Pode um governante responsável por uma das decisões políticas mais desastrosas da nossa era ter sido também o criador de uma das iniciativas mais importantes do seu tempo? Foi no que Nicholas Kristof — escritor, jornalista e comentador político há décadas no jornal The New York Times (NYT) — se pôs a pensar.

Quando se avalia a atuação de George W. Bush no seu tempo enquanto Presidente dos EUA, é inevitável que a Guerra no Iraque, iniciada a 20 de março de 2003 com o apoio de uma coligação internacional, seja a primeira coisa que venha à memória.

Iniciada com o pretexto de encontrar armas de destruição maciça — que nunca foram descobertas —, deixou como legado as imagens da ação militar em larga escala que tomou o país praticamente sem oposição, o enforcamento de Saddam Hussein, o falhanço em construir os alicerces de um estado estável, a insurreição da população e violência subsequente — de onde resultaram as torturas de Abu Ghraib — e a desestabilização da região que permitiu o aparecimento do Estado Islâmico.

Kristof, desde o primeiro dia um feroz opositor da intervenção no Iraque, não tem dúvidas de que essa é a principal marca que o mundo associará a Bush. No entanto, no decurso desta reflexão, o jornalista fez-se a si mesmo duas perguntas: “E se há algo que Bush tenha feito ainda mais significativo que a invasão do Iraque? E se essa coisa foi surpreendentemente boa?”

“Isto é desconfortável, mas tenho de reconhecer que Bush tem o mérito de ter criado a melhor política de qualquer presidente durante a minha vida. Chama-se PEPFAR e se nunca ouviu falar disso, essa é parte do problema”, escreve num artigo de opinião no NYT, acompanhado de um vídeo-ensaio sobre o tema.

E o que é o PEPFAR? Anunciado durante o discurso do Estado da União em janeiro de 2003 — e aprovado unanimemente no Congresso em maio desse ano —, trata-se do Plano do Presidente para Ajuda de Emergência à Sida, um projeto bilateral de assistência financiado pelos EUA de combate à proliferação do vírus HIV.

Como apontou a ONG Kaiser Family Foundation no ano passado, apesar dos EUA estarem envolvidos em esforços internacionais de combate ao HIV, o PEPFAR representou “um aumento significativo de financiamento e atenção a esta epidemia”.

Desde 2003 até 2022, os EUA já disponibilizaram 110 mil milhões de dólares em diversas iniciativas relacionadas com a contenção deste vírus, principalmente no reforço do Fundo Global de luta contra a SIDA, Tuberculose e Malária.

Segundo as contas do Departamento de Estado dos Estados Unidos, o PEPFAR é responsável por ter salvo cerca de 25 milhões de pessoas em mais de 55 países, particularmente na África subsariana, onde ainda se encontram os maiores índices de infeção a nível global. Outras metas relevantes incluem o tratamento de mais de 20 milhões de pessoas com medicação retroviral e o nascimento de 5,5 milhões de bebés saudáveis com mães portadoras do HIV.

Bush Biden
George W. Bush, à época Presidente dos EUA, e Joe Biden, na altura senador no Congresso dos EUA, dão um aperto de mão antes de assinar um acordo legislativo para a continuidade do PEPFAR, a 30 de julho de 2008 créditos: JIM WATSON / AFP

Como recorda a NPR, a decisão de Bush foi tomada numa fase em que a epidemia da HIV/SIDA estava atingir um pico global, tendo 4,8 milhões de pessoas contraído HIV e 2,7 milhões morrido em 2002.

Nem tudo foi fácil, contudo, durante a sua implementação. O programa teve desde início como condição da ajuda que esta fosse prioritariamente utilizada na promoção da abstinência e fidelidade e só, secundariamente, na promoção do preservativo, como decorre do próprio nome dado pelos norte-americanos à estratégia - “abordagem ABC” (Abstinence, Be faithful, use Condom).

Como tal, em 2006, o The Lancet, o mais conhecido jornal de medicina do mundo, criticou a “abordagem ABC”, acusando-a ser incapaz de evitar a morte de crianças por HIV/SIDA. No entender dos especialistas que assinaram o artigo, esta estratégia condicionava a distribuição de fundos, dos quais um terço era destinado a promoções para a abstinência e fidelidade, provocando o corte financeiro de campanhas como a da prevenção da transmissão da doença de mãe para filho. Este foco moralista na abstinência foi, entretanto, abandonado.

Não obstante os problemas, o saldo destes últimos 20 anos tem sido reconhecido como globalmente positivo. Como tal, o atual Presidente dos EUA, Joe Biden, sinalizou as duas décadas do programa com um comunicado onde saúda o seu antecessor — e com quem trabalhou, por exemplo, em 2008, para assegurar a sua continuidade.

“Ajudar a liderar o esforço bipartidário no Congresso para autorizar o PEPFAR está entre as conquistas de que mais me orgulho da minha passagem no Senado”, escreveu. Desde que foi aprovado, o plano tem sido sucessivamente aprovado nas câmaras legislativas dos EUA, não obstante a crispação política maior ou menor entre Republicanos e Democratas.

Numa fase onde o Congresso se prepara para levar a votos uma vez mais a continuidade do PEPFAR, George W. Bush regressou a Washington DC para celebrar o progresso desta iniciativa e pedir para que os representantes norte-americanos não a deixem cair.

“Não costumo vir muitas vezes a Washington. Mas estou aqui para relembrar as pessoas que o dinheiro dos contribuintes norte-americanos está a fazer uma enorme diferença, mensurável no número de vidas que salva: 25 milhões de pessoas. Este programa precisa de financiamento”, apelou, antes de deixar uma nota de atenção: “Para todos os céticos, tudo o que peço é que olhem para os resultados. Se estes não vos impressionarem, nada vos impressionará”.

*com Lusa

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