No dia em que a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa revelou já ter recebido 424 testemunhos de casos, Marcelo Rebelo de Sousa decidiu comentar os últimos números afirmando que, "perante um universo de milhares de jovens", "400 casos não me parece que seja particularmente elevado, porque em outros países houve milhares de casos".
"Tenho acompanhado a atividade da comissão desde o início. Estão agora a preparar o trabalho final, que vão apresentar dentro de pouco tempo. Os dados não me surpreendem. Não há limite de tempo para estas queixas. Há algumas pessoas de 80 e 90 anos que fazem denúncias do que sofreram há 60 ou 70 anos", salientou o Presidente da República.
As declarações motivaram várias reações nas redes sociais. O jovem comentador político Sebastião Bugalho recordou um texto que publicou no Diário de Notícias no final de agosto em que afirmava que "a presidência de Marcelo Rebelo de Sousa acabou" para sublinhar o que então tinha escrito sobre este capítulo dos abusos sexuais no ceio da igreja católica: "Marcelo, eleito dizendo-se católico, tinha uma responsabilidade única na consciencialização de que a Igreja errou no modo como lidou com os abusos dos seus padres, mas falhou em tomar uma posição afirmativa". Já a deputada Joana Mortágua defendeu que "Marcelo devia estar na primeira linha de condenação ao crimes perpetrados por titulares da igreja; devia estar na primeira linha da exigência de um pedido de desculpas às vítimas . Em vez disso, pelo que disse deve ele próprio um pedido de desculpas". São apenas dois exemplos comuns vindos de duas esferas opostas da sociedade, para mostrar que a decência não tem cor política.
As publicações que visam o comentário do Presidente da República são várias e continuarão a aparecer nas próximas horas. Criticam a normalização e a menorização das palavras de Marcelo Rebelo de Sousa sobre um problema que mancha a igreja católica contemporânea e que se arrasta desde os seus primeiros anos de existência, como tão bem retratou João Francisco Gomes, jornalista do Observador especialista em religião, no livro "Roma, temos um problema", editado pela Tinta-da-China no final de 2021.
A promiscuidade da relação de um Presidente de um Estado laico com a Igreja Católica tem sido ignorada nos últimos anos. Mas se o facto de a primeira viagem ao estrangeiro de Marcelo Rebelo de Sousa, aquando da sua eleição, para receber a benção do Papa Francisco pode ser de digestão fácil, em meia dúzia de dias uma notícia a revelar que Marcelo avisou o bispo D. José Ornelas para o informar de que tinha enviado para à Procuradoria-Geral da República uma denúncia de alegado encobrimento a abusos sexuais cometidos num orfanato em Moçambique, em 2011, e agora declarações impróprias sobre um tema em que um caso é excessivo - quanto mais 424 -, são mais difíceis de segurar cá dentro.
Há números que simplesmente não se contam.
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