A leitura dos Evangelhos, diz, “é tremendamente inspiradora e tremendamente revolucionária”. Esses textos “transformaram o mundo” e o Sermão da Montanha é “um dos textos essenciais da humanidade”, que “não se consegue ler sem estremecer”.

Num tempo de grandes transformações do livro e da leitura, Irene Vallejo mantém-se otimista: “Os livros continuam a ser os lugares da síntese fidedigna do que descobrimos, do que sabemos” e não têm de ser postos contra os ecrãs; ambos “são formas complementares de aproximação ao conhecimento” e o que se deve procurar “é que uns desativem os perigos dos outros”.

Depois de um livro tão fabuloso como "O Infinito Num Junco" ainda é possível voltar a escrever outro livro? Está a trabalhar num novo projeto?

Por enquanto estou a adaptar-me a esta nova situação (risos)… Dou entrevistas, participo em feiras do livro, vídeos e debates, e viajo bastante, trabalhando com as editoras responsáveis pela tradução do meu livro em mais de 30 línguas. Tudo isto em diferentes países, diferentes línguas e culturas. E ainda mantenho a colaboração semanal com o El País e com o [jornal mexicano] Milenio. É um trabalho muito exigente e um grande desafio em que me interessa aprender e assimilar tudo isto que é novo para mim. Desempenho um papel um pouco inesperado para mim, esta presença pública permanente… Não sei como, sem o ter pretendido, assumi um papel de defensora das Humanidades…, talvez pela ausência de outros porta-vozes.

Tenho muita vontade de escrever outro livro, mas agora não tenho a tranquilidade para pensar nisso. Sou de ritmos lentos, preciso de preparar muito bem a estrutura do que vou escrever, antes de o começar a fazer.

Mas tem alguma ideia em vista?

Sim. Tenho duas ideias. Não sei por qual optarei. Debato-me entre uma e outra. Tomo notas, recolho algum material, mas preciso de mais calma, maior tranquilidade para pensar nisso…

Vamos então ao que nos parece faltar neste "O Infinito Num Junco": a Bíblia é um livro, melhor, uma biblioteca, cujas palavras ao longo dos séculos foram proclamadas em alta voz. Mas quase não fala dela. Porquê esta ausência?

É verdade que a menciono aqui e ali. Refiro a tradução dos Setenta, menciono Santo Agostinho, lembro a importância dos cristãos no desenvolvimento do formato códice e outras coisas mais. Mas sim, o facto é que havia uma terceira parte do meu livro que chegaria até à invenção da imprensa. A primeira parte é sobre a Grécia, a segunda sobre Roma, mas queria abordar todos aqueles séculos em que os livros foram manuscritos, séculos em que os livros viveram perigosamente. Quando chega a imprensa, os livros começam a ser facilmente multiplicados e torna-se mais fácil garantir que as obras sobrevivem. Mas enquanto só existiam poucas cópias de cada livro por ser preciso copiá-los palavra a palavra, letra a letra, era muito mais fácil destruírem-se todas as cópias de uma criação literária.

Nessa terceira parte do meu livro abordava essa passagem do mundo pagão ao mundo cristão, tratava de como sobreviveram os livros nas abadias e nos mosteiros medievais, falava da Vulgata como fenómeno de tradução, e muitos outros aspetos que nos caracterizam como “povo do livro”.

Mas o meu editor achou que o ensaio com todas essas três partes ia ficar demasiado volumoso. Teve receio que desanimasse potenciais leitores. E aconselhou-me a centrar-me no mundo antigo greco-latino. Se o livro fosse bem aceite eu poderia escrever um novo ensaio sobre o que neste está apenas esboçado. Quer o tempo medieval, quer o contributo oriental – escrevo sobre o Próximo Oriente, mas não sobre a China e o Japão, sobre a invenção do papel. Enfim, ficaram muitos aspetos de fora, mas recomendaram-me que as abordasse em novo ensaio. E, pronto!… tudo isso pode ser o gérmen de outro livro.

“Sou uma apaixonada por Santo Agostinho”

Que temas podem aparecer?

Com a queda do mundo antigo surgem muitas questões interessantes: que rotas e caminhos segue o conhecimento, como vai encontrando lugares em que o protegem, o amparam… e também com muitos conflitos, muitos dilemas nascidos do enfrentamento do mundo cristão com outra cultura, outras religiões.

Há toda essa interrogação dos intelectuais cristãos – “Que fazemos? Assumimos ou não a cultura deste mundo pagão?…” – e a adoção de soluções intermédias, desde os que queriam fazer tábua rasa dessas culturas, até aos que queriam apropriar-se de identidades pagãs da Antiguidade para as cristianizar. O que se procurou fazer com Séneca é muito típico deste último esforço: quase se cristianizou a sua obra. E a Virgílio também, com a interpretação de que a sua "Elegia" antecipa o nascimento de Cristo. Fizeram-se muitas operações para assimilar a cultura existente e em simultâneo o cristianismo vai absorvendo o platonismo e passa por diversas etapas, formando uma mistura muito curiosa de elementos em princípio discordantes que vai fazendo o seu caminho e que finalmente cria uma cultura mestiça. Essa mestiçagem interessa-me muito.

Então já há um ponto de partida para um novo livro…

Sim, há um ponto de partida para um novo livro. Por outro lado, também o mundo islâmico assume parte da tradição clássica e reaparece na Europa um pouco mais à frente… todas estas operações me parecem fascinantes, mas disseram-me: isto já é demasiado complexo, vai tornar o ensaio demasiado pesado, com mais de 700 páginas…

E a Bíblia terá significado, nesse eventual novo livro…

Sim, há muitos aspetos interessantes. Se pensarmos no início do Evangelho [segundo São João] que começa com “No princípio era a palavra” e a importância do “logos” que tem muito a ver com a filosofia antiga…

É muito interessante ver como se vão encontrando e reinterpretando os conceitos de uma forma tão curiosa. Voltar a ler e a reler os clássicos é uma tendência fortíssima do Renascimento que não para de reinterpretar o presente a partir deles. Coisa que continuamos a fazer hoje. Saramago não faz outra coisa quando utiliza o mito da caverna para reinterpretar o mundo. Ele tinha, tal como Platão, essa vocação de utilizar mitos e alegorias para explicar a realidade. Era um forjador de mitos e alegorias e essa forma de pensar tem muito a ver com toda a tradição ocidental. Saramago pensa o futuro não a partir do costumbrismo e do realismo, mas sim a partir da metáfora, do mito. E é por isso que a sua literatura é tão potente e tão universal.

Então não foi o facto dos seus pais se terem enfrentado com o nacional-catolicismo da Espanha franquista que a impediu de abordar mais profundamente a Bíblia…

Não, não, não… Os meus pais foram ambos pessoas muito comprometidas na luta contra a ditadura, mas nessa luta houve um contacto com pessoas religiosas mais progressistas, envolvidas num catolicismo social e que participaram ativamente nessa luta. O mundo das religiões tem também muitas facetas e muita complexidade. Não é verdade que estivesse todo apenas de um lado.

Os meus pais educaram-me numa cultura cristã, tenho muitas referências católicas e talvez por isso seja uma apaixonada por uma figura como Santo Agostinho e lhe dê tanto espaço no meu livro. O seu conceito do mundo é algo que procuro conhecer e aprofundar. É muito interessante ver como foi transformando o legado clássico que recebeu.

Do mesmo modo, o mundo medieval descrito por Umberto Eco interessa-me muitíssimo. Porque havia bibliotecas nos mosteiros e abadias? Não era necessário. Não precisavam. E, no entanto, foram os grandes refúgios dos livros. Os caminhos através dos quais os livros entraram nessas fortalezas medievais são muito curiosos e interessantes. Não havia razão para que ali fossem parar, mas foi ali que encontraram refúgio.

À Bíblia acontece o mesmo que acontece aos clássicos: têm uma importância tão enorme na nossa cultura que olhamos para eles como livros cuja mensagem revolucionária estivesse de algum modo neutralizada

E hoje, que é a Bíblia para si?

À Bíblia acontece o mesmo que acontece aos clássicos: têm uma importância tão enorme na nossa cultura que olhamos para eles como livros cuja mensagem revolucionária estivesse de algum modo neutralizada. Olhamo-los como grandes autoridades, como mensagens aceites, totalmente assumidas, que se leem distraidamente, sem nos darmos conta de que há neles ideias profundamente renovadoras e arriscadas que na sua época foram autênticos terramotos e que continuam a sê-lo hoje.

A meu ver, a leitura dos Evangelhos é tremendamente inspiradora e tremendamente revolucionária. Mas não nos damos conta, porque os clássicos estão como que anestesiados, fazem parte de um ruído ambiente que nos impede de os ler compreendendo até ao fim as mensagens que nos transmitem. E são mensagens de rutura, espantosamente revolucionárias, transformadoras. É esse espanto que encontro nesses livros que me interessa reivindicar. Olhamos para eles como pessoas respeitáveis que viveram comodamente, sendo reconhecidas no seu tempo como grandes autoridades. Não foi assim. No seu tempo foram sujeitos a obstáculos, exílios, perseguições e não foram compreendidos.

Li com muito interesse o livro de Emmanuel Carrère, ["O Reino", ed. Tinta da China] que muito me influenciou ao escrever "O Infinito Num Junco". É um relato maravilhoso sobre as personagens dos Evangelhos e uma reflexão sobre como contamos histórias, porque as contamos, quem são os que se encarregam de recolher a narrativa e dar-lhe a forma definitiva. Tudo questões que me interessam imenso.

Há um livro da Bíblia que mais a toque?

O Antigo Testamento tem livros muito duros, muito violentos. Leio-os com espanto pelo contraste com o Novo Testamento. Gosto muito do Cântico dos Cânticos pela influência que teve na tradição literária, de Frei Luís de Leão a São João da Cruz, e toda a poesia que nos chega através das suas imagens.

Mas, na verdade, prefiro os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos porque me parecem textos profundamente renovadores e que, como os de Sócrates e de outros pensadores, são textos que transformaram o mundo. Esse poder transformador parece-me muito importante. O Sermão da Montanha é, para mim, um dos textos essenciais da humanidade. Não podes lê-lo sem estremeceres. É um texto poderosíssimo e muito valioso.

E há um livro que seja o livro da sua vida?

Sempre que me perguntam qual seria o livro que eu salvaria no mundo Fahrenheit 451 respondo sempre: a "Odisseia" [Homero, tradução de Frederico Lourenço; ed. Quetzal]. Porque, para mim, é o princípio a que me sinto ligada por muitos ecos emocionais. O meu pai contava-me os seus episódios quando eu era criança, para me adormecer. Eu era tão pequena, teria quatro anos, que acreditava ser o meu pai o autor daquela história. Ninguém me explicava, naquele tempo, que os livros tinham autores. Contavam-me histórias, simplesmente, e eu pensava que quem me as contava era quem as tinha inventado. Acreditei, durante muito tempo, que Homero era o meu pai. E a "Odisseia" lembra-me sempre o meu pai, que morreu demasiado cedo e foi uma pessoa muito, muito, importante na minha vida. Creio ter sido ele, por me ter contado a "Odisseia", não lendo-a, mas com as suas próprias palavras, que me transformou na apaixonada pela literatura, pelas palavras e pelos clássicos que sou hoje.

Mantenho essa fantasia de que o autor da "Odisseia" é o meu pai, como se de algum modo lhe pertencesse, e por isso, intimamente, relaciono-a indissoluvelmente com a sua memória. E também a escolheria por ser uma narrativa que inspirou tanta literatura, que manteve uma enorme capacidade de inspirar tantos autores. Além do mais é um poema em que as personagens femininas têm muita importância, o que é absolutamente novo. Nada tem a ver com a "Ilíada", em que tudo são conflitos bélicos entre homens e em que as mulheres apenas fazem de figuras de corpo presente. Na "Odisseia" há Penélope, Nausica, Circe… tantos modelos de mulheres e tantos modos de entender a narrativa que se abre a personagens como o porqueiro, os reis… o ciclo das personagens fantasiosas, a realidade.

Além disso há a tensão permanente em Ulisses, entre o desejo de voltar a casa, à segurança, ao conhecido, à família e, ao mesmo tempo, o de entreter-se na aventura, de nunca rejeitar uma oportunidade de viajar, de conhecer. Creio que são as duas tensões da nossa vida: o desejo de voltar ao lugar seguro, onde está o nosso refúgio e os nossos seres queridos e, por outro lado, o desejo de aventura de risco. E as nossas vidas fazem-se assim, entre estas duas tensões. São, nesse sentido, Odisseias oscilando entre Ítaca e Troia.

“As pessoas amam os clássicos”

No início referia o papel de defensora das Humanidades em que, de repente, se viu investida. Pensa que será possível inverter o atual desinteresse pelas matérias clássicas a nível da educação?

A situação não é fácil. Em Espanha os professores estão muito mobilizados e conscientes. São quem realmente conta nesta luta, pois são eles quem no dia-a-dia transmitem o saber, as ideias, o conhecimento. Mas sempre pensei que esta questão devia estar presente nos media, nas redes sociais, no debate público. É o que tento fazer…

De certo modo, o que sucedeu com "O Infinito Num Junco" é muito peculiar, porque é um livro que aborda todas essas matérias que teoricamente não interessam a ninguém, que são antiquadas, pertencem a outra época, não têm nada que ver com o mundo atual.

Passamos a vida a ouvir: para que estudas filologia clássica? Isso não te vai permitir ter nenhum trabalho de jeito, não te vai levar a nenhum sítio… pois bem, de alguma maneira, "O Infinito Num Junco" foi uma resposta a esse modo de pensar! Houve muita gente que se sentiu interessada pelo tema, por um livro sobre os clássicos, o que significa que o interesse existe.

Acha mesmo?

Durante a pandemia, as pessoas voltaram aos clássicos, procuraram certezas nos clássicos! Todos esses fenómenos são modos de rebater essa argumentação contra a inutilidade das Humanidades e dos clássicos. E assim me converti, sem o pretender, em representante dessa ideia. O que não é único: no Reino Unido, Mary Beard tornou-se numa personagem muito importante com os seus documentários, programas de televisão e livros muito atrativos também para os jovens; em Itália, Andrea Marcolongo transformou um livro sobre o grego ["A Língua dos Deuses – 9 Razões Para Amar o Grego" ed. Gradiva, 244 pág.] num best-seller internacional.

Há fenómenos que indicam que as pessoas amam os clássicos, se identificam com essas histórias, se revêm nelas e nas suas emoções. Mas, contudo, permanece um discurso que insiste em dizer-nos que já não têm qualquer valor e que devem ter um lugar residual na educação.

Estamos a entrar numa época em que os poderes combatem os livros?

Os poderes sempre maltrataram os livros em todas as épocas da história. As fogueiras de livros, a proibição de livros não são coisas do passado. Não se pense que os livros estão definitivamente salvos e que não correm nenhum risco. Temos visto episódios recentes, sobretudo em ditaduras, mas também em democracias, muito inquietantes. Basta lembrar, por exemplo, o caso de Roberto Saviano ameaçado de morte depois de ter publicado "Os Meninos da Camorra" [ed. Alfaguara], para nos darmos conta de que mesmo as democracias não estão isentas destas tensões e que os livros estão sempre em perigo. Sempre. Em todas as épocas. Os livros são objetos frágeis. O que é assombroso é que sejam tão poderosos. Não me espanta que sejam frágeis, espanta-me que sejam tão poderosos.

Mas por outro lado, gosto de pensar que a democratização dos livros atingiu nos nossos dias uma expansão admirável. Graças às livrarias, às bibliotecas, às escolas, à educação pública, os livros deixaram de ser um privilégio de reis, de aristocratas, dos ricos e hoje há mais gente capaz de ler e mais livros do que em qualquer outro momento da história. Os clássicos greco-latinos foram mais lidos no século XX do que no século em que foram escritos.

Ou seja, o balanço é ambivalente. Mas também é certo que a cultura tende muito a reproduzir os discursos apocalípticos – estamos à beira do fim dos livros, do fim da literatura… A verdade é que os livros têm sobrevivido e durante esta pandemia muita gente reencontrou-se com a sua leitura.

Apesar de cheio de histórias de destruição de livros e bibliotecas inteiras, "O Infinito Num Junco" não é um livro trágico, respira uma bonomia feliz, uma confiança tranquila…. Isso quer dizer que, para si, a palavra escrita é indestrutível?

Provavelmente isso quer dizer que sou uma otimista (risos)… Parto do princípio de que a palavra e as histórias são algo muito frágil. É muito difícil conservar uma narrativa, uma história como, por exemplo, a "Ilíada". Que possibilidade tinha de chegar até nós uma história que se arrastou na oralidade durante séculos, contada pelos bardos de palácio em palácio? Teriam alguma vez imaginado que mais de dois mil anos depois continuaríamos a conhecer Hector e Aquiles? Não, não acredito que alguma vez o tenham imaginado! … E, contudo, sobreviveu!

Houve muitas fogueiras, muitos ataques, muita barbárie e há também muitos livros perigosos e danosos, nem todos os livros são instrumentos de progresso e de avanço: há livros racistas, instigadores do ódio, violentos. Os livros são ambíguos como nós, como a nossa mente, como as nossas ideias. Têm claridade e sombras.  Mas o balanço da sobrevivência dos clássicos salvos por pessoas anónimas que os amavam – copistas, leitores, bibliotecários, tradutores, viajantes, comerciantes, monjas e monges – é muito positivo. É mesmo fantástico como a obra de Aristóteles e outros textos da Antiguidade passam ao mundo islâmico e se salvam graças a uma outra cultura, a uma outra religião e uma outra civilização e regressam à Europa através dos tradutores da Península Ibérica, à Escola de Toledo…

É, afinal, a história da salvação de um legado de palavras contra todos os prognósticos, uma história que nos deixa a obrigação de continuar a cadeia de transmissões. Um pouco como José Saramago, alguém que nasce numa casa sem livros, muito humilde, e torna-se escritor… os livros transformam a sua vida e ele transforma a vida de tantos leitores através dos seus livros. É um símbolo daquilo que os livros nos podem fazer: nós salvamos os livros para que eles nos salvem a nós.

“Os livros trazem a experiência, os ecrãs a conveniência”

Encanta-a o facto de haver, hoje, tanta gente que possa ler e escrever. Admira os graffiti por eles serem expressão de pessoas que durante muito tempo não tinham a sua linguagem, nem conseguiam exprimir-se por escrito. Hoje, na Internet, todos se podem exprimir. As redes sociais são as novas paredes onde se podem inscrever os graffiti por escrever?

Até certo ponto sim, as redes sociais são um pouco como as portas das casas de banho públicas. Para mim é muito importante que ninguém fique excluído da escrita, da literatura e isso encaro-o como um triunfo. Não haver pessoas que, por causa do seu nascimento, a sua origem, a sua cor de pele, o seu género, não possam aproximar-se da leitura, da palavra escrita. Mesmo que isto não garanta que a utilizem bem, não significa que não seja, em si mesmo, um progresso. Hoje, vivemos num tempo em que alguém que ame o saber pode educar-se a si próprio, pode investigar, procurar e obter muito mais informação do que alguma vez tivemos à nossa disposição. Porém, todas as ferramentas sofrem da mesma ambiguidade: podem-se utilizar para o bem ou para o mal. Quanta mais liberdade temos, maior responsabilidade no seu uso. Todos os avanços engendram novos dilemas, maiores problemas, novas preocupações.

Creio que neste avanço em direção à maior complexidade do mundo, os livros são a ferramenta que melhor fala desta complexidade. Os ecrãs, as paredes em que toda a gente escreve a sua frase breve para que circule rapidamente, sem reflexão, sem pensamento, sem esse esforço de reflexão de toda uma vida que é a filosofia, vão-nos encaminhando para um mundo de slogans de consumo rápido e fugaz. Os livros, os antigos, os velhíssimos, os remotos livros são a forma de utilizar a palavra que melhor nos ajuda num mundo que se vai tornando cada vez mais complexo, porque eles próprios são muito mais complexos do que os novos meios. O livro tem outro tempo, outro ritmo, vai mais fundo no questionamento, debate, tenta antecipar problemas, dificuldades e esperanças.

Mas, apesar de lermos mais, aprendemos com a história? Não estamos sempre a repetir os mesmos erros?

Desde que existe a escrita e os livros, a velocidade do conhecimento, do progresso, da técnica aumentou exponencialmente. Todo o pensamento constrói-se agora sobre o que já foi pensado, sobre o legado anterior. Durante o mundo da oralidade estávamos sempre a recomeçar de novo porque as descobertas se perdiam.

Contudo, hoje não são os livros os repositórios desse conhecimento; são as máquinas, os sistemas informáticos, que descobrem e respondem inclusive a perguntas que não tínhamos colocado…

Creio que os livros continuam a ter uma credibilidade especial e única que não reconhecemos a outros meios. Os livros continuam a ser os lugares da síntese fidedigna do que descobrimos, do que sabemos. Têm autor e conhecemos os rostos das pessoas responsáveis por os terem escrito. Não temos de pôr os livros contra os ecrãs. São formas complementares de aproximação ao conhecimento. O que devemos procurar é que uns desativem os perigos dos outros. Defendo a convivência de ambos, mais do que a concorrência entre eles. Os livros trazem a experiência, os ecrãs a conveniência, são mais práticos e mais rápidos.