplexidade era perceber como é que uma ditadura manhosa, conservadora, reacionária, opressiva como o Salazarismo tinha durado metade do século XX português. Foi a questão que me levou primeiro à política e depois à história, porque achei que a política dava uma resposta imediata em termos de resistência e liberdade, mas a resposta mais profunda procurei encontrá-la em história. Foi a ela que eu me agarrei para procurar explicar esta longa duração do Estado Novo. Dito isto, escrevi um livro sobre o assunto, a "Arte de Saber Durar", e depois perceber como é que esta realidade portuguesa se integrava no sistema geral dos regimes fascistas da Europa surgido entre as duas Guerras. Penso ter cumprido para mim mesmo essa parte da tarefa. Agora estou concentrado no estudo da repetição destes fenómenos.

[Entrevista realizada a 17 de maio]