Queria ser médico-cirurgião, engenheiro naval ou advogado. A influência do avô acabaria por ser decisiva e optou pela advocacia, onde se especializou em Direito do Trabalho. Um livro de fotografias de Sebastião Salgado e as "salas dos queimados", como eram chamadas as divisões para onde eram mandados os bancários vindos do Ultramar, foram definitivos no interesse de António Garcia Pereira pelas questões laborais.

Aos nove anos a mãe levou-o ao Aljube a visitar um tio preso pela polícia do regime. Nem o reconheceu e quando ouviu a sua voz não se conteve. A mãe, uma senhora magra e de estatura pequena, meteu-lhe a mão no braço, apontou para o "pide" e disse: "Meu filho, em frente de gente desta não se chora". Nunca mais se esqueceu.

O choque com a PIDE - Polícia Internacional e de Defesa do Estado, regressaria anos mais tarde. Garcia Pereira estava lá quando um dos "gorilas" disparou à queima-roupa e matou Ribeiro Santos, aluno imortalizado no Quelhas. Fazia parte do movimento estudantil da Faculdade de Direito de Lisboa e foram muitas as vezes que se viu obrigado a fugir - ainda hoje está para saber quem foi a família que, no meio de uma perseguição num bairro de lata, lhe deitou a mão e o enfiou dentro casa até ser seguro sair.

As técnicas de fuga serviram também para, já mais recentemente, os Garcia Pereira, pai e filha, se desembaraçarem de algumas situações de aperto. Por estas e por outras costuma dizer que exerce DTQE, Direito do Trabalho e Questões Esquisitas. Uma delas foi o caso das ofertas dos laboratórios de indústria farmacêutica a médicos; chegou a ter uma câmara de filmar à porta e a receber a informação de que um indivíduo dos serviços secretos guineenses tinha a missão de abater dois alvos, um deles na morada do seu escritório.

E foi aí, no seu escritório na Avenida Miguel Bombarda, que decorreu a conversa, na manhã seguinte à entrevista do primeiro-ministro à RTP1. Falámos na sala "o nome da rosa", assim batizada por ser fácil entrar, mas difícil sair, rodeados de réplicas de barcos e da Enciclopédia Luso-Brasileira que foi do pai e agora é sua, tal como as cadernetas escolares onde avaliava os alunos do Liceu Pedro Nunes, como o atual presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

António Garcia Pereira recorda 47 anos de profissão, dois deles como estagiário, e fala de casos atuais, como a TAP, e mais antigos também. Uma entrevista em que revela os intrincados meandros da Justiça e como as coisas ficam impunes em Portugal, mesmo quando há culpados.

"[O avô] Tinha uma lancha tradicional no Porto Santo, a Pirata, e tinha por hábito pôr-nos nas mãos o leme da embarcação aos cinco anos"

De onde vem a sua paixão por barcos?

Do meu avô materno. O meu avô materno era natural do Porto Santo, advogado, foi dirigente do Partido Republicano e o penúltimo ministro das Finanças antes de Salazar. Foi um dos líderes da chamada Revolta da Madeira, esteve preso, foi deportado, primeiro para o Açores, depois para o Sal, em Cabo Verde, e depois para Porto Santo, que na altura era um deserto completo.

Era daqueles republicanos de cultura universal, dava explicações de Matemática, foi com ele que aprendi os senos e cossenos. Percebia de agricultura e percebia muito de mar, tinha uma lancha tradicional no Porto Santo, a Pirata, e tinha por hábito pôr-nos nas mãos o leme da embarcação aos cinco anos, para nos ensinar a conduzir. E é daí que vem o gosto, tenho bastante água salgada nas veias. O meu avô foi uma figura que me influenciou muito, até pelo espírito humanista, universal, enfim, também com humor.

Lembra-se de alguma história a propósito desse humor?

Numa altura em que estava proibido de sair do Porto Santo foi a um comício de uma das campanhas da oposição - julgo que não foi a de Humberto Delgado... Mas foi numa sala no Funchal, estava a abarrotar, mas também estava cheia de "pides", legionários, bufos. E quando o meu avô, que era aliás um orador notável, segundo contam, vai começar a falar, um "pide" pergunta-lhe: "Xôtor Pestana Júnior" - chamava-se Manuel -, "quem é que o autorizou a estar aqui?" E o meu avô responde: "Foi Dona Ângela" - que era a minha avó [ri]. O recinto veio abaixo, claro.

Qual foi o seu ato mais revolucionário até hoje, consegue dizer?

Não sei dizer assim. Acho que é mais uma prática, uma conduta, do que propriamente um ato. O meu tio, irmão da minha mãe, era o capitão Pestana, um dos oficiais implicados no assalto ao quartel de Beja. Foi preso e torturado com a tortura do sono - os presos civis, como Manuel Serra [que liderou o assalto ao quartel de Beja], foram barbaramente torturados, violência física, mas aos oficiais do quadro a PIDE aplicou a tortura do sono. E o meu tio teve uma série de sessões de tortura do sono e só ao fim de um mês de estar preso foram autorizadas as primeiras visitas.

Ele estava nos curros do Aljube e a minha mãe tomou a decisão, na altura polémica na família, de me levar, não sei se à primeira, mas a uma das primeiras visitas. O Aljube, que é hoje um museu - e ainda bem, era uma prisão pesadíssima, um edifício muito escuro, com paredes grossíssimas, umas luzes muito fraquinhas lá em cima, o pé-direito altíssimo, grades por todos os lados -, tinha uma fiada de grades atrás das visitas, uma fiada de grades à frente, um intervalo onde estava um PIDE sentado para ouvir o que era dito, outra fiada de grades para onde entrava o preso.

Quando o meu tio entrou não o reconheci. Vinha com os olhos completamente fora das órbitas, raiados de sangue, com a cara arrepelada, até me pareceu apanhada de um dos lados, e vinha a calcar os sapatos, que não lhe cabiam. Ao princípio não o reconheci. E é ele que toma a iniciativa de dizer: "Ó Toni, então, como estás, como vai a escola?" Quando oiço a voz do meu tio percebi quem era e comecei a choramingar. E a minha mãe, que era uma senhora que pesava 45 quilos e devia medir 1,55 m, mete-me a mão no braço, aponta o "pide" e diz: "Meu filho, em frente de gente desta não se chora". Nunca mais me esqueci disto.

O "pide" ficou fulo, mas a minha mãe era exatamente assim. É uma lição que me ficou para o resto da vida. Depois acompanhei a minha mãe em 69, quando foram as eleições na CEUD [Comissão Eleitoral de Unidade Democrática], a minha mãe tinha uma relação muito próxima com o Dr. Mário Soares e com a Dra. Maria de Jesus, porque o Dr. Mário Soares foi o advogado do meu tio no julgamento dos implicados no assalto ao quartel de Beja.

Depois, o grande momento foi ter assistido ao assassinato do Ribeiro Santos, em Económicas, na tarde de 12 de Outubro de 1972, por um "pide"que nunca foi julgado.

créditos: Tomás Carranca | MadreMedia

Recorda-se bem desse dia, pode contar como tudo aconteceu?

Na altura, a juventude, em particular a juventude estudantil, estava a assumir um papel muito importante de luta contra a Guerra Colonial e contra o fascismo, e havia inúmeros estudantes presos e torturados, nessa altura já em Caxias, e muitos suspensos disciplinarmente - a suspensão significava ficar um ano ou mais fora da universidade e, automaticamente, ir para a guerra como castigo (porque quem estava no ensino superior estava em adiamento de incorporação, mas já tinha feito a inspeção). Era um período de grande repressão.

Tinham aparecido os gorilas de Veiga Simão [ministro da Educação Nacional], mais tarde recauchutado de democrata, mas a verdade é que é ele quem mete nas universidades bandos de indivíduos contratados como vigilantes e que eram ex-militares das tropas especiais - pára-quedistas, comandos -, cuja função era vigiar, perseguir e espancar (a nossa diplomata Ana Gomes foi barbaramente espancada pelos gorilas, alguns deles agentes da PIDE, como a ex-procuradora Aurora Rodrigues, presa no interior da Faculdade de Direito por um indivíduo chamado Vitor Manuel dos Anjos Assunção, que puxou de um cartão da PIDE para a prender porque a apanhou com propaganda clandestina contra a Guerra Colonial).

E hoje revoltamo-nos com o que se passa no Irão, as prisões e violência contra alunos presos pela polícia de orientação dentro das universidades...

Exatamente. E estes indivíduos safaram-se todos. Mas, nessa altura, foi convocado um meeting contra a repressão em Económicas [Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, atual ISEG]. Pouco antes de começar a reunião, detetámos um indivíduo um pouco mais velho do que a média e que andava a tomar apontamentos dos cartazes colocados nas paredes e que tinham os nomes dos estudantes presos. Deitámos-lhe a mão, ele disse que era de Agronomia, chamamos uns colegas de Agronomia que lhe fizeram duas ou três perguntas sobre cadeiras e professores, e percebeu-se logo que não era, era um bufo que ali estava.

Foi imobilizado e foi-lhe metido um saco na cabeça para não conseguir identificar as pessoas, e começou-se a discutir o que fazer com o indivíduo. Quando se está nesta discussão, de repente e para nosso espanto, entra por uma das portas laterais do anfiteatro o secretário do instituto, dois indivíduos da Associação de Estudantes de Económicas e dois indivíduos com um ar patibular, que, percebemos logo, eram "pides" - e, como se percebeu pelo que aconteceu depois, vinham de armas engatilhadas prontas a disparar.

Quando entram por ali adentro, supostamente para virem dizer se o "pide" era "pide" ou não, aquilo suscitou um momento de revolta e nós atirámo-nos a eles. O primeiro foi dominado imediatamente, o segundo está à beira de ser dominado quando, de repente, umas vozes gritam "calma, calma". Há um momento de hesitação e é o tempo para ele meter a mão dentro do casaco, rapar de uma pistola, apontar ao peito do Ribeiro Santos: trás, trás, dois tiros. Logo após ter disparado o segundo tiro, o José Lamego, estudante de Direito como eu, atirou-se ao "pide" e agarrou-lhe o braço - e ele foi disparando sempre, não matou mais gente porque não calhou. Até que consegue virar a arma para baixo e dá um tiro que perfura a coxa do José Lamego.

Na altura não percebia nada disso, mas mais tarde fiquei a saber que era uma arma de calibre de guerra, das forças policiais, que tem uma grande força de impacto. O Lamego fraquejou, foi meio ao chão, e o "pide" aponta-lhe a arma à cabeça e... trás. Mas bate em seco, porque já não tinha balas.

"Nunca agradeci àquelas pessoas que não conhecia de parte nenhuma"

Que impacto teve esse dia na sua vida?

Foi para mim um salto qualitativo na minha atividade. Eu já participava em manifestações contra a Guerra Colonial, já fazia parte do movimento estudantil de Direito, mas o grande salto foi, de facto, na sequência disso. Até porque nos dias seguintes tivemos a perceção de que o regime se aguentava na base da repressão bruta, mas tinha os dias contados. Aquilo foi numa quinta-feira à tarde, na sexta-feira virámos Lisboa do avesso.

Lembro-me perfeitamente que uma das coisas que fazíamos era tirar os trollies dos elétricos, que ficavam sem corrente, paravam e embatucavam o trânsito todo. E era a forma de impedir que a polícia chegasse rapidamente a nós. Mas o tempo que os guarda-freios da Carris levavam a sair do sítio, a descer do elétrico, a gente sentia perfeitamente que era uma forma de cumplicidade não assumida. E a reação da população era uma reação de indignação brutal.

No sábado - na altura morava na Avenida de Roma, em casa dos meus pais -, o funeral saía de casa dele, no largo que hoje tem o seu nome, Largo Ribeiro Santos. Lembro-me que apanhei o autocarro 27 aí na segunda ou terceira paragem, estavam três ou quatro pessoas lá dentro. À medida que o autocarro foi fazendo a viagem, foi enchendo, enchendo - não conhecia ninguém, mas conhecíamo-nos todos, percebíamos ao que íamos. E tornou-se claro, quando chegámos à paragem mais próxima e saiu toda a gente.

Há uma mágoa que sinto até hoje, porque depois houve a tentativa de levar o caixão às costas, pessoas como o João Soares, o Galamba de Oliveira e outros, e lembro-me de os ver matraqueados pela polícia de choque para lhes arrancar o caixão das mãos - que meteram num outro carro funerário, arranjado pela PIDE, e levaram para o Cemitério da Ajuda. E houve ali uma batalha campal, eles largaram os cães e perseguiram pessoas pela Rocha Conde de Óbidos até quase ao Cais do Sodré. Estavam milhares de pessoas, apesar de o governo ter feito na véspera o habitual comunicado a dizer "a ordem pública será mantida", e havia aquelas manobras intimidatórias, "n" carrinhas da polícia de choque e a seguir ambulâncias, como quem diz, isto vai dar sangue.

No cemitério, que estava cercado militarmente, tentámos passar, e a polícia fez não sei quantas cargas, uma delas muito violenta. Subi um talude e enfiei-me por um bairro de lata. De repente, umas pessoas das barracas agarram em mim, metem-me lá dentro e fecham a porta. Fiquei ali um bocado, até que a polícia retirou. Quando pude e me lembrei de ir agradecer àquela família, obviamente depois do 25 de Abril, infelizmente aquilo [bairro de lata] já tinha desaparecido. Nunca agradeci àquelas pessoas que não conhecia de parte nenhuma.

Era habitual as pessoas de fora ajudarem?

Lembro-me de outra vez, entre a Cidade Universitária e o hipódromo, fomos distribuir propaganda nesse bairro e, de repente, apareceu uma pessoa a dizer "saiam, saiam, saiam", e eu fui ter junto à 2.ª Circular, nem sei como, porque naquela zona morava um indivíduo da PIDE e as pessoas aperceberam-se de que nos tinha ido denunciar para nos apanhar ali dentro. Conclusão, o regime pagou muito caro aquele crime, a partir daí foi sempre a descer. Mas a escolha do campo já estava feita no dia em que vi o meu tio no Aljube.

Aliás, antes disso, porque conhecia a história do meu avô, que tinha passado uma situação difícil, sobretudo quando esteve deportado, e a minha avó, que era uma pessoa de origem social elevada, filha de boas famílias, como se dizia na altura, teve de fazer rendas e outras coisas para ajudar no sustento da casa. E nunca quebraram nas respetivas ideias. Depois o meu tio passou cinco anos e meio nas prisões do fascismo. E também não esqueço a noite em que ele sai - o regime só libertava o preso à meia-noite do último dia -, fomos para a frente da prisão-hospital São João de Deus, onde ele estava, e quando sai vemos luzes a piscar por todo o edifício, a saudar a sua libertação, uma coisa impressionante.

Falta um objetivo a esta geração, parece-lhe mais acomodada?

Acho que são pressionados e formatados para serem mais mornos. Mas não são mais mornos de raiz. E devo dizer que sempre que apelei à capacidade de reflexão crítica, aos sentimentos mais nobres, digamos - e dei aulas até dezembro passado, porque embora tenha completado 70 anos o instituto pediu-me para acabar o semestre -, tive sempre uma resposta positiva. Aquilo que, sinceramente, me preocupa é o apagamento da história e a ausência de memória e conhecimento sobre coisas básicas.

"Chegam ao primeiro ano da universidade sem nunca terem tido estas memórias, e um povo sem memória é um povo sem futuro"

Por exemplo?

Vou dar um exemplo comezinho, a história dos telemóveis: disse aos alunos que não me opunha a que tivessem os telemóveis nas aulas, também tenho o meu, desde que no silêncio e apenas para casos de emergência. Se querem jogar, vão lá para fora, é uma questão de respeito mútuo. A regra foi tranquilamente aceite. Mas, num dos dias, "ti-ti-ti, ti-ti-ti". "O que é isto?" O aluno cujo telefone tocou fica muito atrapalhado, explica que se esqueceu de colocar o telefone no silêncio. Tudo bem, às vezes também me esqueço. Mas o que perguntei foi o que é o sinal que ouviram. "É um sinal de mensagem". "Sim, mas o que significa? Não viram o Titanic, como pediu socorro? Morse, sabem o que é? Sabem o que quer dizer SOS?" A partir daqui gerou-se uma discussão sobre os direitos e deveres essenciais e o que nos distingue dos outros animais. No final, um grupo quis falar comigo - são alunos do primeiro ano: "O professor falou-nos de coisas de que nunca tínhamos ouvido falar".

Chego à primeira aula e, além de outras coisas, conto-lhes o que era a minha vida com a idade deles, o que era a Faculdade de Direito. Vejo na cara deles que até lhes custa acreditar. "Já subiram as escadas do edifício velho do Quelhas?" Normalmente, não, "Nunca repararam que há um pequeno memorial lá em cima? Sabem o que é?" E conto-lhes. Ficam estarrecidos, nunca ninguém lhes disse. "E, já agora, digo-vos: o assassino chama-se António Joaquim Gomes da Rocha, safou-se impune". Chegam ao primeiro ano da universidade sem nunca terem tido estas memórias, e um povo sem memória é um povo sem futuro.

"A profissão de professor nos vários graus de ensino tem sido muito desvalorizada"

O seu pai era professor, foi professor de Marcelo Rebelo de Sousa. Herdou as cadernetas dos alunos, que apontamentos tinha sobre o atual presidente da República?

Escrevia, por exemplo, "aluno sempre atento", "excelente aluno", "teste de grande qualidade". Eram observações breves, até porque as cadernetas eram pequeninas. O meu pai guardava-as todas e, quando faleceu, falei com o meu irmão e fiquei com elas, porque acho que são um monumento, uma parte da memória do meu pai. Que, de facto, era a paixão pela educação em pessoa. Fazia anos a 13 de Junho, não havia a regra que há hoje de completar o semestre, e quebrou completamente assim que deixou de dar aulas, entrou numa tristeza profunda. O que é a vocação...

Também gosto muito de dar aulas, acho que a profissão de professor nos vários graus de ensino tem sido muito desvalorizada, nos últimos tempos foi muito burocratizada, passamos a vida a fazer relatórios para as mais diferentes entidades e é mais a carga burocrática. Felizmente, na minha universidade a liberdade de conteúdos é um valor que o ISEG assume para si, portanto, nunca ninguém procurou interferir naquilo que eu entendia que devia ser dado, por exemplo, na área do Direito do Trabalho ou em qualquer outra disciplina. As dificuldades que foram surgindo não conseguiram matar a paixão que sinto pela educação, como também pela advocacia. Mas devo dizer que a advocacia é um sentimento muito agridoce neste momento.

créditos: Tomás Carranca | MadreMedia

Por que motivo, o que mudou?

Lembro-me do bastonário António Pires de Lima, uma experiência muito interessante na minha vida. Era um homem reconhecidamente conservador, de direita, católico, apostólico e romano. Mas foi o responsável por eu ser convidado a integrar o conselho geral da Ordem. E mais, na primeira reunião do conselho geral propôs, e foi aprovado por unanimidade, que eu fosse presidente da comissão de direitos humanos. O que, mais tarde, originaria o comentário por parte dos membros do governo do PS: "Quem é que escolheu o gajo?" Ao que o Dr. Pires de Lima respondeu: "O gajo foi eleito por unanimidade pelo conselho geral, por proposta minha". "Então, no governo vamos ter muitos problemas com a comissão de direitos humanos da Ordem". Ao que Pires de Lima responde, com o seu ar plácido de sempre, "se calhar é por isso que foi escolhido por unanimidade".

Foi uma experiência notável, porque a primeira coisa que me disse foi que quem representava institucionalmente a Ordem era o conselho geral e, em particular, o seu bastonário. Mas, em matéria de direitos humanos, a comissão devia fazer tudo aquilo que em sua consciência entendesse, e contaria sempre com o apoio do bastonário. E tive várias ocasiões, algumas delas bem complicadas, em que essa posição foi assumida. Era de uma grandeza moral que põe a um canto muito democrata de última hora.

"Foi montado um processo visando o assassinato cívico, profissional e social do Dr. Fernando Negrão"

A que ocasiões complicadas se refere, pode contar?

Enfim... Uma delas era uma senhora que tinha sido ameaçada por andar envolvida com um alto magistrado do Ministério Público. Ele cortou [com a relação], dizia-se que por indicação da hierarquia, e ela não aceitou, foi ter com ele ao local de trabalho. Um belo dia apareceu-lhe uma viatura com dois indivíduos à paisana que andaram a passeá-la pela cidade de Lisboa e a ameaçaram que, se não tomasse juízo, ainda acabava a boiar no Tejo. A senhora foi à ordem pedir proteção.

Mas, para mim, ficará para sempre o processo dantesco de afastamento do Dr. Fernando Negrão da Polícia Judiciária. Acho que é uma daquelas histórias indescritíveis e inaceitáveis da justiça portuguesa. Aliás, é nessa altura que começa a ser desenhado e construído o modelo de Ministério Público que existe hoje, que é obra, sobretudo, do Dr. Cunha Rodrigues.

Foi montado um processo visando o assassinato cívico, profissional e social do Dr. Fernando Negrão. Não sou vingativo, mas tenho muito boa memória. Acho que estas coisas não podem suceder impunemente e que isto não tem nada a ver com uma sociedade democrática desenvolvida, avançada, baseada no respeito das pessoas. Bato-me sempre por isso.

E nisso, PS, PSD e CDS, sobretudo PS e PSD, são gravemente responsáveis. No caso concreto, devo dizer com toda a clareza que o Partido Socialista desempenhou um papel ao longo da história que é, sempre com falinhas mansas e justificações várias, aprovar medidas que, no momento em que há uma alteração política mais sensível, a direita e a extrema direita vão aproveitar. E nem sequer precisam de introduzir uma vírgula, aquilo serve às mil maravilhas para torpedear, sabotar e aniquilar os direitos das pessoas.

Mas quem abriu primeiro o terreno foram exatamente aqueles partidos que, dizendo-se amigos dos trabalhadores e dos cidadãos, conseguiram fazer aprovar medidas que se tivessem sido tentadas por partidos da direita, teriam suscitado muito maior reação. E isso é uma responsabilidade política a que os pê-ésses não podem fugir.

Quem foi para si o pior ministro da Justiça depois do 25 de Abril?

Acho que foram todos, sinceramente. Mas, deste ponto de vista, o Dr. António Costa foi seguramente um dos piores. Ainda por cima, como se vê, não tem nenhuma ponta de arrependimento, acha que fez muito: "Nós aprovámos medidas contra a corrupção", "nós" fizemos e acontecemos. Mas, a verdade é esta: a luta contra a corrupção tornou-se mais eficaz? E sempre a cedência relativamente à ideia de que o respeito pela autonomia do Ministério Público significa permitir que ele faça o que quer.

"É uma entrevista [de António Costa] de quem está simplesmente agarrado ao poder e a querer chegar ao fim dê lá por onde der"

Viu a entrevista do primeiro-ministro, António Costa, à RTP1? Em que pensava enquanto o ia ouvindo?

Vi. Acho que é uma tentativa mal sucedida de apagar a imagem profundamente negativa que aquela arrogante entrevista dada à Visão, do "Habituem-se!", tinha provocado. Os cultores da imagem do primeiro-ministro devem tê-lo aconselhado a dar rapidamente uma entrevista em que aparecesse com um ar dialogante, com uma postura que ele não tem.

A entrevista demonstrou a contradição e a completa falta de à vontade com as questões do envolvimento de membros do governo em casos judiciais em curso. A contradição, quanto a mim evidente, da posição do "à justiça o que é da justiça, à política o que é da política", aplicada nuns casos e noutros não. Além de que não concordo com esta frase.

Já lá iremos...

Mas não trouxe uma única ideia nova, mesmo quando abordou temas concretos como o da habitação; espreme-se aquela entrevista e, afinal, o que vai o governo fazer relativamente a uma crise habitacional que já está aí, mas que se vai agravar substancialmente com o aumento dos despejos e a subida dos preços e das rendas das habitações? Não sai uma única ideia. É uma entrevista de quem está simplesmente agarrado ao poder e a querer chegar ao fim dê lá por onde der.

"Aquele questionário [36 perguntas] não vale nada do ponto de vista jurídico"

Sobre os casos judiciais que envolvem membros do governo, o questionário de 36 perguntas a que os futuros governantes terão de responder tem mais valor legal do que o juramento que prestam perante o presidente da República e o país?

Aquele questionário foi mais uma manobra para tentar conferir um tom de seriedade e de honestidade ao governo depois dos sucessivos escândalos que o tem atingido. Porque a verdade é que aquilo é essencialmente uma questão ética e não uma questão jurídica, entendamo-nos. E quando alguém é escolhido para um cargo público sabe que o exercício desse cargo implica exigências de rigor, de transparência, de seriedade e de sujeição ao escrutínio público, que são completamente incompatíveis com o envolvimento em situações obscuras ou mentiras.

Tem toda a razão quando coloca a questão, porque o que simboliza que a pessoa se considera à altura de desempenhar um cargo público é exatamente o juramento, que não deveria ser mero verbo de encher, é um compromisso político e ético, perante quem está a dar posse e a comunidade em geral, de que reúne condições para o exercício do cargo. Aquele questionário não vale nada do ponto de vista jurídico, não vale nada do ponto de vista político e ético e é uma manobra para fazer de conta que agora se será mais rigoroso na escolha dos membros dos cargos públicos, nomeadamente governamentais.

"Os partidos da área do poder consideram os cargos públicos coisa sua e uma espécie de prenda a distribuir livremente pelas clientelas ou grupos de influência"

Cada vez que há um problema no governo - como o chamado familygate ou agora os casos judiciais -, cria-se um diploma: a "lei dos primos", o questionário... Faz sentido?

Manobras de diversão. Se há coisa que caracteriza António Costa é uma enorme capacidade de manipular e intoxicar a opinião pública - terá as suas agências de comunicação a funcionar e sabe-se como isso atua, aparece sempre uma manobra de diversão ou o lançamento de um novo tema que desvia as atenções. E isso não é exclusivo do PS, tenho sempre dito que muitas das coisas que se passam nos cargos públicos, e estou a abranger não apenas cargos governamentais, mas também quadros superiores da administração pública ou quadros de empresas públicas.

Os fenómenos de corrupção que têm vindo a ser conhecidos, decorrem de uma posição política dos partidos da área do poder, sozinhos ou coligados, que consideram esses cargos coisa sua e uma espécie de prenda a distribuir livremente pelas clientelas ou grupos de influência. As pessoas são escolhidas não em função da sua competência técnica e da sua idoneidade, mas em função da sua filiação partidária ou da sua ligação feudal de lealdade.

Aquilo a que temos assistido nestas últimas décadas é à sucessão dessas questões, sem que nunca se discuta o fundo do problema. Quando surge um caso, em vez de nos interrogarmos como é possível - uma pessoa que tem este tipo de questões ou as guardou muito ciosamente, e então atua com um elevadíssimo grau de dolo, de intencionalidade, e deve ser imediatamente demitida, não pelos factos em si, mas por essa postura, ou então já se sabia da história. O caso do pavilhão multiusos e dos 300 mil euros é um exemplo típico de como se sustenta uma pessoa até à última.

António Garcia Pereira
Entrevista de António Garcia Pereira com Isabel Tavares. 15 de Fevereiro de 2023 créditos: Tomás Carranca | MadreMedia
"É uma fase durante a qual vamos assistir a este espetáculo absolutamente dantesco das violações, sempre cirúrgicas e sempre impunes, do segredo de justiça, com o assassinato na praça pública"

Há aqui duas questões que gostaria de colocar, uma é a da presunção da inocência, outra a das fugas de informação.

Sou muito fiel ao princípio da presunção da inocência. E sou contra uma lógica que também se instalou entre nós - uma vez mais, muito por culpa do PS, que foi quem aprovou as principais medidas e alterações que construíram o processo penal que temos hoje: uma fase inicial de inquérito em que há uma entidade, que é o Ministério Público (que não é um tribunal, e é preciso sublinhar este não), que é dono do processo criminal na sua fase inicial e que faz o que quer nessa fase. Não há um efetivo controlo, quer daquilo que faz, quer daquilo que não faz - isto é, o escândalo das investigações que levam 12 anos para depois terminarem em arquivamentos.

É uma fase durante a qual vamos assistir a este espetáculo absolutamente dantesco das violações, sempre cirúrgicas e sempre impunes, do segredo de justiça, com o assassinato na praça pública e a destruição da vida pessoal, social, profissional, familiar e política de pessoas, inclusivamente de pessoas que vêm a ser absolvidas sem margem para dúvidas.

Sinto-me completamente à vontade para falar sobre isso, porque sempre tomei posição contra este tipo de práticas, que fazem lembrar o célebre poema (muitas vezes erradamente atribuído a Brecht, mas que é de um pastor protestante e militante anti-nazi, Martin Niemöller): "Primeiro levaram os negros/ Mas não me importei com isso / Eu não era negro [...]" ["Agora vieram buscar-me/Mas já é tarde/ Como não me importei com ninguém /Ninguém se importa comigo"]. Uma posição dos principais partidos que se afasta completamente dos princípios e que é uma posição dita pragmática - eu diria oportunista: se isto atingir os meus adversários, acho bem, se atingir as minhas hostes, protesto". E temos visto ao longo das últimas décadas o que tem acontecido nessa matéria, que acho intolerável e inaceitável num Estado de Direito, como disse antes.

Ainda agora, a propósito do caso que supostamente envolve o presidente da câmara de Espinho, um colega meu referiu para as câmaras [de televisão] um ponto que me parece gravíssimo, mas ninguém tugiu ou mugiu a respeito dele. Disse que no Tribunal de Instrução Criminal do Porto, num dos juízos encarregados de ouvir os arguidos detidos, estava instituído um sistema de escalas, conhecidas antecipadamente, e que o Ministério Público tinha a possibilidade de escolher o dia em que fazia a detenção para levar os detidos ao juiz de instrução que entende mais conveniente por ser favorável às suas teses. Isto é uma denuncia de enorme gravidade. E, das duas uma: ou não é verdade e tinha de ser esclarecido, ou é verdade e tinha de ser levado até ao fim.

Quem tem competência para levar estas questões até ao fim?

Acho que a Ordem dos Advogados, e tenho esperança que a atual bastonária [Fernanda de Almeida Pinheiro] faça alguma coisa, porque o anterior [Luís Menezes Leitão] não fez nada. Tenho sempre esperança que faça. Os advogados têm de estar na primeira linha de defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, e compete a cada uma das pessoas que não está disposta a alinhar neste jogo, que é profundamente perverso e que nos põe a todos em risco, criar um movimento de opinião que venha a impor em primeiro lugar uma coisa muito simples: que a justiça preste contas.

"A instrução em processo penal é uma anedota. É preciso dizer com todas as letras: é uma farsa"

E chegamos então à frase do primeiro-ministro (e não só), com a qual não concorda: "À justiça o que é da justiça, à política o que é da política". O que tem de errado?

Essa frase do primeiro-ministro é uma forma de os políticos se desresponsabilizarem do que se passa com a justiça, de bem e de mal, nos vários aspetos. Já reparou que os tribunais são o único órgão de soberania que exerce o poder em nome do povo, mas não tem legitimidade democrática? Construir essa legitimidade passa pelo respeito absolutamente escrupuloso de alguns princípios, um deles o do juiz natural, de que acabámos de falar, e que tem sido sabotado e torpedeado várias vezes. Ou o princípio da fundamentação de todas as decisões judiciais, o princípio da recorribilidade das decisões judiciais - haver uma segunda instância, composta por pessoas supostamente mais experientes e conhecedoras, que vá ver se aquela decisão foi correta ou não.

Com as reformas do processo penal todos estes princípios foram sendo debilitados e sabotados em nome da construção de uma justiça mais célere, mais eficaz e mais justa. A gente chega ao fim de cada uma dessas reformas, faz o balanço e verifica que cada vez se limitaram mais os recursos, cada vez é mais possível haver decisões de segunda instância de um só juiz, em que a fundamentação das decisões pode ser uma simples remissão para uma decisão já proferida, transformada numa caricatura. A instrução em processo penal é uma anedota. É preciso dizer com todas as letras: é uma farsa.

Na justiça ninguém presta contas e, portanto, vemos as maiores barbaridades acontecerem. Temos ainda o Conselho Superior da Magistratura, outra instituição feudal, e um dia também tem de se discutir até ao fim a opacidade do seu funcionamento. Ninguém presta contas ao povo em nome do qual exerce este poder.

Por que razão fica tudo na mesma? E não falou nas fugas de informação, aquelas que levam a imprensa a estar à hora exata no local onde vai ser detido José Sócrates, Vale e Azevedo ou Manuel Pinho, para dar alguns exemplo. Mas não há consequências.

E há o caso da tentativa de envolvimento do ex-ministro da Administração Interna Miguel Macedo, que é o caso dos Vistos Gold, em que é noticiada em primeira mão a detenção do ex-diretor do SEF, Jamelas Paulo, e a condução e interrogatório do ministro da Administração Interna, Miguel Macedo. Aparece em parangonas "Suspeitos de corrupção", com fotografias das pessoas nas primeiras páginas. Vão ao Campus da Justiça ser inquiridos e à hora de almoço uma estação de televisão, a CMTV, emite a gravação vídeo e áudio de uma das inquirições. Como é que isto é possível?

É exatamente isso que lhe estou a perguntar, como é possível?

Mais. O processo de instrução chega ao fim e o "super-juiz", entre aspas, o justiceiro Carlos Alexandre, profere um despacho a dizer que as provas indiciárias são avassaladoras e pronuncia-os exatamente nos termos da acusação do Ministério Público. Os arguidos vão a julgamento e são absolvidos por um coletivo de três juízes. Não tenho nada a ver com o processo ou com as pessoas em questão, mas, evidentemente, interessei-me. E o acórdão tem uma parte final de justificação da absolvição que demonstra a pressão que existia sobre aquele tribunal para condenar aqueles indivíduos, porque já estavam condenados na praça pública.

"A classe política não reage em relação à justiça porque há muita informação acerca das pessoas obtida sem controlo"

Saem absolvidos e o Ministério Público trepou pelas paredes e interpôs recurso para o tribunal da relação, argumentando tudo e mais alguma coisa. O tribunal da relação, novamente três juízes desembargadores, absolve de forma inequívoca os arguidos. Das duas uma: ou as provas indiciárias eram avassaladoras (e seis juízes, três da primeira instância e três da segunda), fizeram o frete de absolver umas pessoas, ou as provas não eram avassaladoras e aquilo a que se assistiu foi uma condenação antecipada que destruiu completamente a vida daquelas pessoas. E não aconteceu nada.

créditos: Tomás Carranca | MadreMedia
"A investigação criminal está sem controlo democrático em Portugal. E é preciso dizer isto na cara das pessoas"

Mas porquê, por que motivo a justiça não atua contra a justiça?

Penso que a classe política de uma maneira geral não reage de forma consequente em relação à justiça porque há setores da justiça, designadamente a investigação criminal, que têm muita informação acerca das pessoas obtida sem controlo. Há aqui um jogo perverso. Por exemplo, tenho a posição social e política de considerar que o Eng. José Sócrates foi um dos piores primeiros-ministros da história de Portugal. Outra coisa é aceitar que a pessoa seja presa tendo-se chamado as televisões para filmar - porque não adivinham -, e depois se procure justificar a aplicação da medida de coação de prisão preventiva com o argumento do risco de fuga, quando o indivíduo está a entrar no país. É inaceitável.

E quando me pergunta porquê, adianto: acho que a investigação criminal está sem controlo democrático em Portugal. E é preciso dizer isto na cara das pessoas. E é preciso dizer que este senhor, que é hoje primeiro-ministro, é o responsável direto pela adoção e pelas alterações ao processo penal, quer como primeiro-ministro, quer como ministro da Justiça, de que tanto se gaba e que são responsáveis por se ter chegado a este estado.

Como podia controlar-se este processo fora de controlo?

Bom, a primeira coisa, como princípio básico, é que todos os actos de inquérito suscetíveis de afetar direitos, liberdades e garantias de pessoas estejam sujeitos ao controlo jurisdicional direto do juiz de instrução. E não estão. Há outro fenómeno - nunca mais saímos deste tema -, que foi a abertura do acesso a juízes dos tribunais superiores a procuradores, que nos casos das secções criminais do Supremo significou que um grande número de atuais conselheiros são ex-ministérios públicos, com todo o tipo de concepções acerca do processo penal que caracteriza aquela instituição em geral.

Isso tem determinado a consagração de posições de que não compete ao juiz de instrução fiscalizar a forma como o Ministério Público fez ou deixou de fazer a investigação. E é a isto que se chama autonomia do Ministério Público - eu chamo-lhe roda livre, porque autonomia é outra coisa.

E depois, devo dizer-lhe, as investigações às violações do segredo de justiça têm de ser acometidas a outra entidade que não o Ministério Público, porque havendo suspeitas fundadas de que uma parte significativa dessas queixas pode vir daí, pomos o Ministério Público a investigar o Ministério Público?!

"Um juiz bom é um juiz que avia muito. Ora, aviar muito é completamente diferente de aviar bem, de fazer boa justiça"

É o mesmo que pôr a Inspeção-Geral de Finanças a investigar o Ministério das Finanças, como acontece no caso TAP e da indemnização de Alexandra Reis?

Exatamente. Isto tinha de ser alvo de um inquérito a sério, com poderes investigatórios a sério, mas conduzido por entidade de reconhecida idoneidade moral.

Depois há o cumprimento dos prazos. Está a falar com um advogado com 47 anos de carreira em cima do pêlo, dois anos como candidato, como se dizia na altura - agora chama-se advogado estagiário. Os tribunais, muito em particular na área criminal, estão habituados a que um inquérito que devia ser concluído em oito meses possa levar oito ou dez ou 14 anos sem que nada aconteça. E já vimos o que isso dá.

Temos hoje na justiça uma lógica estatística muito forte. Tenho chamado reiteradamente a atenção para o efeito perverso que isso tem, que é o de se valorarem e classificarem os juízes sobretudo em função da sua contribuição para a diminuição do contingente processual, para utilizar o termo técnico formal. Ou seja, um juiz bom é um juiz que avia muito. Ora, aviar muito é completamente diferente de aviar bem, de fazer boa justiça. E o Conselho Superior da Magistratura é responsável por isso: os juízes que querem fazer boa justiça, que querem que a produção da prova se faça com tranquilidade, que querem maturar bem as decisões e examinar todos os aspetos e estudar a sério as várias soluções jurídicas, são completamente ultrapassados por aqueles que aviam julgamentos numa manhã e sentenças em duas horas, que são os que têm classificações de muito bom, necessária para progredir na carreira.

"Temos um regime de custas pornograficamente elevado. Litigar é para ricos ou para indigentes"

O resultado disto é uma perversão da qualidade da justiça independentemente da estatística. Que tem outras falsificações, como ver responsáveis da área da justiça gabarem-se muito de que o número de processos pendentes, designadamente na área da justiça laboral, tem diminuído. Mas nunca dizem com clareza quantos processos entraram e quantos foram julgados.

Por outro lado, temos um regime de custas pornograficamente elevado. E, em certas jurisdições, como a do trabalho, família e menores, questões de habitação, isso é absolutamente trágico, porque ter possibilidade financeira de litigar em juízo, sobretudo contra uma entidade mais poderosa, é para ricos ou para indigentes, porque o regime de apoio judiciário diz que desde que no agregado familiar do próprio haja alguém com rendimento normal, isso é razão para saltar fora da isenção de custas. Isto significa que temos um funil que estrangula completamente o acesso à justiça.

Não há onde nem quando para debater o que pode estar aqui errado. Ninguém se quis interrogar sobre aqueles mimos dos acórdãos relatados pelo juiz desembargador Neto Moura, que tinha aquelas concepções sobre as mulheres e acabou por ser sancionado numa decisão inédita - porque o Conselho Superior da Magistratura tem aquela posição de "é o poder jurisdicional do juiz, não me meto". Mas a verdade é que nunca ninguém se interrogou como é que uma pessoa que é capaz de produzir decisões manifestamente inconstitucionais teve sempre muito bom nas avaliações.

Mas estes juízes não têm uma formação específica? Quem fiscaliza o fiscal, como dizia Adriano Moreira?

Outro exemplo que suscita clamores vários: a forma como os juízes são formados no Centro de Estudos Judiciários. Foi desencadeado um contra-ataque nas redes sociais, mas não só, quando eu e o juiz desembargador Eurico Reis questionámos o que se ensina ali, como são escolhidos os conteúdos e quem fiscaliza. Tempos mais tarde, o ISEG, a minha universidade, organizou um colóquio sobre "Violências Sexuais e (In)Justiça", e foi lá um dos responsáveis pela formação do CES e discutiu-se ali o que os senhores ensinam ali. O resultado foi uma reação corporativa levada à última instância, primeiro porque só são responsáveis pela formação dos juízes da primeira instância (a partir daí é facultativo), segundo porque não têm de responder pelo que as pessoas fazem depois, terceiro porque os formadores do CES são conhecidos e os conteúdos estão publicados. Mas os cidadãos em geral, como transpõem os muros da antiga Cadeia do Limoeiro [atual CES] e sabem quem lá está?

O ministro Aguiar-Branco tomou aquilo que costumo dizer que foi a única medida de jeito enquanto ministro da Justiça, que foi nomear uma professora da Faculdade de Direito de Coimbra para diretora do CES. Mais de 80% dos docentes do CES apresentaram demissão, pela simples razão de que a senhora não era da corporação. Portanto, um acto de sedição. Evidentemente, um responsável da área da Justiça à altura tinha posto todos na rua de imediato - a tarefa até estava facilitada, a demissão era imediatamente aceite e no dia seguinte estavam a apanhar o elétrico 28. Mas ninguém discute isto.

créditos: Tomás Carranca | MadreMedia

O problema da cultura judiciária também tem a ver com a maneira como as faculdades de Direito ensinam ou não?

Temos na nossa sociedade uma série de áreas e de instituições que são verdadeiramente feudais, e onde falar em Estado de Direito democrático é qualquer coisa de essencialmente formal. Costumo dizer de forma um pouco ácida que 500 anos de Inquisição e 50 de fascismo, em que as pessoas foram ensinadas a comer e calar, ou seja, formação de carneiros, nada foi superado. É lamentável dizer isto, mas mais de 48 anos depois do 25 de Abril isto não foi ainda superado, este arrogar-se de pensar pela própria cabeça, esta posição de não aceitar as coisas com base em argumentos de autoridade, machista dixit.

"Os discursos motivacionais e a missa pegajosa com que somos lambuzados diariamente desarma ideologicamente as pessoas"

Mas isso até podia ter tido o efeito contrário, criar uma geração de revolucionários. Por isso lhe perguntei se temos hoje uma sociedade mais amorfa.

Podia, se as pessoas não fossem educadas e formatadas nesta lógica desde que nascem. Repare, temos discutido pouco tudo. A lógica do capitalismo é uma lógica que, do ponto de vista da sociedade, combate e destrói tudo o que cheire a solidariedade e a coletivo, prega continuamente a ideia de que não há alternativa, a ideia de que o sucesso das pessoas são soluções individuais, nem que vá descobrir imagens de Nossa Senhora de Fátima dentro de sapatos de luxo.

Os discursos motivacionais e a missa pegajosa com que somos lambuzados diariamente desarma ideologicamente as pessoas. As pessoas são convencidas de que não vale a pena sonharem diferente porque foi sempre assim e há-de ser sempre assim, a forma de se safarem é acotovelarem o vizinho do lado. A pregação do poder e do sucesso como os valores supremos, a expulsão das questões da ética e dos princípios do domínio da política e do domínio da justiça. Tudo isto está ligado.

Até um dia?

Evidentemente, até um dia. Mas isso também depende de condições objetivas e subjectivas, como dizem os marxistas, e quando os partidos que se dizem de esquerda e defensores de quem trabalha abandonam esse combate, evidentemente cria-se um terreno particularmente perigoso, que conhecemos dos anos 30 do centro da Europa, que é precisamente o dos construtores das soluções mais reaccionárias, mais violentas, aparecerem a cavalgar os movimentos de revolta popular e a apresentarem-se como os paladinos da luta contra a corrupção e o arbítrio.

Se vemos ascenderem por toda a Europa e também em Portugal esse tipo de forças, com discursos absolutamente nazis - diria que a intervenção de André Ventura na Convenção do Chega é quase uma reprodução de um discurso do Hitler precisamente na fase em que ele está a procurar chegar ao poder, onde chegou por eleição -, a responsabilidade é obviamente de quem defende essas ideias, mas é também de quem, tendo como principal tarefa a construção das alternativas, se demite de o fazer.

Escolheu Direito e especializou-se em Direito Trabalho. Porquê?

Eu tinha uma média exatamente igual em Letras e em Ciências, e hesitava entre ser médico cirurgião [ri], engenheiro naval, para construir barcos, e advogado. E aí o exemplo do meu avô acabou por me influenciar. Mas, penso que ainda não tinha ido para a universidade, estaria no antigo quinto ano do liceu, ofereceram-me um livro de Sebastião Salgado com fotografias sobre pessoas no mundo do trabalho, que me impressionaram profundamente. Segundo, eu estava suspenso na altura do 25 de Abril, completei o curso numa época especial, aberta no final de 1974 início de 1975, precisamente para os alunos que estavam suspensos.

Por que motivo estava suspenso?

Tinha sido suspenso em dezembro de 1973, na sequência de uma luta, a primeira luta a sério contra os gorilas dentro da faculdade. Estavam habituados a dar pancada e, daquela vez, fomos devidamente municiados; levámos, mas também demos muito. Fomos suspensos uns 20, e estávamos à beira de ser mandados para a Guerra Colonial.

Voltando ao curso e à especialização em Direito do Trabalho...

Fiz o curso, comecei a dar aulas na faculdade como assistente e, algum tempo depois, surgiu a hipótese de ir trabalhar para o contencioso do Sindicato dos Telefonistas e Ofícios Correlativos do Distrito de Lisboa, que tinha uma característica muito curiosa: representava as telefonistas, uma profissão que, por preconceito cultural, estava completamente feminizada, aquela ideia de que o primeiro contacto com as organizações é por telefone e uma voz mais doce, mais maviosa, ajuda. Eram quase só senhoras, da Agência Funerária Salgado à Securitas, do Belenenses à CUF - e digo estas porque me lembro de as ter visitado. E, de facto, é onde se aprende verdadeiramente o Direito, porque na faculdade não havia Direito do Trabalho antes do 25 de Abril, o que havia era Direito Corporativo, uma cadeira de conteúdo essencialmente ideológico, uma espécie de Organização Política Administrativa da Nação parte II. Com o professor Soares Martínez, que ensinava coisas como o proletariado ser um estado de espírito ou a matemática não ser aplicável à economia e mais uma série de barbaridades anti-científicas.

Chegou a ter Marcello Caetano como professor?

O professor Marcello Caetano foi para o governo no ano em que eu teria a disciplina com ele, quem me deu aulas foi o assistente, que era o Dr. Miguel Galvão Teles. Um assistente de primeira água e uma perda trágica, morreu tão cedo. Mas também uma demonstração da incapacidade de uma instituição como a Faculdade de Direito de Lisboa reter valor.

O Direito do Trabalho começa a ser ensinado nas faculdades de Economia e Gestão, primeiro no ISEG, depois no ISCTE. Um dos professores, e a quem devo muito do que sei, foi Monteiro Fernandes. E tive o apoio inestimável de dois colegas, ambos já falecidos, o meu patrono, Dr. Jorge Fagundes, e o Dr. Joaquim Pereira da Costa, que eram advogados de sindicatos e tinham disponibilidade para aturar um colega mais novo - entrei com 16 anos para a faculdade -, que tinha toda a sorte de dúvidas e os chateava com frequência. Uma memória que guardo, pela transmissão de conhecimentos, mas, ao mesmo tempo, pelas discussões sobre o preconceito que havia na justiça laboral, que era o de no campo do Direito do Trabalho não se reclamar por danos morais.

Achou isso estranho?

O sangue novo caracteriza-se por questionar aquilo que o sangue mais velho se habituou a tomar por assente e normal. A discussão sobre a existência de danos morais causados no âmbito das relações do trabalho e a possibilidade de reclamar indemnização por esses danos começa aí. Por exemplo, na altura entendia-se que desde que a empresa pagasse ao trabalhador o salário, não havia problema nenhum, mesmo que o pendurasse a olhar para uma parede.

Como é que isso mudou e porquê?

Começou com os bancários que vieram retornados das ex-colónias e que se apresentaram aqui no Banco de Angola ou no Banco Nacional Ultramarino, entre outros. "Quem é o senhor?" "Eu era o sub-gerente da agência de Nova Lisboa". "O que está a fazer aqui?" "A agência de Nova Lisboa desapareceu". "Mas o seu lugar é lá, não o recebemos aqui". E essas pessoas intentaram ações de trabalho - não tive nada a ver com elas, mas conheço-as -, e ganharam-nas. E então, quando se apresentam nas instituições bancárias em questão, são colocadas em secretárias a olhar para as paredes.

E eu, que na altura não era conhecido como sou hoje, pude ir, clandestino, visitar um desses sítios, a sala dos queimados, como se chamavam. Foi na Baixa, lembro-me perfeitamente, entrei disfarçadamente, porque queria ver. E lá estavam umas dezenas de pessoas, meia dúzia de cadeiras e o resto em pé, porque não se atreviam a não ir, com receio que lhes marcassem faltas, depois invocadas como fundamento de despedimento. Havia pessoas a dar em doidas - e quanto mais ativa tinha sido a pessoa, mais doloroso era. Foi uma experiência que me marcou muito. Perguntava-me: como é que isto pode ser legítimo?

Depois, em 1976, tive a sorte de integrar um coletivo de nove assistentes da Faculdade de Direito, dirigido pelo Dr. Monteiro Fernandes, cujos nomes, nove, recordei na minha aula de jubilação. Fomos nós que sustentámos durante anos a fio a lecionação de Direito do Trabalho, até começarmos a ser todos mandados embora, eu inclusive. Estamos a falar de 1976/77, éramos conhecidos pelo Grupo dos Nove, tinha uma ressonância própria [ri]. Reunia-mos na sala 7, salvo erro, no primeiro andar da faculdade, e tínhamos discussões animadíssimas, como se existia ou não o dever de ocupação efetiva do trabalhador ou se era legítimo pendurar o trabalhador. "Então e se for um jogador de futebol? Uma equipa que já tem quatro pontas de lança e vai buscar o quinto só para ele não jogar num clube adversário, mas ali nem treina? Ao fim de uma época esta pessoa rebentou com a carreira profissional".

E destas questões, por um lado, e das questões práticas, por outro, designadamente uma experiência riquíssima que é a negociação de instrumentos de contratação coletiva de trabalho ou acordos de empresa, fui reforçando cada vez mais o gosto pelo Direito do Trabalho. Acabei por me orientar e, em larguíssima medida, costumo dizer que a minha advocacia é DTQE: Direito do Trabalho e Questões Esquisitas [ri].

Qual a questão mais esquisita com que teve de se confrontar?

Bem, já tive várias. Mas uma delas foi a denúncia de corrupção entre laboratórios da indústria farmacêutica e alguns médicos. Uma experiência dura a sério. Tivemos uma câmara de filmar instalada aqui à entrada do escritório. A determinada altura tive a informação de que havia um indivíduo dos serviços secretos guineenses com a missão de abater dois alvos, um deles desta morada.

E o que era a máquina posta em marcha para descredibilizar as denúncias e eliminar quem porventura as defendesse. Fui avisado de que o governo alemão da altura tinha chamado a atenção do governo português, porque estava muito preocupado com o que se estava a passar com a Bayer em Portugal, uma empresa de bandeira, e o que era mau para a Alemanha era mau para a União Europeia e, consequentemente, para Portugal. Estamos a falar dos anos 90.

Como é que esse processo acabou?

Acabou tudo arquivado. E a ex-ministra Francisca Van Dunem, que foi procuradora-geral distrital de Lisboa, tem um despacho proferido no processo, de que só tomei conhecimento quando o inquérito foi encerrado e proferido o despacho de arquivamento e já todos os prazos tinham passado por prescrição, a determinar que só se investigassem os casos em que fossem pagas quantias superiores a 500 mil escudos.

Tive encontros com médicos que me passaram muita informação, delegados de informação médica completamente na clandestinidade e aterrorizados. E tive um constituinte que veio dos Estados Unidos - estava eu numa sessão de julgamento no Tribunal do Trabalho, em frente à igreja dos Anjos, olho para a assistência e vejo-o. Faz-me um sinal e, no primeiro intervalo, entrega-me um exemplar da revista "Fortune", que trazia uma entrevista com dois ex-polícias ingleses contratados pela Bayer para um departamento de operações secretas.

A Bayer sofria muita contrafação, em particular da aspirina, e descobriu-se um desses laboratórios de contrafação em Malta. Não se apresentou nenhuma queixa nem se desencadeou nenhum processo, estas duas pessoas foram despachadas para lá para o inutilizar. Só que, por razões que nunca se esclareceram, acabaram presas, foram surpreendidas quando estavam a entrar. Segundo contam, e é essa a entrevista, a Bayer garantiu-lhes o pagamento desde que fechassem o bico. O pagamento foi mantido durante uns meses, mas, felizmente para a verdade, a justiça de Malta ainda é mais lenta do que a portuguesa. Portanto, os ex-polícias começaram a ficar demasiado tempo na cadeia e, um dia, os pagamentos começaram a falhar. Desesperaram-se e decidiram dar a entrevista, que é estarrecedora.

Mostra como responsáveis de laboratórios se reuniram num hotel à beira de um lago na Suíça e combinaram uma operação chamada Nemesis, que faz apelo à expressão grega, que quer dizer apagamento, e como alguns dos laboratórios, quando as coisas chegaram a esse ponto, decidiram afastar-se.

Foi ameaçado, chegaram a fazer-lhe mal?

A minha filha teve o carro devassado, não só com coisas ameaçadoras deixadas dentro, como aberto, a direção mexida... Tive de lhe ensinar umas técnicas de cautela, algumas já vinham de antes do 25 de Abril, como saber pelo modelo do carro se determinada matrícula é verdadeira, entrar com o carro numa rotunda, dar duas voltas e, no caso de estar a ser seguida, ir direita à primeira esquadra - uma vez foi perseguida em Campo de Ourique. Eu e o delegado de informação médica meu constituinte fomos fotografados por um carro com o pessoal do corpo de segurança atrás, ali para os lados de Entrecampos, com matrícula de uma carrinha de Portalegre, salvo erro. Passei a nunca fazer o percurso entre a universidade e casa pelo mesmo sítio, a viajar com as portas trancadas, a deixar espaço para não ser trancado nos semáforos à noite, uma série de coisas.

Na altura soube-se que a indústria farmacêutica tinha os médicos todos fichados e classificados, médicos de classe A, classe B e classe C. Xis embalagens davam direito a uma Montblanc, ípsilon a uma viagem a Paris, havia imensas coisas. Isto em relação aos médicos prescritores, sobretudo ortopedistas, por causa das inflamações, cardiologistas e médicos de clínica geral, designadamente dos centros de saúde. E que estavam fichados, com dados sobre as classificações obtidas, dia de anos, estado civil, filhos, preferências políticas, preferências sindicais, preferências sexuais. Era assim. Depois havia outro tipo de ações relativamente àqueles que podiam ser influencers, como se diz agora, opinion makers.

Mas tudo isto ficou em águas de bacalhau. E, segundo me contam, alguns dos mecanismos refinaram-se, mas ainda se mantêm hoje.

"Temos hoje uma ACT absolutamente desprovida de capacidade de fiscalizar a sério"

Quais são as questões laborais que mais se colocam em termos legais hoje em dia?

A utilização da contratação precária e dos despedimentos chamados por justa causa objetiva, como os despedimentos coletivos e os despedimentos por extinção do posto de trabalho, para mandar as pessoas embora. O livro verde do trabalho tem dados muito interessantes: a causa mais frequente de despedimento, mais de 60%, é a caducidade. O que revela que temos uma dimensão exageradíssima de contratação a prazo, mesmo para preencher necessidades permanentes da empresa. A seguir são as chamadas RMA, rescisões por mútuo acordo, mais de 20%, e os despedimentos coletivos, que seria de supor que tivessem uma expressão muito grande, são residuais, cerca de 12%.

créditos: Tomás Carranca | MadreMedia

De facto, esperava números mais elevados, até pelo que vamos vendo e ouvindo nas notícias.

Porque servem para fazer o que foi feito na TAP: ou vens aqui assinar a rescisão por mútuo acordo, e há uma vantagem implícita, ou vais para o despedimento coletivo. E ninguém pensa sobre isso.

A Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) está atenta e atua?

A verdade é que temos hoje uma ACT absolutamente desprovida de capacidade de fiscalizar a sério; faltam-lhe meio técnicos, materiais, humanos. Viu as suas competências reforçadas sem que visse reforçados os meios, designadamente a fiscalização dos layoff, depois dos despedimentos. Não vale a pena alimentar ilusões de que perante situações irregulares se faça alguma coisa.

"Grande parte dos sindicatos estão silenciados e admitem coisas inenarráveis"

O que é que se passou na TAP, exatamente?

Aquilo que se passou na TAP, que em dois anos mandou para a rua 2.400 pessoas - sendo que no despedimento coletivo foram 50 ou 60 -, foram rescisões por mútuo acordo sacadas às pessoas, às vezes chamadas com 24 ou 48 horas de antecedência para uma reunião onde estão sozinhas e têm na frente um representante dos recursos humanos e, às vezes, uma chefia a dizer "você está na lista, se não quer isso assine aqui". E metem-lhe à frente um papel, um monumento daquilo que é a antítese do que deve ser uma rescisão por mútuo acordo razoável e civilizada, que é, obviamente, um acordo de mera adesão pelo trabalhador, que ou aceita em bloco e assina, e lá recebe aquele dinheiro, ou não assina e vai para o despedimento coletivo. E o do Novo Banco já vai a caminho dos sete anos, o que significa que se esgota o subsídio de desemprego e as pessoas não conseguem emprego porque estão naquela idade crítica, demasiado novas para a reforma, demasiado velhas para regressar ao mercado de trabalho.

Isto foi feito aos milhares, denúncias feitas a toda a gente. Aconteceu alguma coisa? Não. E temos rescisões por mútuo acordo com cláusulas ditas de confidencialidade e a lei da rolha em que o trabalhador fica proibido de fazer qualquer declaração que seja considerada desfavorável à empresa ou qualquer empresa do grupo. Pagamentos forçados a prestações - a pessoa vai para a rua e ainda por cima não recebe a indemnização de uma só vez.

Alexandra Reis, ex-administradora, recebeu.

A TAP, que pagou à Dra. Alexandra Reis aquilo que pagou [500 mil euros], e que não se lembrou que se ela vai para a NAV três meses depois, exercer funções noutra empresa do setor empresarial público, deixa de ter direito àquilo - além de que nunca teria direito a receber nada. A lei diz que se o trabalhador for readmitido noutra empresa do grupo, já não recebe a segunda prestação.

Os sindicatos atuam hoje muito como atuavam há 40 anos?

Não. Acho que atuam de uma forma completamente diferente. Além de terem pessoas que estão há 40 anos no sindicato, e portanto algumas delas não fazem a menor ideia de qual é a situação do trabalho, em certas empresas, como é o caso da TAP, grande parte dos sindicatos estão silenciados e admitem coisas inenarráveis.

Porquê e por quem?

O problema é que há vários mecanismos para controlar as coisas no interior da empresa. E há uma célebre tese de mestrado, salvo erro de um ex-diretor de recursos humanos da Autoeuropa, que explica como se promoveu uma comissão de trabalhadores na fase inicial para permitir à administração saber sempre com antecedência o que se passa. E quando oiço dizer, por exemplo, que a empresa apresenta uma proposta de revisão do acordo de empresa, que é uma vergonha (porque a conheço), e a classifica como confidencial para impedir que o sindicato dê conhecimento público do que a TAP está a propor e que obriga os associados a tomarem posição com base em resumos de powerpoint... O que é isto?

Por exemplo, no caso da TAP os sindicatos nunca exigiram o conhecimento do plano de reestruturação com base no qual foi decretado o despedimento coletivo e que serve para justificar todas as medidas anti-trabalhadores, para fundamentar despedimentos de pessoas e cortes a direito. Os sindicatos deixaram-se encurralar. A seguir, o governo, porque isso o Dr. António Costa sabe fazer, vai buscar leis de lá atrás para as aplicar agora, desde a lei da requisição civil, que é de Novembro de 1974, à lei da declaração das empresas em situação económica difícil, que é de 1977, do tempo do FMI. Sabota e liquida a contratação coletiva e, depois, confronta os sindicatos para virem negociar, entre aspas, estes acordos de emergência ou deixa-os ao abrigo da lei geral. Nesta altura já estão completamente encostados à parede.

"As companhias aéreas em Portugal têm 260 milhões de indemnizações para pagar a passageiros. Não pagam"

Chega a ser irónico conhecerem-se tantas histórias e não acontecer nada. É uma espécie de benção às piores práticas.

Apesar de se terem sabido coisas terríveis. Por exemplo, o conceito de absentismo seguido pela empresa faz com que os trabalhadores, sobretudo as trabalhadoras com responsabilidades familiares, sejam sistematicamente prejudicadas e não se reconheça, por exemplo, o direito à aleitação e à amamentação.

Além disso, o absentismo inclui as ausências por doença determinadas pela própria Unidade de Cuidados de Saúde da TAP. Um tripulante, antes de embarcar, assume expressamente o compromisso de estar em condições físicas e psicológicas de efetuar o serviço de voo, caso contrário tem a obrigação de não embarcar. Ora, um comandante ou um tripulante de cabine que tem uma dor num ouvido e vai à Unidade de Cuidados de Saúde da TAP, onde lhe é diagnosticado um problema grave, respeita a indicação médica e fica sem voar, mas depois é incluído preferencialmente no despedimento coletivo porque tem um incidente de absentismo. Qual o efeito disto? Amanhã não vai dizer que tem um problema, embarca e estamos aqui a discutir problemas de segurança de voo.

Outra: esta administração da madame Christine, perante a manifesta falta de tripulantes, de cabine e técnicos, institui um prémio, uma remuneração suplementar de 10% do rendimento base para os trabalhadores que aceitem voar por sistema em folga e férias. Estão a brincar com a gente? Os tempos de descanso existem por algum motivo. Isto é uma aberração, porque é estar a pôr em causa as regras de segurança de voo.

A quem foram feitas essas denúncias?

Eu fiz uma participação disto à ANAC [Autoridade Nacional da Aviação Civil]. Aconteceu alguma coisa? Nada. As companhias aéreas em Portugal têm 260 milhões de indemnizações para pagar a passageiros. Não pagam. A TAP e a EasyJet, tanto quanto sei, estão no topo da lista. Por regulamento comunitário estão obrigadas a pagar. A autoridade reguladora em Portugal devia atuar imediatamente. Atuou? Nada. Temos aqui uma situação particularmente complexa, que é também a de as entidades reguladoras e fiscalizadoras não fazerem nada.

Gostava de saber se o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem cumprido o seu papel e se os cidadãos recorrem a ele tanto quanto podiam ou há desconhecimento e entraves?

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem desempenhado um papel muito importante em certas áreas e, designadamente, em áreas que não são muito conhecidas entre nós. Estou a pensar, por exemplo, nos acórdãos que têm sido proferidos por falta de condições da população prisional, em que outros Estados são condenados por falta de condições mínimas de civilidade dos respetivos serviços e instalações prisionais, em condições idênticas que deviam determinar a condenação do Estado português todos os dias. E essa condenação não existe porque há poucas queixas.

De facto, quando pensam em Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, as pessoas pensam normalmente nas questões da liberdade de expressão (difamação ou injúria) ou na violação do direito à justiça num prazo razoável. E ignoram, por exemplo, que o TEDH já condenou o Estado português, que eu tenha noção, pelo menos umas oito vezes por violações gritantes dos direitos dos progenitores relativamente à institucionalização de crianças. O Estado português foi condenado, mas ninguém tira consequências disso.

Foi condenado de uma forma humilhante relativamente àquela cidadã africana a quem foram tirados todos os filhos porque a Segurança Social lhe quis impor como condição que aceitasse ser esterilizada. E a senhora, por força das suas convicções, não aceitou. Um combate sem tréguas travado por duas colegas, duas advogadas que enobreceram enormemente a advocacia e a justiça portuguesa.

O Tribunal de Família e Menores atua demasiadas vezes desta forma: quando uma família tem dificuldades, designadamente económicas, isto é, quando são pobres, a primeira tendência é tirar-lhe os filhos, e a justificação para o fazer é criar dificuldade, senão a total impossibilidade, de contacto com os filhos através da institucionalização das crianças (uma palavra horrível), para depois invocar que os laços afetivos já não existem. Isto é uma brutalidade tremenda.

Se vivêssemos numa democracia a sério e se tivéssemos uma justiça que se deixasse questionar e que se auto-questionasse minimamente que fosse, deveria ter levado a uma séria reflexão sobre o modo como funcionam com grande frequência os tribunais de família e menores em Portugal, a Segurança Social e as comissões de proteção de crianças e jovens. Mas, uma vez mais, os acórdãos são metidos na gaveta.

As decisões cumprem-se, ao menos?

O TEDH tem neste momento uma enchente de processos, e tornou-se particularmente exigente e rigoroso no pressupostos de natureza processual para admissibilidade das queixas. Por outro lado, as consequências materiais para os Estados são muito leves, muito fracas, normalmente indemnizações de 7.500 euros, dez mil euros, 15 mil euros. Estas são as duas pechas.

Mas a grande questão está em que quando o Estado português é condenado ninguém tira consequências disso. Nem os responsáveis pela situação que levou à condenação do Estado são chamados à pedra, nem se reflete sobre o que é necessário fazer para a situação não se repetir no futuro.

"Portugal, com os problemas que tem, não precisa de um presidente simpático, de um bom rapaz que tira selfies, mas sim de alguém com apego aos princípios e com firmeza na sua defesa"

Marcelo Rebelo de Sousa tem sido o presidente da República de que Portugal precisa?

Não. Portugal, com os problemas que tem, não precisa de um presidente simpático, de um bom rapaz que tira selfies, mas sim de alguém com apego aos princípios e com firmeza na sua defesa. Porventura, acho que o presidente da República que esteve plenamente à altura do cargo foi Ramalho Eanes.

Temos tido sempre uma ideia esvaziadora dos poderes do presidente da República, mesmo aqueles que têm desempenhado o cargo ou que se têm candidatado ao cargo tendem a ter uma visão aligeirada das respetivas funções e responsabilidades. Dou-lhe o exemplo da célebre história de que dissolver a Assembleia da República ou demitir o governo e convocar novas eleições constituir uma bomba atómica que nunca, jamais, em tempo algum - a não ser em circunstâncias absolutamente excepcionais -, deve ser utilizada.

Ora, se uma formação política chega ao poder tendo feito uma campanha eleitoral em que faz um série de promessas perante os cidadãos eleitores e, com nisso, obtém os votos que lhe dão a maioria, mas assim que se apanha no poder faz exatamente o oposto daquilo que prometeu, em meu entender isto é uma conduta política que põe gravemente em causa o funcionamento das instituições democráticas, para usar um expressão jurídico-política frequente.

E, nesse caso, o que deveria presidente da República fazer?

Aquilo que competiria a um presidente da República à altura do seu cargo numa situação destas é exatamente exercer esse poder. Se isso fosse exercido uma vez que fosse, evidentemente tinha uma função pedagógica, um efeito preventivo relativamente a futuras atitudes da mesma natureza.

As eleições transformaram-se neste jogo perverso a que nos habituámos, em que as forças políticas sacam o voto com base em promessas que já estão perfeitamente dispostas a incumprir no primeiro momento em que se apanham no poder. Este era, quanto a mim, o primeiro e principal papel que o presidente da República devia desempenhar. Quando toma posse, o presidente jura cumprir e fazer cumprir a Constituição. Portanto, não tem o poder, tem o dever de intervir sempre que se verifiquem casos em que os princípios fundamentais, designadamente os direitos dos cidadãos, estejam em causa. E estas coisas devem ser feitas às claras, não através de jogos de corredores.

Portanto, acho que o professor Marcelo Rebelo de Sousa é um personagem que se tornou popular, mas o cargo de presidente da República e a correção do exercício desse cargo não se vê por essa noção fácil de popularidade, mas sim pela assunção plena, ou não,  das suas responsabilidades. E, em meu entender, Marcelo Rebelo de Sousa não tem cumprido adequadamente esse cargo.

créditos: Tomás Carranca | MadreMedia

António Costa está a comprometer a democracia?

Está. Estamos agora a falar de António Costa e, claramente, acho que sim. Como já sucedeu com outros governos, é preciso que a gente não se esqueça também, porque hoje há uma vertente da crítica ao governo do PS que visa reabilitar os governos do PSD e CDS do tempo da troika, que foram governos de atropelo e destruição dos direitos mais básicos dos cidadãos.

Tenho a maioria absoluta faço o que quero é uma lógica eminentemente anti-democrática, porque, creio que se impõe recordar, a essência da democracia não é a ditadura absoluta da maioria, mas é, evidentemente, a maioria impondo as decisões e as escolhas com a salvaguarda dos pontos de vista e das posições da minoria. Porque, como a história tem demonstrado, muitas vezes a minoria tem razão. E a atuação do governo e da máquina montada por ele, por exemplo, ao longo do período da pandemia, de eliminação, de ataque furibundo, de censura de todas as vozes críticas ou simplesmente divergentes relativamente à estratégia que estava a ser seguida e, sobretudo, aos atropelos que, em nome dessa estratégia, estavam a ser cometidos, são uma demonstração disso mesmo.

"A revisão constitucional que se prepara é uma questão de gravidade extrema"

O que me leva à revisão Constitucional e às sugestões apresentadas pelos diversos partidos nesta matéria.

A revisão constitucional que se prepara, e que alguns partidos têm proposto ou pelo menos sugerido, é uma questão de gravidade extrema, porque representa a tentativa de legitimar o aniquilamento definitivo dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que ainda lá estão formalmente consagrados, sob o pretexto da pretensa bondade dos fins com que tal supressão, inutilização ou aniquilamento é levada a cabo. E isto é a doutrina própria da teoria jurídica e política do Terceiro Reich, de que os fins justificam os meios, por mais desproporcionados, desadequados, injustos e até cruéis que possam ser. E de que a autoridade executiva máxima, seja o Führer, seja o presidente, na reedificação dessa doutrina no tempo de George Bush nos Estados Unidos da América, de que essa autoridade executiva máxima tem legitimidade para adotar todas as medidas pelo simples facto de ser quem tem o poder de aprovar as leis e os regulamentos, seja o governo.

Considero que essa lógica, que foi tentada impor no tempo da pandemia, e que a título póstumo, como costumo dizer, o Tribunal Constitucional veio a declarar inconstitucional em mais de 20 acórdãos, é uma lógica de vale tudo, portanto, o governo pode limitar, restringir ou eliminar direitos, liberdades ou garantias dos cidadãos, inclusivamente por portaria ou resoluções do Conselho de Ministros, atropelando as regras da Constituição. E isso, como já disse, é de uma gravidade extrema.

Temos uma Constituição desadequada do tempo que vivemos? O que seria preciso mudar?

Penso que não. Quer dizer, uma Constituição é sempre um documento historicamente datado, nomeadamente nos preâmbulos e nas declarações mais de conteúdo político ou filosófico. Chamo muitas vezes a atenção para que no texto constitucional se proclama, logo no artigo 1.º, que Portugal é um República soberana baseada na dignidade da pessoa humana. E isto não é um verbo de encher, é um princípio estruturante da sociedade que vincula teoricamente, e deveria vincular na prática, todos os cidadãos, mas essencialmente todos os poderes, públicos e privados. Quando nos deparamos com comportamentos, seja de uma entidade pública ou de um titular de um cargo público ou de um poder privado, que contendem com a dignidade da pessoa humana, não se trata apenas de uma questão criticável do ponto de vista ético, é uma conduta que está a contrariar um preceito fundamental estruturante da nossa sociedade. Ora, nós não temos nada esta formação, a começar pelos juristas. O problema está aí, e não numa pretensa desadequação da Constituição.

PCTP/MRPP. Uma palavra, uma expressão ou uma frase para definir o partido.

Não faço parte do PCTP/MRPP desde novembro de 2015, esta é a minha resposta.