Ao longo de pouco mais de um mês de conflito na Ucrânia que nos fomos habituando a imagens que há muito não se via na Europa — e que periodicamente chegam de outras partes do mundo, sem que tal proporcione o mesmo espanto.
Edifícios arrasados, carcaças de carros e tanques espalhados, crateras a criar novas geografias urbanas, populações em fuga ou acometidas ao terror dos seus abrigos foram caracterizando os nossos ecrãs. A avalanche de violência dos últimos 38 dias, contudo, não seria suficiente para nos preparar para os horrores de Bucha.
Na guerra da informação e na roda viva da propaganda, os factos podem ser transformados consoante a lente que se use. Veja-se a prática dos bombardeamentos: a Ucrânia aponta para a bancarrota moral da Rússia com o facto de caírem diariamente bombas sobre populações civis — por vezes com armamento que desafia as convenções; os russos, por seu lado, defendem-se que os invadidos estão a fazer de escolas e hospitais alvos militares ao esconder propositadamente armamento ou equipamento logístico.
A retórica, porém, não serve os mortos, nem consegue relativizar a brutalidade de uma invasão que a cada dia que passa é cada vez menos justificável. E se a Rússia já caminhava a passos largos para estatuto enquanto estado pária, o rasto de destruição que as suas tropas alegadamente deixaram nos subúrbios de Kiev depois de bater em retirada só reforça esse isolamento.
Ao todo, já foram encontrados 410 corpos de civis à volta da capital, 140 dos quais identificados. De todos os locais, Bucha parece ter sido aquele mais fustigado pela devastação. Os relatos no local — e as fotografias que começaram a ser divulgadas — mostram um cenário dantesco, de corpos espalhados nas ruas, carbonizados ainda dentro de viaturas ou semi-enterrados em valas comuns.
Algumas pessoas terão sido amarradas e baleadas na cabeça, os corpos mostram sinais de tortura e existem relatos de violações — homens, mulheres e crianças, ninguém terá sido poupado da violência.
Perante este cenário, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, acusou o Vladimir Putin russo de cometer “um genocídio” com a invasão da Ucrânia.“Sim, é um genocídio. A eliminação de toda a nação. Nós temos mais de 100 nacionalidades. Trata-se de destruir e exterminar todas essas nacionalidades”, afirmou, em declarações ao canal americano CBS.
Sem surpresas, os parceiros de Kiev já reagiram. O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, condenou “as atrocidades cometidas pelo exército russo” e prometeu que a União Europeia vai aplicar mais sanções àquele país. Os ministros das Relações Externas da França, Alemanha, Itália e Reino Unido também se insurgiram contra os ataques, garantindo que a Rússia vai ser responsabilizada.
“Um murro no estômago”, foi como apelidou esta situação o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken; já Ursula von der Leyen ficou "chocada com relatos de horrores indescritíveis", tal como António Costa, que condenou a "barbaridade inaceitável" de Bucha e pediu punições.
Perante os corpos que se vão tapando e carregando nas carrinhas e as provas que se vão destapando e divulgando nos meios de comunicação, a Rússia nega responsabilidades. "O Ministério da Defesa russo refuta as acusações do regime de Kiev sobre o alegado assassinato de civis na cidade de Bucha, região de Kiev", disseram os militares na sua conta oficial do serviço de mensagens Telegram. Mais ainda, a Rússia considera todas as fotografias e vídeos publicados pelo governo ucraniano "uma provocação".
Por outras palavras, sem dizê-lo frontalmente, a negar responsabilidade, a Rússia insinua que as mortes foram causadas pelos próprios ucranianos, quiçá para granjear simpatia internacional. É por isso que o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse ser ”essencial que uma investigação independente permita encontrar os responsáveis”.
Zelensky, de resto, concorda. O Presidente ucraniano disse hoje que será criado um "mecanismo especial" para "investigar e processar" todos os crimes "dos ocupantes" do país, acrescentando que irá funcionar com base no trabalho conjunto de especialistas nacionais e internacionais.
“Este mecanismo irá ajudar a Ucrânia e o mundo a levar à justiça aqueles que iniciaram ou participaram de alguma forma nesta terrível guerra contra o povo ucraniano e crimes contra o nosso povo”, explicou Zelensky, numa mensagem de vídeo.
Enquanto as palavras vão sendo trocadas, os mortos permanecem mortos. Sem direito a indignarem-se nas redes sociais ou a esquivarem-se de acusações, resta-lhes descanso.
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