Eram 15:25 de sexta-feira. O momento foi de grande tensão. Não é fácil conseguir acalmar mais de quatro dezenas de homens dentro de um barco sobrelotado que querem entrar no navio que os salvou do mar, vindos da Tunísia, e que queriam (e querem) chegar à Europa. Chegaram ontem ao porto de Pozzallo, na Sicília, Itália.

Recuando a sexta-feira. Os fuzileiros conduziam a operação. “Um de cada vez. Sentem-se. Um de cada vez”, gritava, em francês, um deles. Abaixo, encostado à amurada do navio, o barco velho em que viajavam balançava. Muito. O medo via-se na cara dos migrantes tunisinos amontoados para sair do barco que os trouxe da costa da Tunísia até ao largo de Lampedusa, a ilha-símbolo da crise dos refugiados de 2014. O perigo, se todos se concentrassem num dos lados, era o barco virar-se.

Os minutos passavam devagar. A confusão era muita. Primeiro, subiu a criança, de cinco anos. Depois a mãe — são assim as regras. O pai era um dos 46 tunisinos que, de olhar assustado, esperavam para subir a bordo. E assim foi. Um a um, quando se restabeleceu a calma possível.

Chegados a bordo, tiram as mochilas e sacos, quem os tem. Primeiro, são revistados, depois é-lhes colocada uma pulseira com um número, do 01 ao 48, a que corresponde um saco com os seus pertences.

Os nomes são tunisinos, Salim, Kazim, Ahmed. Há quem diga ter pago 1.500 ou 3.000 euros para fazer a travessia de cerca de 250 quilómetros, de Sfax para Lampedusa. Há uns mais andrajosos do que outros. Quase todos estão molhados. Há quem calce ténis de marca, quem tenha telemóveis da Samsung, blusões de marca.

A calma vai-se restabelecendo. Os inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) vão identificando, um a um, os migrantes. Sob o sol do Mediterrâneo, a operação estende-se por mais de uma hora e meia. Uma outra equipa, um médico e uma enfermeira, avalia o estado de saúde dos migrantes — nada de preocupante.

O tempo passa. Mais de uma hora e meia até se completar o processo em que cada um deles recebe um cobertor castanho escuro, grosso, para enfrentar o frio da noite, uma garrafa de água e bolachas. Às 17:10 (16:10 em Lisboa) o processo está concluído.

Lá atrás, na área destinada aos migrantes, tapada com um toldo, vão-se alinhando os homens, lado a lado, com os cobertores castanhos. É o momento da descompressão. Uns dormitam, outros conversam baixinho. Depois dos momentos de tensão e desconfiança, há um olhar de alívio naqueles homens, agora a salvo num navio que nada tem a ver com a embarcação velha em que navegavam, diziam, há dois dias.

O comandante Paulo Galocha, com o sargento dos fuzileiros e um dos inspetores do SEF, fala aos migrantes. Madali, que fala inglês, serve de tradutor. Os homens têm medo de serem devolvidos à Tunísia. O comandante diz que não. O seu destino será a Sicília. Uns põem o polegar para cima, quase todos agradecem – “Thank you”, “merci”.

Que estavam perdidos, disse-lhes o comandante, a dirigir-se a águas sírias. Por isso, dizia que foi “um milagre” este salvamento. Mais tarde, soube-se que o combustível só duraria para mais seis horas e que havia risco de incêndio, devido ao sobreaquecimento do motor.

Para as horas que se seguiam, são estabelecidas regras, os fuzileiros vão-se revezando a vigiar o grupo. Há casas de banho portáteis. Uns tentam telefonar às famílias, mas não há rede. E para os fumadores, foram distribuídos três maços de cigarros.

À Lusa, Madali, o intérprete ocasional, disse que pagou 3.000 dinares, a moeda tunisina, para dar o “salto” até à Europa. Não diz se quer ir para França, Alemanha ou qualquer outro local nem se tem familiares. Ele, como os outros, não fala muito. Há desconfiança.

Mas lá diz que tem “a esperança”, isso sim, de chegar à Europa para “arranjar trabalho”. Para onde quer ir? “Para todo o lado menos para a Tunísia.”

Uma das marinheiras dá roupa seca à criança enquanto seca a que a tinha vestida. Brinca com a menina, ajuda-a a pintar desenhos e, com uma folha branca, brincam ao “quantos queres”.

A noite cai, é servida uma refeição quente. Na tenda médica estão agora mãe e filha, está fresco e reina a calma enquanto o “Viana do Castelo” se dirige para o porto de Pozzallo, no sul da Sicília, onde irão desembarcar.

“Hoje foi um grande dia de satisfação, porque salvámos a vida” a 48 pessoas, resume o comandante do navio.

Novas e velhas migrações na rota da Tunísia para a Itália

Os tunisinos resgatados pelo navio patrulha “Viana do Castelo” não encaixam na imagem habitual dos migrantes, muito menos dos refugiados. A rota da Tunísia é diferente.

Quase não há crianças, nem idosos, nem muitas mulheres grávidas a fugir da Síria ou da Eritreia, as imagens com que fotógrafos e televisões “mostraram” a crise do Mediterrâneo, em 2014, e que tornaram Lampedusa um símbolo, com os seus campos de acolhimento a abarrotar.

Também não tem havido botes pneumáticos apinhados de gente.

A experiência da tripulação do navio da Marinha portuguesa é outra.

Os barcos não são de borracha, são de madeira. E, ao longo da missão que se iniciou a 10 de outubro, já foram resgatados grupos em que, para espanto da tripulação, havia quem tivesse telefones iPhone 7 ou Huawei P10, topo de gama, e largas somas em dinheiro.

“São totalmente diferentes daquilo que estávamos habituados a ver na rota da Líbia. É uma rota em que as pessoas já tentam, muitas vezes pela terceira ou quarta vez, fazer a reentrada na Europa. Algumas delas já foram expulsas da Europa por cometerem crimes”, descreve à agência Lusa o comandante do navio, Paulo Galocha.

Ainda assim, o grupo resgatado na sexta-feira – 48 tunisinos, 46 homens, uma mulher e a filha – é diferente.

“Neste caso [de sexta-feira], temos um misto: o migrante económico, pelo seu aspeto visual e pertences, e pessoas que já vão tentar pela segunda ou terceira vez”, acrescentou.

A descrição é crua e vai além do drama dos refugiados que fizeram as notícias na crise de 2014, em que milhares de pessoas morreram tragicamente na travessia do mar.

“Temos um conjunto de pessoas que vão pela segunda e terceira vez. Temos pessoas que falam muito bem italiano e até fizeram referência que trabalharam em plantações de tomate na Sicília. São pessoas que já foram expulsas, cometeram crimes e estão a tentar entrar de novo na Europa”, descreveu Paulo Galocha.

Os números da agência Frontex, de vigilância das fronteiras externas europeias, para a operação no Mediterrâneo são significativos.

Os 48 tunisinos intercetados pelo navio da Marinha portuguesa juntam-se aos mais de 106 mil migrantes resgatados desde o início do ano até 26 de outubro.

Neste período, foram identificados e detidos 241 facilitadores, responsáveis pelo transporte dos migrantes.

O número de mortes confirmadas oficialmente pela Frontex ascende a 246.

Migrantes resgatados por navio da Marinha entregues na Sicília, Itália

Os 48 migrantes resgatados na sexta-feira pela Marinha Portuguesa no Mediterrâneo desembarcaram hoje em Pozzallo e foram entregues às autoridades italianas, 19 horas após terem sido recolhidos de uma embarcação em risco de incêndio.

Eram cerca das 10:30 (09:30 em Lisboa) quando o navio português ao serviço da Frontex, agência europeia de vigilância das fronteiras externas da Europa, atracou no porto italiano e iniciou o desembarque, que se prolongou por cerca de uma hora e meia.

Os primeiros a desembarcar foram um casal, que estava acompanhado pela filha de cinco anos.

À sua espera tinham um autocarro que os levou até a um centro de acolhimento, em Pozzallo.

Recolhidos ao abrigo de uma operação da Frontex, agência europeia de vigilância das fronteiras externas da Europa, o procedimento normal, nestes casos, é os migrantes serem identificados, sendo repatriados os que tiverem antecedentes criminais.

Ao abrigo de um acordo entre Itália e Tunísia, há dois voos semanais, com 30 lugares cada, para o repatriamento.

Seguindo os procedimentos da Frontex, aos restantes é entregue um documento de identificação e são-lhes dados oito dias para deixar o país.

O navio patrulha “Viana do Castelo” está desde 09 de outubro na zona entre a Itália e a Tunísia, em missão de vigilância da Frontex, e termina a missão a 09 de novembro.

Nas últimas semanas, o navio já resgatou um total de 145 pessoas, na sua maioria vinda da Tunísia, em direção à ilha italiana de Lampedusa.

Por Nuno Simas (texto) e José Sena Goulão (fotos), da agência Lusa