“Quartos minúsculos sem janelas”, “cartão a tapar buracos na parede”, portas vedadas com “adesivo do hospital”, isolamentos “sem casa de banho”, “uma sanita e duche para os 40 ou 50 pais” e um “gabinete dos médicos que parece uma despensa”. É assim que as mães de crianças recentemente internadas na Pediatria do Hospital de São João, no Porto, descrevem o ponto a que chegou a situação, que consideram desumana.
“Saturei. Cansei. De discussões de orçamentos, de inaugurações de pedra sobre pedra. As instalações não são dignas. É Serviço Nacional de Saúde. É preciso avançar com a obra” da Ala Pediátrica, reclama Marta após “20 internamentos” da filha de cinco anos, diagnosticada aos oito meses com “um tumor inoperável na cabeça”.
Referindo-se aos contentores provisórios desde 2011, Marta lembra que “as promessas dos governos têm anos” e que não quer saber de quem é a culpa, mas quer sim que algo seja feito: "Quero que avancem. Ou venham ver. Ofereço-me para uma visita guiada”.
Relembra também que, apesar de se falar nas crianças com cancro, existem "outros casos muito complicados nas mesmas condições péssimas”.
De acordo com a ex-gestora de marketing, existem uma “casa de banho e um duche” partilhados por “40 ou 50 pais”, muitos dos quais “não são do Porto” e pernoitam ali “semanas e meses”.
A filha, Mariana, “vê sombras”, mas identifica o Ruca na televisão, desce e sobe sozinha dois lanços de escadas para mostrar a boneca Rosita, salta, canta, dança, anda de triciclo e skate, oferece abraços e quebra o gelo com quem acabou de conhecer com um “És muito fofo” que nunca mais se esquece.
“Se ela está viva e é feliz, é graças à equipa do São João e a todas as valências do hospital. Enquanto viver, a vida dela e a minha, vai ser lá. Já tivemos uns 20 internamentos. Acho que foi isso que me cansou. Farta de promessas, farta. Não se faz. Nem aos miúdos nem aos profissionais”, conta Marta.
Quando, em 2017, começou a ouvir as queixas de Jorge Pires, atual porta-voz da APOHSJ – Associação Pediátrica Oncológica, Marta achava que “ele estava sempre a mandar vir”.
“A doença cansa tanto, absorve tanto, que uma pessoa não se queixa. Ele tinha essa força para criticar. Até que pensei: ele está sempre a reclamar, mas tem razão, em tudo”, recorda.
Clara Miranda, de Barcelos, acompanhou a filha de 15 anos em “todo o tipo de exames, duas operações, sete ciclos de quimioterapia e radioterapia”, entre o verão de 2016 e o de 2017.
“Pensar que a última imagem” do filho de alguém “pode ser a das paredes cinzentas” daqueles contentores “é uma mágoa insuportável”, confessa.
“Porque é que nos descarregaram aqui? Era isso que eu perguntava. O meu marido chegou a colar um cartão na parede do quarto para tapar uma corrente de ar”, recorda.
Uma ressonância “má” faz perspetivar novo internamento e Clara teme voltar a ser “descarregada” num “quarto minúsculo” e “frio”, com “aquele barulho de buzinas imensas em hora de ponta”.
“Não é justo. É uma miséria. Os pais não sabem o que fazer mais. Já gritámos, já perdemos vidas”, descreve.
“Não consigo entender porque não arrancam as obras. Quando está nas mãos do poder fazer alguma coisa e não fazem nada, é uma impotência”, desabafa Clara, que destaca o profissionalismo dos enfermeiros e auxiliares como a única fonte de sobrevivência do serviço.
Abel Silva e Margarida Correia tiveram o filho a receber tratamentos no São João entre novembro de 2014 e março de 2016. Sentem "revolta" e insistem que está na altura de "arranjar condições dignas".
O menino passou por um “quarto minúsculo, sem janela, paredes meias com a copa”, até “aparecer uma vaga nos isolamentos”.
“Às vezes, os médicos andam ali a jogar, a ver quem fica melhor um bocadinho para uma cama ser libertada. É indigno para qualquer contribuinte e desumano para qualquer criança”, afirmam.
“Não podemos continuar à espera. Não consigo perceber como se gasta tanto dinheiro em autoestradas e continuamos, neste século, a ter aqueles contentores”, afirma Margarida.
A 24 de outubro, o primeiro-ministro disse que o reforço do orçamento da Saúde permitirá "avançar com o lançamento" do concurso para a ala pediátrica, mas a nova ministra da tutela, Marta Temido, afirmou não haver data para o procedimento.
Contactado pela agência Lusa, o Ministério da Saúde disse, através de fonte oficial, que não vai "fazer comentários além dos esclarecimentos que já foram prestados". O Hospital de São João também afirma que "não comenta o assunto".
Comentários