Ensaísta, professor, cronista e ex-presidente da Funarte (Fundação Nacional de Artes). Francisco Bosco ocupa atualmente uma das cadeiras do "Papo de Segunda”, programa semanal de debate do canal GNT, ao lado de Fábio Porchat, Emicida e João Vicente de Castro.

Publicou em maio “O diálogo possível”, sem edição em Portugal, ao contrário de outros dos seus livros, entre eles “A vítima tem sempre razão?”, com chancela Tinta da China. 

A obra faz uma análise do cenário político do Brasil e, como se lê numa das badanas do livro, “é um convite para que sentem à mesma mesa os que estão dispostos a discutir saídas para o país”. 

Foi sobre o Brasil que falámos ao longo de quase duas horas. Entre Lisboa e o Rio de Janeiro, entre Lula e Bolsonaro, entre a primeira e a segunda volta destas eleições, consideradas as mais polarizadas, mas também as mais importantes para o futuro do país. 

Em "O diálogo possível" identifica duas fraturas na identidade brasileira, dois pilares responsáveis pelo que chama de crise no debate público: a cultura popular e a democracia. Quer desenvolver?

A cultura popular e o pacto democrático, que funda a nova República brasileira, eram dois pilares que funcionavam como uma espécie de anteparo contra uma divisão social excessiva. O Brasil sempre foi um país com uma divisão social muito profunda do ponto de vista material, mas a partir da segunda metade do século XIX e ao longo do século XX conseguiu tornar-se numa nação unificada, do ponto de vista do seu imaginário, pela cultura popular. Nós perdemos essa dimensão da comunidade imaginada. Aquilo que a cultura popular conseguiu realizar, no futebol, por exemplo, com o protagonismo de pessoas negras, ou na canção popular, com a mistura desierarquizada entre brancos, negros, mestiços, ricos ou analfabetos... Todo esse fenómeno é completamente recusado na conceção bolsonarista. Para o bolsonarismo, a cultura brasileira resume-se numa espécie de diluição da cultura europeia ocidental com ênfase no cristianismo. É uma cultura conservadora, que não tem nada a ver com a utopia mestiça brasileira. 

O colapso do consenso democrático aprofunda um sentimento de guerra civil fria. Com o armamento da população, com o regresso do imaginário militarizado, com um clamor de um setor, embora minoritário, mas que não deixa de ser assustador, da população em torno do regresso da ditadura. Mas além disso, houve no Brasil um processo que está em consonância com o que aconteceu noutros países: uma crise da democracia liberal. Esse consenso que as democracias liberais conquistaram a partir dos anos 70, meados dos anos 80, com o fim do bloco socialista, com o fim das ditaduras na América Latina, acabou por se revelar mais liberal que democrático, apresentando alguns ganhos materiais, que não devem ser ignorados, mas também fomentando o crescimento radical das desigualdades. Em quase todos os países do mundo, da China aos EUA, por conta de uma democracia liberal que já muito pouco tinha da social-democracia do pós-guerra. Friedman, Reagan, Thatcher... O descontentamento foi aumentando, atingindo o seu pico global com crise financeira, em 2008, e no Brasil, com os protestos pelo aumento do preço dos transportes, em 2013.

"Colhemos os frutos de décadas de debate político absolutamente irresponsável, orientado para fins exclusivamente eleitorais."

De 2013 em diante, o que é que se observa? Como chegamos a 2018, com a eleição de um candidato como Jair Bolsonaro? 

O que 2013 diz ao país é que o funcionamento das instituições não está a representar a sociedade. A sociedade tem uma perceção de que a relação entre os poderes é mais orientada pelos interesses corporativos fisiológicos dos líderes políticos do que para o interesse da maior parte da população.

Do ponto de vista cultural, dá-se a emergência de um ideário identitarista que vai contra uma utopia mestiça. A utopia mestiça sempre foi uma utopia, e ela deve ser muito criticada. Só que o que o identitarismo faz é abrir mão de qualquer utopia universalista e instaura no Brasil uma espécie de imaginário multicultural, tribalista, separatista, que nunca foi o traço forte da cultura brasileira e é muito mais característico de países europeus ou dos EUA.

Outro marco fundamental nesse processo é o impeachment [processo de destituição] de Dilma Rousseff. O impeachment é um dispositivo constitucional muito controverso, do qual particularmente sou contra, porque "caça" um mandato diretamente eleito por meio de uma decisão indireta. O povo não tem voz nesse processo, só o Parlamento é que tem. E o impeachment é de natureza híbrida, meio política meio jurídico. Numa cultura política muito frágil como a do Brasil, este fica sempre na eminência de ser aproveitado e de ser transformado em processo ilegítimo. Foi o que aconteceu para boa parte da sociedade que tinha votado em Dilma Rousseff, isto é, para quarenta milhões de eleitores. Essas pessoas sentiram que levaram um golpe.

Ainda teve a Lava Jato, outro processo, que com um sentido alargado de purificar o sistema político acabou por conspurcar o sistema jurídico.

Esse conjunto de passos institucionais super controversos, que não conseguiram consenso social, foram deixando a sociedade em estado de divisão profunda, mas também num estado de tal perda de confiança nas instituições que levou a uma espécie de anomia social e institucional. E a anomia é sempre a antesala do extremismo, neste caso do populismo da direita radical.

Pode explicar a questão do identitarismo?

Esse é um assunto delicado, vamos nessa. Venho tentando fazer um esforço de distinção entre o que é uma posição política antirracista, pró igualdade de género, de defesa dos direitos de género, do movimento identitário. O movimento identitário defende essa mesma posição, mas a partir de um conjunto de premissas e de métodos nem sempre coincidentes. Quais são? Coisas como pensar exclusivamente a estrutura, o coletivo, e nunca o indivíduo. O movimento identitário caracteriza-se ainda por uma postura intimidadora no debate público, muito pouco democrática, que tem dificuldades em aceitar o contraditório. Se eu sou um homem, hétero, branco, cis, a tendência, senão a necessidade, é que me vá comportar no debate público no sentido de defender os interesses dessa posição de origem. A partir daí vêm frases como "você é homem, você não pode falar sobre isso", no caso de questões e problemas de género, "você é branco, você não pode falar sobre isso", no caso de questões raciais. Para mim, isso é absolutamente inaceitável. 

Impeachment de Dilma Rousseff, 17 de abril de 2016 | AFP PHOTO / EVARISTO SA

A polarização da retórica política, entre PT (Partido dos Trabalhadores) e PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), também contribuiu para essa crise do debate? A demonização recíproca acicatou ainda mais esse processo?

Não tenho dúvidas. Colhemos os frutos de décadas de debate político absolutamente irresponsável, orientado para fins exclusivamente eleitorais. Se você, com olhos minimamente desidentificados do ponto de vista partidário, olha para o que foram os governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), de Lula e de Dilma, percebe mais continuidade do que descontinuidade. O Brasil entra na redemocratização com uma Constituição sem precedentes, prevê um Sistema Único de Saúde (SUS), coisa que pouquíssimos países de população grande têm, prevê, pela primeira vez, que a educação seja um direito universal, inclusive a educação superior, prevê a aposentadoria, não apenas para trabalhadores formais, mas também para trabalhadores informais. Quem implementa o SUS é o governo de FHC, quem começa a implementar a educação universal é o governo de FHC... O governo de FHC, para usar a expressão de um dos seus próceres, entendeu que o Brasil precisava de um choque de capitalismo. Não estava errado, na minha opinião. Então teve também elementos liberais na política económica: privatizações, certas medidas monetárias... O que faz com que ele tenha sido percebido pela esquerda petista da época como um governo neoliberal. Nunca foi. Um governo neoliberal é o que estamos tendo agora. Na verdade também não é, enfim... O Paulo Guedes é um ministro [da Economia] que diz assim: 'vocês estavam falando que o governo de FHC é um governo liberal, espera que vou mostrar para vocês o que é um neoliberal, para verem a merda que estavam falando antes'.

"Quando a esquerda foi atacada pela Lava Jato e pelo impeachment, já não era uma direita moderada, civilizada, a alternativa. A alternativa que restou foi uma nova direita, uma direita radical."

Era importante para o PT empurrar o PSDB para a direita porque não havia espaço no país para dois partidos sociais-democratas. É muito difícil falar disto em termos breves, daí que tenha de dar essas contextualizações. Vocês na Europa têm uma experiência um pouco diferente com a esquerda. A Europa fez uma transição mais rápida do marxismo-leninismo para a social-democracia. A esquerda sul-americana, de uma maneira geral, teve muita dificuldade para fazer essa transição. Então, a gente entra na redemocratização com um imaginário de esquerda ainda muito fortemente ligado ao marxismo, à resistência à ditadura, à guerrilha. Isso fez com que o Partido dos Trabalhadores tivesse muita dificuldade em aceitar que um partido denominado social-democrata, como era o PSDB, pudesse ter medidas como as que referi. Por essa razão, mas sobretudo por razões eleitorais, o PT precisava que o PSDB fosse percebido como um partido mais à direita, e assim o foi empurrando. E o PT também foi percebendo que para chegar ao poder precisava de fazer uma aproximação ao centro. Esse passo o PT deu com a famosa Carta ao povo brasileiro, que foi o documento que franqueou ao PT o acesso a camadas sociais que nunca tinha tido. Quando o Lula é eleito, forma um governo efetivamente social-democrata, o PT se consolida como um partido social-democrata, e o PSDB, por sua vez, fica sem espaço e ruma para a direita. Nessa guinada à direita, o PSDB começa a caricaturar o PT como um partido de esquerda radical, que "flerta" com as ditaduras na América Latina — o que ele faz, mas só retoricamente.

Houve um jogo recíproco de interesses eleitorais em busca de hegemonia, de espaço, que fez com um partido deformasse a real posição no espectro político do outro. Qual foi a consequência disso? Não dava para ver enquanto acontecia, mas quando a democracia liberal começou a entrar em colapso, esse jogo de hardballs recíproco produziu no imaginário da população uma perda profunda de credibilidade de ambos os partidos. Na hora em que a democracia liberal colapsou, não tinha alternativa. Quando a esquerda foi atacada pela Lava Jato e pelo impeachment, já não era uma direita moderada, civilizada, a alternativa. A alternativa que restou foi uma nova direita, uma direita radical.

"A partir de 2013, o Brasil passa de um estado de apatia democrática para um estado de híper engajamento."

E onde é que entram as redes sociais e a imprensa neste processo?

Entram em tudo. Quando havia uma hegemonia dos media de massa no Brasil, muito concentrados e com um perfil ideológico liberal conservador, esses media tinham um poder muito forte de intervir na eleição. Temos episódios muito emblemáticos, como o Ato da Igreja da Sé (ou Comício da Candelária), durante a campanha pelas Diretas Já, ou o último debate entre Lula e Collor (Fernando Collor de Mello) no debate no Jornal Nacional, em 1989. Em ambos, a Rede Globo teve uma interferência direta no sentido de favorecer os interesses liberais conservadores. Enquanto havia essa hegemonia, ela tanto impedia que se elegesse um candidato verdadeiramente transformador no Brasil — o candidato mais transformador foi Leonel Brizola, do PDT, que odiava a Rede Globo —, como impedia que se elegessem figuras absolutamente deletérias, símbolos de um populismo de direita, como Enéas Carneiro, a quem o Bolsonaro se refere frequentemente. Uma figura como Enéas Carneiro não tinha condições de se desenvolver num ecossistema comunicacional brasileiro pré redes sociais.

Com a emergência das redes sociais, os media de massa perderam a hegemonia do processo, deixaram de ter um papel decisivo. Continuam a ter um papel importante, mas esse papel foi relativizado pela capacidade de autocomunicação da sociedade que emerge com as redes sociais. Talvez daqui a décadas, a invenção das redes sociais seja vista como algo da ordem da revolução industrial em termos do impacto sobre a experiência humana.

Protesto contra o aumento do preço dos transportes públicos, Rio de Janeiro, 17 de junho de 2013 | EPA/Marcelo Sayão

E voltamos a 2013, com o Movimento Passe Livre, com a população a sair à rua mobilizada por protestos convocados através das redes sociais...

2013 é o grande grito social por soberania, por participação. Isso aconteceu juntamente com a consolidação das redes sociais, ao mesmo tempo como causa e efeito. A partir de 2013, o Brasil passa de um estado de apatia democrática para um estado de híper engajamento. Só que essa passagem não se deu pela mediação de um processo de formação política institucional, por meio de uma educação universal de qualidade ou por meio de um novo espaço público — as redes sociais — devidamente regulado. Regulado de forma a combater as fake news, de forma a esvaziar dinâmicas de formação de grupo... As redes sociais eram terra de ninguém. Dá para parafrasear uma observação famosa do Lévi Strauss. Quando veio à América, nos anos 30, disse que a América passou da barbaridade à decadência sem conhecer a civilização. Uma frase bem europeia, hein? Mas poderíamos dizer que o debate público no Brasil passou da apatia ao híper engajamento sem conhecer a formação. Tudo o que está a acontecer agora está diretamente relacionado com as redes sociais. Um dos desafios, em sentido global, é como se torna esse novo espaço público num espaço que funcione para a democracia liberal, e não contra ela. No momento está a funcionar sobretudo contra ela.

Depois das redes sociais e da imprensa, não posso deixar de perguntar, e qual foi o papel da religião?

O Brasil é fortemente religioso, os ateus são menos de 10% da população. A religião Católica foi a religião oficial do país até à nossa primeira Constituição Republicana, do final do século XIX. Então, o Brasil tem pouco mais de 100 anos de Estado laico. Ainda assim, é um Estado laico à maneira brasileira. Não apenas cheio de feriados católicos, mas se for a um gabinete público vai ver que está cheio de símbolos. O catolicismo, como era hegemónico, nunca se preocupou em ter um braço institucional dentro do sistema político. Porque exercia um lobby tão forte que era capaz de barrar as agendas progressistas, sendo a mais emblemática a do aborto. É um lugar comum nas campanhas para a presidência do país. E os candidatos de esquerda ficam sempre na pior saia justa em relação a essa agenda, porque são pressionados pelas suas bases para a tentar propor alterações, mas sabem que isso terá um custo eleitoral talvez decisivo.

Nas últimas décadas começou a haver uma mudança no interior do cristianismo e os católicos foram perdendo espaço para os protestantes. Dentro do protestantismo, sobressaem as chamadas igrejas neopentecostais, nas suas várias denominações. Os protestantes, para se conseguirem afirmar num país de hegemonia católica, tiveram de traçar estratégias. Foram os protestantes que começaram a perceber a importância de ter participação no sistema comunicacional, o primeiro canal concedido a uma igreja foi à igreja evangélica do bispo Edir Macedo, e hoje em dia a TV Record talvez seja o terceiro canal mais importante da televisão brasileira. Em seguida, perceberam a importância de criar uma bancada [no Congresso] para defender os interesses conservadores no interior do sistema político brasileiro. Enquanto isso acontecia, a esquerda brasileira sofreu uma inflexão na sua agenda, de um imaginário mais ligado ao marxismo, às questões de classe, rumo ao que hoje chamamos de progressismo. Isso começou a produzir uma tensão de fundo muito grande, que não é exclusiva do Brasil. Uma tensão entre uma minoria super escolarizada, super liberal-progressista, e uma maioria pouco escolarizada e de natureza conservadora. Essa tensão não foi percebida pelos liberais progressistas de esquerda porque estavam no poder e estavam tocando a todo o vapor a sua agenda: casamento homossexual, adoção de crianças entre casais do mesmo sexo, criminalizarão da homofobia, um avanço no reconhecimento de identidades de género não normativas... E os conservadores começaram a ficar incomodados...

"O conflito veio à tona e é justamente no interior desse conflito que surge, como figura nacional, Jair Bolsonaro. Até então era um deputado absolutamente irrelevante."

Em 2010, a tensão transformou-se em crise. Nesse ano, o governo da Dilma tentou fazer um justo e correto processo chamado "Escola sem Homofobia", com a finalidade de educar crianças adolescentes para não cometerem preconceito contra identidades e práticas de género não normativas. Até aqui tudo certo. Só que a bancada evangélica no Congresso instaurou uma dinâmica de pânico moral e transformou esse projeto em coisas do tipo: 'o Ministério da Educação [à data Fernando Haddad era o ministro] vai distribuir mamadeiras de piroca para as crianças'. O conflito veio à tona e é justamente no interior desse conflito que surge, como figura nacional, Jair Bolsonaro. Até então era um deputado absolutamente irrelevante do chamado baixo-clero, cujos mandatos se renovavam com uma base eleitoral muito pequena, de setores corporativos ligados à segurança, polícias-militares sobretudo. Aí Bolsonaro percebe que há uma brecha e ele se torna o grande porta-voz do pânico moral conservador brasileiro.

O que sobra quando não existe diálogo?

A premissa da existência do diálogo é a de que haja alguma margem de abertura cognitiva da parte de quem participa para a escuta e para a transformação. Se entra num diálogo considerando que não tem margem para se transformar, que as suas posições estão tomadas a priori, não há diálogo. Tem dois monólogos simultâneos sem possibilidade de transformação recíproca. É um encontro entre imaginários, cada imaginário, cada narcisismo tentando capturar o outro. É o que está a acontecer no Brasil neste momento. O espaço do diálogo está muito reduzido, porque, em larga medida, o que existe é a opacidade, posições prévias definidas. Como não há essa margem, como disse, para a escuta e para a transformação, o que existe é o adversário absoluto.

Fala várias vezes em ressentimento...

A caricaturização permanente de um grupo pelo outro gera ressentimento. A esquerda dominante no Brasil, que é uma esquerda progressista, tende a ver qualquer conservador como reacionário, qualquer liberal-democrata como neoliberal, qualquer direita civilizada como fascista, qualquer não identiário como racista. Existe uma dinâmica de permanente impulso rumo a uma amálgama e ela vai sempre para a posição mais extrema. Do outro lado, a mesma coisa, com a direita dominante, essa direita conservadora de matriz Olavista — Olavo de Carvalho foi um intelectual conservador-religioso — que representa a esquerda da mesma maneira. Para ela, toda a esquerda é, pasme-se, comunista, antidemocrática, cerceadora da liberdade de expressão, aparelhadora do Estado, fiscalmente irresponsável. O ressentimento dá-se pelo empurrão recíproco de cada posição para uma falsificação. A esquerda não se reconhece no modo como a direita a representa, mas a esquerda faz o mesmo com a direita.

"As palavras são os últimos instrumentos que temos para interpretar a realidade. Se as palavras estão apodrecidas na origem, a interpretação da realidade vai ser apodrecida também."

Esta crise é irreversível?

Considero que nada é irreversível. A crise do debate público tem alguns pilares fundamentais. Um deles é um problema que continua a ser socioeconómico. Pessoas com experiências de vida muito diferentes dificilmente terão referências comuns, a partir das quais se estabeleça um debate público que possa funcionar. Qualquer debate, tanto público como privado, implica que você tenha referências comuns. E é difícil estabelecer referências comuns entre pessoas miseráveis, vivendo em situação de falta de saneamento básico, sem alimentação digna, com a polícia invadindo os seus territórios e matando a população civil em operações desastradas. Como é que se espera que essas pessoas tenham as mesmas referências que pessoas de classe média alta, privilegiadas?

Num primeiro ponto, é preciso aproximar as condições materiais de existência da sociedade brasileira. Nesse sentido, só vejo caminhos dentro de um regime que tende mais à esquerda, pode até ter elementos de direita, inclusive na política económica, como teve o primeiro governo do Lula. O segundo ponto diz respeito às redes sociais: como é que a gente vai repensar isso, tanto no sentido de aumentar a consciência da sociedade para o seu funcionamento, como do ponto de vista da regulação? Regular as redes sociais toca exatamente no ponto sensível da divisão ideológica do Brasil neste momento. Para a direita, essa vontade soa como cerceamento da liberdade de expressão. Como é que se consegue um equilíbrio nessa regulação? Equilíbrio que faça com que as redes sociais sejam um instrumento a favor da democracia, mas sem com isso incorrer em violações à liberdade de expressão. É difícil e exigia um nível de sanidade que o Brasil não tem neste momento. Por último, já que o Brasil se tornou uma sociedade super participativa, há que melhorar a qualidade da formação das pessoas que participam no debate. O meu livro dá uma contribuição modesta. É preciso que as pessoas saibam do que estão a falar quando acusam as outras de neolibral, fascista, comunista, identitátio, etc. e tal. As palavras são os últimos instrumentos que temos para interpretar a realidade. Se as palavras estão apodrecidas na origem, a interpretação da realidade vai ser apodrecida também.

"O que não sabíamos? Que a força do antipetismo, talvez o fenómeno mais decisivo das eleições de 2018, continuava tão forte"

Ficou surpreendido com o resultado da primeira volta?

Fiquei. Considero que ninguém do chamado campo progressista ou campo da esquerda deixou de ficar surpreendido. Todo o mundo estava atordoado ao longo da apuração. Pela seguinte razão: o apuramento de votos revelou um grande facto que já sabíamos, que é a força do antibolsonarimo. A rejeição ao Bolsonaro é muito forte e está acoplada à votação super expressiva do Lula; o Lula esteve muito perto de vencer na primeira volta. Boa parte disso deve-se à força do antibolsonarismo, algo, como disse, que já sabíamos. O que não sabíamos? Que a força do antipetismo, talvez o fenómeno mais decisivo das eleições de 2018, continuava tão forte. Há vários indícios que permitem chegar a essa conclusão. O mais retumbante foi a votação para governo e para Senado em São Paulo, mas principalmente para o governo [Fernando Haddad, do PT, que as sondagens apontavam como favorito, ficou em segundo lugar, indo agora a uma segunda volta].

Mas a pior surpresa foi que a força do bolsonarismo continua enorme, e isso se revelou por toda o apuramento. Não apenas pela quantidade de votos muito maior do que os principais institutos de sondagem davam — Bolsonaro esteve 6-8 % à frente do que os principais institutos indicavam —, mas foi também capaz de eleger muitos dos seus ministros, principalmente como senadores. Isso mudou a cara institucional do parlamento brasileiro. O parlamento tinha uma composição maioritária de uma certa direita fisiológica, que aqui costumamos chamar de centrão, mas é uma direita sobretudo corporativista, que acaba por ser conservadora ideologicamente, mas o seu principal compromisso é a manutenção da sua fatia de poder no condomínio parlamentar. Isso mudou. Diria que na próxima composição, um terço da Câmara será bolsonarista, de direta radical, um terço de direita fisiológica, e outro terço de centro-esquerda. Houve uma mudança na composição por conta da força do bolsonarismo, que se revelou muito mais viva do que a opinião pública brasileira, que não é bolsonarista, foi capaz de detetar.

Isso para nós foi um choque. Aconteceu em 2018, mas em 2018 todos nos sentimos despreparados para enfrentar uma nova experiência social brasileira com os instrumentos que tínhamos. Tivemos quatro anos para adequar os instrumentos e, de repente, somos surpreendidos com um fenómeno muito semelhante, quatro anos depois.

Debate entre os dois candidatos, Lula da Silva e Jair Bolsonaro, a 16 de outubro de 2022 | NELSON ALMEIDA / AFP

O resultado de Lula ficou dentro da margem de erro dos vários institutos de sondagens. O que é que falhou na leitura do eleitorado de Bolsonaro?

Os principais institutos têm argumentado que não foi exatamente uma falha metodológica. Um cientista político importante aqui no Brasil, chamado António Lavareda, escreveu aquilo que considero a melhor análise sobre essa discrepância entre o que as sondagens apontavam e o efetivo resultado do apuramento de votos. Ele argumenta que ele mesmo tem sido um crítico histórico de uma tendência que se foi consolidando de uma certa cumplicidade entre os institutos de sondagens e a imprensa, e que é o de transformar as sondagens, já na reta final da campanha, numa segunda sondagem que mostra apenas os votos válidos. Então, há a sondagem dos votos totais e, mais para o final da campanha, os institutos de sondagens e a imprensa vão dando só os votos válidos. Lavareda argumenta que isso é um erro. Porque votos válidos ignoram todo um conjunto que acaba por ser decisivo, que é o conjunto da abstenção. Na primeira volta, a abstenção foi de 20,91% [o valor mais alto desde 1998, 21,5% à data]. Esse valor tem impacto de uma maneira muito forte no resultado da eleição. No Brasil, onde o voto é obrigatório, a abstenção abrange sobretudo eleitores de baixa renda, que são a maioria dos eleitores do Lula. Isso não interferiu nas projeções do Lula, mas uma abstenção muito baixa seria certamente suficiente para este vencer na primeira volta.

O que todos os analistas dos institutos de sondagens, não só o Lavareda, respondem pelo erro em relação ao Bolsonaro... É que as sondagens não têm como medir as mudanças de última hora, dos indecisos... De novo, as sondagens totais medem os indecisos, as pesquisas de votos válidos obliteram os indecisos. E os indecisos estavam na casa dos dois dígitos. A grande maioria dos indecisos acabou, à última hora, por virar para o Bolsonaro, muito provavelmente pela força do antipetismo. Não pelo bolsonarismo. Se fossem bolsonaristas não seriam indecisos, estariam com Bolsonaro desde o início. São indecisos que na última hora se revelaram ainda muito fortemente antipetistas. Em qualquer final de campanha, há uma margem de volatilidade grande, que é quando os indecisos se definem. Nesta eleição, a distribuição dos indecisos foi para o Bolsonaro... pela força do antipetismo. E isso nos surpreendeu.

"O momento da segunda volta é de Bolsonaro. Ele saiu moralmente fortalecido na primeira volta."

Este resultado, que Bolsonaro atribuiu a uma derrota do Datafolha (versus o que chamava de Datapovo), dá-lhe mais força para a segunda volta?

Sim, sem dúvida alguma, o momento da segunda volta é de Bolsonaro. Ele saiu moralmente fortalecido na primeira volta. Esperava-se uma votação nos seus aliados muito menor... Quando digo esperava-se, refiro-me a quem não é bolsonarista. No mundo bolsonarista, um mundo paralelo...

Existem dois mundos muito diferentes. Num mundo bolsonarista, a principal leitura é a de que Bolsonaro não ganhou numa primeira volta por conta de fraude nas eleições. Eles estão fortalecidos, mas ainda com um sentimento de revolta. Consideram-se enganados. Moralmente, Bolsonaro está fortalecido pela sua votação pessoal e pela sua vitória muito expressiva no Senado e na Câmara. Alguns cientistas políticos estão observando que, numericamente, a composição do Parlamento não mudou muito. A esquerda não perdeu muito, até conseguiu um pouco mais de cargos do que na legislatura anterior, mas se olharmos qualitativamente, a direita mudou de figura. O Partido Liberal, o partido de Bolsonaro, é o partido com a maior bancada desde 1998. Quantitativamente não mudou, mas qualitativamente a composição da direita no Parlamento brasileiro mudou no sentido de uma direita mais radical, bolsonarista.

"Se o Bolsonaro ganhar, as urnas valeram, valeram o suficiente, foram fraudadas, mas não o suficiente. Se o Bolsonaro perder foi fraude."

Como é que o argumento da fraude continua a ser um argumento, isto quando foi exatamente por esse sistema que Bolsonaro foi eleito em 2018 e que, na primeira volta destas eleições, elegeu os seus aliados para os diversos cargos? O sistema é fraudulento, mas elege os seus candidatos?

A sua pergunta e o tom de perplexidade que existe nela toca no centro sensível do bolsonarismo. O bolsonarismo inaugurou uma outra lógica, e é isso que me faz dizer que o Brasil está em estado de guerra civil fria. Não é menos do que isso... Nós já não temos quase nenhum ponto em comum que nos permita chegar a interpretações da realidade que sejam também comuns. Podem ser profundamente diferentes e, todavia, amparadas pelas mesmas referências. Mas nós perdemos as referências comuns que deveriam servir como orientação da interpretação da realidade. Entre elas a ciência, que não poderia ser questionável. A ciência é, pelo menos teoricamente, o discurso sem sujeito, sem imaginário, objetivo. Cujo método consiste em esvaziar completamente a dimensão do sujeito. Mas a ciência foi ideologizada, foi tragada para dentro do discurso político. Nesse sentido, também as urnas eleitorais.

As urnas eleitorais [eletrónicas] são um método científico que tenta produzir um procedimento que leve o risco de fraude ao mínimo possível. Esse pensamento não é mais respeitado, é submetido à perspetiva ultra-ideológica do bolsonarismo. E é nessa perspetiva que temos de entender a sua pergunta. Dentro dessa perspetiva, as contradições não têm o mesmo valor que têm desde a Grécia Antiga. O que orienta o pensamento do bolsonarismo é o compromisso ideológico de grupo. Toda a contradição é anulada em favor do compromisso ideológico de grupo. Dentro do mundo bolsonarista essa contradição que você apontou simplesmente não existe, não é colocada. O que interessa é o compromisso com a eleição do Bolsonaro. No limite, se o Bolsonaro ganhar, as urnas valeram, valeram o suficiente, foram fraudadas, mas não o suficiente. Se o Bolsonaro perder foi fraude.

A chamada terceira via acabou com um duelo entre Simone Tebet e Ciro Gomes, com resultados bem diferentes. Como é que os analisa?

Essa carece de uma resposta mais completa, que envolve várias dimensões. A chamada terceira via, no Brasil, foi sempre uma espécie de farsa. Por um lado, ela tentava dar voz a um descontentamento legítimo em relação às duas candidaturas principais. Mas tem uma premissa de fundo que é farsesca, a premissa de que Bolsonaro e Lula são duas forças de natureza equivalentes do ponto de vista democrático. E que a terceira via seria uma terceira via precisamente em relação a uma simetria entre Bolsonaro e Lula. Lula governou democraticamente, sob todos os aspetos. Bom, à exceção da corrupção colossal que houve no seu governo. De resto, todo o governo Lula foi um governo democrático. Todo o governo Bolsonaro foi um governo de chantagem permanente às instituições democráticas.

"Ciro Gomes conseguiu fortalecer tanto o bolsonarismo quanto o antipetismo."

Segundo ponto. Tebet e Ciro são figuras diferentes porque Ciro Gomes nunca foi propriamente um candidato de terceira via, na medida em que sempre foi um candidato de esquerda e, do ponto de vista da política económica, até mais à esquerda do que o Lula. Do ponto de vista de uma certa aspiração transformadora do país, de uma reivindicação de uma soberania radical do país, a candidatura do Ciro é mais utópica do que a do Lula. Esse terá sido o grande problema do Ciro Gomes desde o início. Ele nunca teve espaço nesta eleição porque a esquerda brasileira, a nível nacional, é completamente homogeneizada pelo PT. Nesta eleição estava muito claro desde o início que não havia alternativa. O Ciro Gomes insistiu na sua candidatura e essa insistência levou-o a tentar achar um espaço, que nunca houve, ao mesmo tempo que tentava angariar votos da direita e da esquerda. O que fez com que ele atacasse muito o Lula, para tentar pegar os votos da direita que se identificassem com essas críticas, e a atacar muito o Bolsonaro, para tentar pegar os votos da esquerda. O Ciro Gomes nunca teve chance, e ele é um sujeito suficientemente inteligente para saber isso, mas, no meu entender, com um narcisismo quase sem paralelo na vida social brasileira. Ciro Gomes, que tem ressentimentos em relação ao PT, especialmente em relação ao Lula, acabou por se tornar numa figura pública que em vez de contribuir para o processo social brasileiro, contribuiu para a sua degradação. Tenho para mim que conseguiu, de uma tacada só, fortalecer tanto o bolsonarismo quanto o antipetismo. E digo isso com muita tristeza, porque é uma figura pública que tem uma contribuição enorme a dar.

E sobre a Simone?

Quanto à Simone Tebet, essa sim é a expressão dos desejos daqueles descontentes que queriam uma terceira via. A Simone, de facto, fez uma campanha que expressou bem o que seria a posição de uma terceira via, e ela saiu maior do que entrou. Agora resta saber a capacidade de transferência de voto que tem. Porque ao contrário do que acontece com Lula e Bolsonaro, não existe um Tebetismo. Existe um Lulismo e existe um Bolsonarismo. Ou seja, existem movimentos eleitorais e sociais focados na figura concreta desses candidatos. Não existe um Tebetismo, existe uma força social de descontentamento com os outros dois candidatos e que procurou um candidato que pudesse fazer convergir para si esse descontentamento. Acabou por ser a Simone Tebet a fazer muito bem esse papel. Receio que a maior parte dos votos da Simone seja anulado, mesmo ela declarando apoio ao Lula.

"Se a democracia brasileira não for radicalmente aprofundada, ela vai estar sempre sujeita a crises periódicas e a eleger um novo Bolsonaro, que pode até ser um dos filhos dele."

E os votos em Ciro Gomes serão transferidos para quem?

Há uma maior possibilidade de transferência dos votos do Ciro para o Lula. É difícil imaginar que os três por cento do Ciro vão todos para o Lula, mas, sem dúvida alguma, o seu apoio é muito importante. O apoio da Simone também é, mas pelas razões que já dei, sou mais cético.

Falava, numa resposta a outra pergunta, num "nível de sanidade que o Brasil não tem neste momento". Independente de quem ganhe, o próximo presidente governará para uma expressiva faixa da população que não votou em si. Como serão os próximos quatro anos?

Estive entre os que, nos primeiros anos do governo de Bolsonaro, desejei muito que não fosse o Lula o candidato a derrotá-lo. Veja, eu gosto muito do Lula como figura política; considero-o um social-liberal, mas a militância petista considera-o aquilo que ele era nos anos 70. Você caminha na cidade e vê muita gente com bandeiras e camisas com o rosto do Lula nos anos 70. Isso é um autoengano, é uma mitificação. Eu, por exemplo, não fui votar de vermelho, fui votar de rosa [ri-se]. Entretanto, há uma outra parte da população que vê o Lula como um ladrão. É praticamente impossível desfazer esse problema. Converse com um bolsonarista... Quando chega nesse lugar, não adianta o que você vai falar, é ladrão. Se o Lula for eleito, a divisão social continua. Não só porque os bolsonaristas o consideram ladrão, mas também porque vivem nesse delírio de que eleição foi alvo de fraude, como uma cópia da estratégia dos republicanos trumpistas nos EUA.

Lula tem de ser um líder consciente do seu papel de conciliador cultural. Tem de governar para todos, não pode entrar numa de fazer o que o Bolsonaro faz, governando para os seus. Isso talvez diminua a temperatura. A outra coisa é esperar que a situação socioeconómica do Brasil volte a caminhar num sentido de promoção das igualdades, de maiores direitos. Porque isso aproxima as pessoas e desinflama a sociedade brasileira. Mas tenho baixas expectativas para um governo de Lula. Na melhor das hipóteses será um governo de transição que pode voltar a colocar o Brasil num caminho democrático e, aos poucos, ir consolidado a democracia brasileira. Se a democracia brasileira não for radicalmente aprofundada, ela vai estar sempre sujeita a crises periódicas e a eleger um novo Bolsonaro, que pode até ser um dos filhos dele.