“[Os descobrimentos] É um tema fraturante, porque está na comunicação social. Eles [os alunos], de uma maneira ou de outra, contactaram com as fraturas e com as dissensões que existem em torno do tema; ouviram falar dos grafítis nos monumentos, seja no Padrão dos Descobrimentos ou naquele monumento ridículo em frente ao museu de São Roque [estátua do padre António Vieira, que foi vandalizada]", começa por dizer Miguel Monteiro de Barros, presidente da Associação de Professores de História (APH), em entrevista à Lusa.
Miguel Monteiro de Barros tem investigado temas como o racismo e a escravatura, defende uma sala de aula em que os alunos partilhem as suas ideias prévias sobre os temas, para abrir a discussão.
Para o presidente da APH, os manuais portugueses continuam a apresentar os descobrimentos em tom epopeico, que atingiu o auge no Estado Novo, ainda que já assumam a escravatura como uma página negra da história de Portugal.
Para Monteiro de Barros, os descobrimentos portugueses são o tema mais fraturante da história de Portugal e que isso se nota nas salas de aulas, com discussões mais ou menos acaloradas.
“Uma parte dos alunos portugueses até pode ter ouvido falar em casa dos descobrimentos e da expansão portuguesa, mas a maioria daqueles alunos [com ascendentes nas antigas colónias] tem uma visão completamente diferente do que é a chegada dos portugueses às terras de onde os pais são originários”, disse.
E prosseguiu: “Muitas vezes havia discussões na sala de aula, não tanto com os alunos africanos, mas mais com os brasileiros, sobre a questão do achamento e descobrimento, a questão de já haver povos indígenas no Brasil”, disse.
Para Miguel Monteiro de Barros, é fácil explicar o Padrão dos Descobrimentos, construído “no contexto do Estado Novo” (1940). “Já é difícil, muito difícil, explicar ou tentar justificar o monumento ao Padre António Vieira, em frente ao Museu de São Roque”, em Lisboa, inaugurado em 2017.
O docente sublinha que 2016 representou um marco para a atualização dos conteúdos que, desde então, deixaram de ter esse tom epopeico. Mas tal não aconteceu nos manuais, em que a abordagem dos descobrimentos “não mudou muito”, ficando as mudanças por “aspetos pontuais e entretanto esclarecidos pela historiografia”.
Tendo em conta “a manualização do ensino” que existe em Portugal, em que os professores começam a "assumir o manual como sendo um programa”, a narrativa épica continua a registar-se.
Mas agora, e também como resultado das propostas apresentadas em 2016, os manuais trabalham no tema dos descobrimentos “a submissão violenta de diversos povos” e reconhecem que “a escravatura foi um processo negativo, basicamente, e que é uma parte negra da página da história da Europa e da história de Portugal”.
Uma cisão em relação ao que os manuais advogavam no Estado Novo, em que professores e alunos foram doutrinados de que o colonialismo português até não era o pior, com argumentos como a ausência de apartheid, o facto de os portugueses se misturarem e “todos estes clichés” que apresentavam os portugueses como extraordinários colonizadores.
“Tudo isto é uma manipulação, tem a ver com o Estado Novo. A máquina de propaganda do Estado Novo era muito poderosa e conseguiram instalar estas ideias na população portuguesa”, refere.
Guerra colonial é apenas “uma passagem” nos programas de história em Portugal
O presidente da Associação de Professores de História nota ainda que a guerra colonial é apenas “uma passagem” nos programas da disciplina de história em Portugal, talvez porque “ainda não passou o tempo suficiente”.
“A guerra colonial dos programas é uma passagem. No nono ano, se é abordada, é muito de passagem. Fala-se que houve uma guerra colonial, mas não se entra em pormenores”, disse Miguel Monteiro de Barros à Lusa.
E acrescentou: “Não há descrições, eu acho que são raros os professores que perdem (entre aspas) algum tempo a lecionar sobre a guerra colonial, porque também não há muita literatura sobre o assunto”.
“Primeiro, o tempo é exíguo. Segundo, eu acho que são conteúdos em que ainda não há reflexão histórica de qualidade suficiente para que se possa lecionar essas questões de uma forma, o mais possível, desapaixonadamente, porque eu acho que há ainda muita ferida aberta”, indicou.
O historiador recordou os alemães, para quem “é preciso passar 50 anos, e a maioria das pessoas morrer para um país começar a analisar aquelas memórias e aquelas memórias passarem a ser história”.
“Eu acho que muitos ex-combatentes só agora é que começam a falar e aquilo que não conseguiram dizer aos filhos, curiosamente conseguem dizer aos netos”, adiantou.
Miguel Monteiro de Barros considerou que “Portugal tem feito muito trabalho nesse sentido da preservação da memória dos ex-combatentes, mas dos combatentes portugueses”.
“Da parte dos países africanos, temos um problema - falta de meios, uma esperança média de vida muito menor e, acredito, que muitos dos ex-combatentes provavelmente terão já falecido, ao contrário dos portugueses”, observou.
Nos países africanos “há alguns arquivos, mas não funcionam da mesma forma que os arquivos portugueses, nomeadamente online, e é difícil encontrar testemunhos até sobre outras questões, como, por exemplo, o trabalho forçado”.
“Nunca nos podemos esquecer que a escravatura foi substituída pelo trabalho forçado e o trabalho forçado durou nos territórios ultramarinos até 61 e nalguns casos provavelmente até 74”, disse.
Miguel Monteiro de Barros apontou “um mau estar e um desconforto” das pessoas quando estes temas são abordados.
“Já tive pessoas que me disseram por que [razão] nós temos que falar destas coisas, por que é que não falamos das partes positivas. Ora, a questão é que temos sempre falado das partes positivas”, concluiu.
A guerra colonial portuguesa começou em 1961 e durou até 1974, ano da revolução de 25 de Abril.
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