O sonho foi desde sempre acabar com os maus-tratos infantis. É assim que Manuela Eanes, presidente do Instituto de Apoio à Criança desde a sua fundação até 2017, gostaria que o IAC fosse lembrado daqui a 100 anos. "Este era o sonho de muita gente de diferentes áreas profissionais e tive a sorte de o doutor João dos Santos, pedopsiquiatra, me ter entregado em mão o seu livro 'A Caminho de uma Utopia... Um Instituto da Criança'. Tivemos várias reuniões em Belém, à noite, para definir como seria o instituto, e queríamos trabalhar áreas que, na época, não eram cobertas pelo Estado ou por outras organizações, como crianças maltratadas e abusadas sexualmente".
Ainda hoje os números continuam a dar-lhe razão. Só no ano passado o serviço SOS Criança (número 116 111), criado em 1988, recebeu 1841 chamadas, das quais 1389 se revelaram apelos efectivos que resultaram em intervenção de técnicos. Envolviam 874 crianças e 776 infractores.
E este está longe de ser o único número de telefone do desespero. Na Europa, a linha 116 000 (o número é igual para todos os países) recebeu 188 936 chamadas, também em 2017. 19% das crianças desaparecidas são vítimas de abuso e violência. Em Portugal a linha também funciona desde 2001 e no ano passado foram denunciados 31 desaparecimentos. Apenas um era uma história fabricada, todos os outros eram verdadeiros e duas crianças foram encontradas mortas.
Esta é a ponta do iceberg. Manuela Eanes e o grupo de pessoas que fundou o Instituto de Apoio à Criança sabiam disso. Houve um longo caminho a percorrer: "Sabíamos que os abusos aconteciam sobretudo no seio da família, era preciso criar um serviço de atendimento anónimo onde as pessoas pudessem fazer as denúncias sem medo de apanhar uma tareia, ter os pneus do carro furados", diz Manuela Eanes, agora presidente honorária do IAC.
Esta é apenas uma parte. Até há pouco estavam sinalizados em Portugal 45 menores como presumíveis vítimas de tráfico, segundo o Observatório de Tráfico de Seres Humanos. Alguns foram detectados "em trânsito", ou seja, de passagem para outros países. Do número total, a organização nota que apenas 24 casos estariam a ser investigados pela polícia.
A realidade mundial é avassaladora: a Europol previne que redes mafiosas podem estar a explorar crianças refugiadas: são mais de 10 mil as desaparecidas, vindas sobretudo da Síria ou da Eritreia. Há registos efectuados por organizações não-governamentais, crianças que se presume vítimas de exploração sexual, adopção ilegal, escravidão e prática de actividades criminosas.
O caminho foi longo. Em 1989, "quando estava na Comissão Europeia o melhor presidente que já tivemos, Jacques Delors, e quando se falava em crianças de rua da África, do Brasil, porque ele tinha essa preocupação social, lançaram-se apoios para projectos de combate à pobreza. Concorremos. Tive a sorte de trabalhar sempre com grandes equipas e uma director da Misericórdia tinha um projecto fantástico, 'Crianças de Rua', que não cabia na Misericórdia e que apresentámos e foi aprovado no âmbito de um desses programas de luta contra a pobreza", conta. "Lembro-me que nessa altura havia cerca de 500 crianças e jovens a dormir na rua na Baixa de Lisboa e o projecto tornou possível responder a essa tragédia: criou-se a figura do animador de rua, que eram jovens mais velhos que os conheciam e com quem falavam, um alojamento na Rua dos Douradores e fizeram-se acordos de pré-profissionalização – Bagão Félix era secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional – com o governo e empresas, porque para terem êxito esses miúdos precisavam de emprego".
E é para poder continuar a apoiar as crianças e os jovens nos seus direitos e comemorar os seus 35 anos de vida que o Instituto de Apoio à Criança realiza hoje, no Dia Internacional dos Direitos da Criança, um concerto solidário na Altice Arena: "Crianças Somos Todos Nós", onde actuarão os DAMA, Amor Electro, Os Azeitonas, André Sardet, Rita Redshoes, Rui Veloso e outros, a partir das 21h30, com apresentação de Catarina Furtado.
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