Em Agosto de 2011, de écharpe e ténis, João Duque, então presidente do ISEG, deu uma entrevista polémica em que anunciava que a Europa ia desmoronar-se. Diz-se que o fim tem início quando começamos a falar nele; hoje a União Europeia está a braços com o Brexit e Itália ameaça transformar-se num pesadelo ainda maior.

Desta vez não interrompeu as férias, mas a conversa foi marcada para o dia em que foi buscar o fraque para o casamento da filha mais velha. E acabou adiada. A conversa, não o casamento. As premonições mantiveram-se, também em relação a Portugal, ao envelhecimento da população e a quem, inevitavelmente, irá pagar isto tudo.

O professor de Finanças fala do longo e do curto prazo, dos problemas que o orçamento do Estado para 2019, já aprovado pela Assembleia da República e que sem grandes alterações em relação ao documento original elaborado pelo governo liderado por António Costa não resolve, das greves nacionais e do "sarilho" que é o Sporting. O actual e o clube que conheceu por dentro quando era miúdo e o médico lhe disse que tinha de fazer ginástica para resolver um problema de saúde. Foi por aí que começámos.

Fiz ginástica dos oito aos 26 anos, primeiro de exibição, a partir dos 14/15 anos saltos de trampolim

Foi membro da Comissão de Fiscalização do Sporting, mas a sua ligação ao clube é muito mais antiga, fez ginástica e chegou a entrar em competições, não foi?

Sim, fui atleta do Sporting. Inscrevi-me na ginástica com oito anos de idade por motivos de saúde: o médico disse que eu tinha o peito em quilha, precisava de fazer desporto. Como o meu avô era do Sporting, o meu pai era do Sporting, foi decidido que eu ia para a ginástica do Sporting. E fui. Fiz ginástica dos oito aos 26 anos, primeiro de exibição, acho que era assim que se chamava, e a partir dos 14/15 anos fiz saltos de trampolim. A classe saltava bastante bem, de tal maneira que o Sporting acabou por criar uma área desportiva específica de trampolins. E fui campeão nacional três vezes, com 16, 17 e 18 anos. Depois continuei a fazer só ginástica de exibição, mas aí já estava na faculdade e, ou treinava mais tempo por dia, e isso prejudicava o estudo e as minhas relações sociais, ou desistia da modalidade, que além de tudo representava um risco muito elevado.

Risco de acidentes e lesões?

Sim. Ainda hoje, quando vejo campeonatos de trampolins, saltos na cama elástica, impressiono-me. É perigosíssimo. Vejo outros fazer coisas que eu fiz, vejo-me ali - fico arrepiado só de falar -, fazem-se lesões terríveis. E esse era o meu pavor. Pondo as coisas na balança, sou muito realista, pensava: "Tenho condições para ser campeão?" "Não". "Vou lutar pela 10.ª ou pela 9.ª posição?" "Não". Mas havia coisas muito mais giras, estava integrado e continuei a desenvolver aquilo de que gostava numa classe de ginástica, que era um grupo de amigos. Os melhores amigos. Casámos com as raparigas das classes de ginástica, fomos padrinhos dos filhos uns dos outros. São essas as minhas grandes amizades da juventude. E não fomos todos para Desporto, uns foram para Economia, outros para Medicina, outros para Direito, e isso dava-nos uma diversidade enorme e engraçada, não competíamos entre nós, não havia rivalidades.

Era um menino certinho?

Tinha um boa relação com a estrutura, era mais institucional, fazia bem ginástica, era bom aluno, estava de acordo com o status quo e, portanto, gostavam muito de mim. Eu também gostava deles. E isso acabou por levar a situações, como ter sido porta-estandarte do Sporting no dia do aniversário do clube porque o sócio n.º1, a quem cabe a honra de carregar a bandeira, estava já muito debilitado. É uma daquelas coisas que nos marca, e que nos marca mais tarde - apesar ter sido importante na época, não me apercebi logo do peso daquele acto. Depois saí do Sporting em litígio com a direcção.

Porquê o conflito?

Porque o professor de ginástica, que tinha vindo substituir o anterior, queria uma coisa e nós, atletas, queríamos outra. Já tínhamos desenvolvido no grupo o conceito do que queríamos fazer, que era muito mais forte do que o que os outros queriam que fizéssemos. Era como numa equipa de futebol os jogadores dizerem "queremos jogar a atacar" e o treinador dizer "vamos jogar à defesa". Só que os jogadores responderam: "Bem, queres defender, defendes, mas com outra equipa. Nós vamos atacar". Foi o que fizemos, dissemos: "Ou sai ele, ou saímos nós". O professor Reis Pinto, que deve ter pensado "serei Henrique, mas não sou estúpido", disse: "Estejam descansados que no início do novo ano lectivo lá estará outra equipa dirigente". Acontece que no início do ano estava lá o mesmo tipo. Equipamo-nos e dissemos: "Não foi isto que acordámos, já conhecem a nossa decisão", e fomos dali para fora. Foi um dia muito triste para mim porque saí da ginástica do Sporting.

Para onde foram?

Fomos para uma cervejaria para combinar o que se fazer a seguir. Era uma classe, uma equipa que tem um emblema e, de repente, ficou sem esse emblema. A primeira coisa que pensámos foi para onde não podíamos ir: para o Benfica – só um de nós era do Benfica, o Carlos Farinha. Não podíamos ir para o Ginásio Clube porque éramos rivais, e eles estavam servidos. O Lisboa Ginásio era uma possibilidade, mas tinha uma equipa. Então decidimos ir oferecer-nos ao Ateneu Comercial de Lisboa, que já tinha tido uma classe de homens e que estava na ruína. Estivemos lá três anos. Fomos buscar um professor que nos liderou muito bem, perguntou-nos o que queríamos fazer e só nos orientou nisso. Espectacular, divertimo-nos imenso. Fazíamos imensas coisas que não tinham nada a ver com ginástica para angariar dinheiro, desde jantares em que servíamos à mesa, shows em que éramos os artistas, venda de bilhetes, tudo. Só não fazíamos a comida porque tínhamos um acordo com uma cozinheira. Mas até conseguimos fazer amizade com alguns artistas, como a Wanda Stuart, irmã de uma ginasta, que foi fazer um pezinho para abrilhantar um dos nossos jantares para podermos cobrar mais do que o prato.

E como correram as coisas no Ateneu em termos desportivos?

Foi criado o torneio Moura e Sá, em Torres Vedras, para disputar contra o Sporting Clube de Portugal. Rapámos logo o torneio nesse ano, no ano seguinte e no outro. Como o título era para ser dado a quem ganhasse três vezes seguidas ou cinco vezes alternadas, ficou logo nosso, acabou-se a competição. Parece que recentemente ressuscitaram a iniciativa, que é bastante engraçada, para classes que não são de competição, mas que têm o mesmo tipo de exercícios e de dinâmica. Para mim foi enriquecedor perceber o que é ser jogador de um clube e fã de outro contra quem se vai competir. Estava a disputar um troféu contra o Sporting e não havia a mínima dúvida na minha cabeça sobre o que eu queria: ganhar ao Sporting. Essa experiência deu-me ensinamentos muito bons sobre o que deve ser o desporto. Fiz amizade com um sujeito do Ginásio Clube contra quem disputava o campeonato quando fazia competição em trampolins. Era uma pessoa com quem tinha empatia e queria ganhar-lhe, mas não queria que ele caísse, queria que ele se saísse bem e queria fazer melhor do que ele. E isso era bonito, queria ganhar por mérito. No último campeonato ficámos em segundo lugar ex aequo e foi das coisas que me deu mais prazer.

Hoje era capaz de voltar a saltar, tem agilidade para isso?

Ter agilidade tenho, acho, mas é muito perigoso. Os problemas na coluna são graves, a pessoa não deve pensar que chega lá e salta, assim sem mais nem menos. Mas se me disserem "tens de fazer um mortal", faço. Só não sei como fico depois de cair. Provavelmente fico de pé, quase de certeza que sim. A pergunta é: e a coluna, vai ressentir-se? Pois, esse é o problema. Mas aqui há tempos ainda fazia pinos e aquelas coisas na praia. Mas não gosto muito de pinos na areia.

É importante criar um bom ambiente de balneário para que os atletas criem laços de amizade e se divirtam a fazer as coisas e ganhem gosto por ganhar. (...) Estou convencido de que grande parte do êxito das equipas está aí.

De volta ao Sporting, já está tudo sanado? O que acha que vai acontecer?

Não, nada bem. Aquilo é um sarilho. Isto é, é preciso ter muita cabeça e ter sorte, também. E é preciso desenvolver um ambiente no balneário. Estou a falar do Sporting nas várias modalidades; têm de gostar de estar uns com os outros. Não posso estar a trabalhar com um tipo e a pensar: "Aquele é um palerma". Em todos os grupos há indivíduos que são meio patetas, mas é o nosso pateta de estimação, gostamos dele. Isso é muito importante. "Olha, aquele tem a mania que é vedeta". Então, se é vedeta faz tudo. É importante criar um bom ambiente de balneário para que os atletas criem laços de amizade e se divirtam a fazer as coisas e ganhem gosto por ganhar. E isso é muito difícil. Estou convencido de que grande parte do êxito das equipas está aí. No Benfica, até há um ano ou dois, penso que se sentia isso. O grupo entra em campo e sente-se que gostam do que estão a fazer. A partir daí a vitória é fácil. Não é imposta, não é pedida, é assim. E se lhes trocassem a camisola, como já desenvolveram as tais relações pessoais fortes, continuavam a gostar de jogar daquela maneira, fosse no Carcavelinhos ou no Real Madrid. Outra coisa: não se entende que hoje todos ganhem tanto dinheiro com o espectáculo do futebol excepto os clubes. Os clubes estão de tanga, aflitos. Ganham os empresários, ganham os jogadores, ganham os organizadores, a comunicação social, e os clubes, nada. Acho completamente absurdo. De alguma maneira toda esta gente tem de prescindir de alguma coisa para que os clubes consigam manter-se, senão matam o hospedeiro.

Bruno de Carvalho cometeu, a meu ver, um erro: querer que o clube fosse uma coisa diferente daquilo que é

As SAD não vieram resolver nada?

Veja esta coisa do Belenenses, é caricata. Há dois clubes, o clube SAD e o clube clube. As pessoas, os sócios, são de quem? É estranhíssimo. O Sporting, com o tempo, corre o risco de se desagregar. Há uma coisa curiosa no Sporting, também. Bruno de Carvalho cometeu, a meu ver, um erro: querer que o clube fosse uma coisa diferente daquilo que é. A coerência é muito importante para as organizações. As instituições têm de ser coerentes, o que não quer dizer que sejam imutáveis. Mas não podem deitar fora o passado. Podem adaptar-se ao futuro, mas herdam um passado. Se não querem esse passado, mais vale arrancarem com um projecto de raiz e criar o seu passado. Essa coisa de deitar fora a história do Sporting, os condes e os viscondes, não é possível. Se alguma coisa restava aos sportinguistas, era a crença de serem diferentes dos outros (não interessa se são). A conversa acabava sempre da mesma maneira: "Não ganhámos, mas pelo menos somos diferentes". Agora, quando a pessoa não ganha e já não tem mais nada para dizer, fica encurralada. É como querer que o Benfica acabe com a sua raiz popular, bairrista, e passe a ser um clube de elites, em que só tem lugar quem tiver mais de 100 mil euros. "Ah, mas assim o estádio fica vazio". "Paciência, é o Benfica". Não, não é. É outra coisa. Pode até ser um projecto de sucesso, mas não é o Benfica. Ou seria como o Porto dizer que a partir de agora a sua base é em Coimbra e o estádio em Aveiro. Não faz sentido. O que o Bruno de Carvalho tentou fazer foi isto, decepar, cortar com o passado. Podia ter mudado o trajecto, mas litigar com o passado é uma coisa horrível, daí o insucesso.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Ainda assim, e tendo em conta o seu comportamento, Bruno de Carvalho esteve ou não demasiado tempo à frente do Sporting?

O método Bruno de Carvalho e a forma de conquistar as organizações não é um bom exemplo para Portugal e não pode ser um exemplo. E os clubes de futebol têm essa responsabilidade. No fundo, são como a TAP, que é uma empresa que tem uma expressão social muito maior do que aquilo que vale em termos económicos. Vale muito mais a imagem do que os resultados, as pessoas que emprega, etc. Não é proporcional. Uma empresa como a Sonae, por exemplo, tem um valor económico muitíssimo superior ao da TAP. No entanto, a TAP mexe muito mais com os portugueses, é uma companhia de bandeira. Mesmo valendo menos, as suas acções causam maior impacto. Com os clubes de futebol passa-se o mesmo. Há dez milhões de portugueses, quinze milhões espalhados pelo mundo, que vibram com o que se passa nos clubes nacionais. E o que os clubes fazem é projectado de tal maneira, tem um tal impacto social, que é importante não relativizar. Por isso, os clubes e os seus representantes têm de ser um exemplo, e são tão importantes que podem melhorar a sociedade, têm essa possibilidade.

Ou destruí-la...

Por isso é perigoso. Agora repare: o modelo vinga. Se esse modelo é péssimo do ponto de vista social, é o caos. Tem de haver limites e acho muito bem que a justiça actue e penalize, porque uma sentença sobre um dirigente ou ex-dirigente desportivo não é a mesma coisa que uma pena sobre um director ou administrador de uma empresa qualquer. O Sporting, como sociedade anónima, é uma empresa pequena, tem 100 mil sócios. É grande para Portugal, mas é relativamente pequena em termos de expressão económica, não tem a dimensão toda que lhe é dada pelo ideário que se faz na cabeça das pessoas. Se há trajectos à margem da lei e são esses que vencem, é terrível. E a ideia que passa é que vale a pena ser assim; vale a pena cuspir na cara dos adversários, vale a pena torpedear as regras, vale a pena ser ditador, vale a pena bater nos jogadores. Imagine que depois daquela sova [agressões na Academia de Alcochete] o Sporting ganhava a taça. Iam dizer que o Sporting tinha ganho por causa do puxão de orelhas. Ainda bem que perdeu, para mostrar que não é assim que se faz para ganhar campeonatos. Agora o Benfica está um bocado em baixo: pancada para cima. Era bonito, antes de entrarem no jogo, chicotada a sério. Não pode ser. Não se pode ter como exemplo presidentes de clubes que atiram garrafas com ministros das Finanças ao lado [história tornada pública numa entrevista ao Sapo 24].

O que faria se fosse consigo?

Uma pessoa deve perceber o papel que tem e como tem de agir nesse papel. Um ministro é sempre ministro, não pode dizer: agora estou no futebol, não sou ministro. Não, é sempre ministro, e isso é o chato da coisa. É ministro também quando entra no hospital ou quando está no futebol e vê a garrafa. Tem de agir. Quando eu era presidente do ISEG, e apesar de não me coibir de dar a minha opinião – por acaso tinha a sorte de estar numa escola que coincidia bem com a minha filosofia, o ISEG é uma escola muito aberta, que convive bem com esquerda e direita, faz bem a minha pessoa - houve momentos em tive de pensar o que fazer, como agir.

Dê um exemplo.

Um desses momento foi quando lá foi Pedro Passos Coelho. A malta levantou-se e interrompeu, começou a fazer barulho. Pensei: tudo bem, podem manifestar-se. Mas depois, de cada vez que o primeiro-ministro ia começar a falar, o pessoal punha-se de pé e começava a arruaça. O que é que se faz? E se a coisa corre mal? À terceira, levantei-me e fui dizer isto às pessoas: "Admito que façam todo o barulho do mundo, todo, mas depois de ouvirem o que ele tem para dizer. Se calhar até vai anunciar uma coisa que é o que vocês querem, não sabem, não deixam ouvir. Outra coisa, quero identificar as pessoas, porque todos sabem quem ele é, quem eu sou, quero saber quem vocês são para saber com quem estou a falar". Claro que o primeiro-ministro tinha ali segurança, mas eu senti que aquela era a minha responsabilidade, tinha de actuar. Há momentos em que temos de fazer alguma coisa, não podemos ficar parados a assistir.

O que devia ter feito Mário Centeno?

No caso, se eu fosse ministro e visse o Bruno de Carvalho a atirar uma garrafa, tinha-me levantado e tinha dito: "Olhe, o senhor agora vai atirar as garrafas que quiser, mas é na minha ausência. Saía porta fora e dizia à comunicação social que saí deliberadamente e qual o motivo. Além de que as pessoas deviam queixar-se, se cai uma garrafa lá de cima, deviam queixar-se. A minha obrigação é não compactuar com estes comportamentos.

Falando de comportamentos: outro dia ouvi-o dizer que gosta de viajar de comboio e gostava de ser administrador da CP. Explique lá isso.

Bem, eu ando de transporte privado. Mas, para viagens mais de médio e longo curso, gosto imenso de andar de comboio. Por exemplo, prefiro ir para o Porto de comboio a ir de avião. E se tivesse tempo gostaria de andar pela Europa de comboio, só que em Portugal levamos 24 horas a chegar a um sítio a partir do qual possamos apanhar um comboio razoável para fazer uma distância de três ou quatro horas. Mas gosto da ideia da viagem de comboio.

A ideia é uma coisa romântica. E a prática?

É. Gosto dessa ideia, da sensação do tempo. Na prática a CP nunca chega a horas. Uma vez houve um acidente, caiu uma catenária, e para regressar a Lisboa tive de vir de camioneta. Foi espectacular, porque tive oportunidade de conhecer um dos actores ainda vivos de "O Pátio das Cantigas", o miúdo que era o intermediário de Vasco Santana [Narciso Fino] e os garotos que andavam a recolher as esmolas para o Santo António e a quem Vasco Santana ia atribuindo umas línguas de gato ou umas bolachas em função do dinheiro conseguido. E depois dizia: "Ah, esse não veio? Não veio, está despedido!" [riso] Esse filme é fabuloso, adoro os filmes portugueses dessa época. Viemos a falar da vida durante horas, porque o comboio andou para a frente e para trás, ficámos séculos numa fila, esperámos pelo autocarro e eu, em vez de chegar a Lisboa às cinco da tarde, como previsto, cheguei à meia noite. A partir de determinada altura as pessoas desistem dos compromissos e rendem-se: "Estou vivo. Caiu uma catenária e junto com ela desmoronou-se um talude. Se o comboio fosse a passar, entrava no talude, saía da linha e era a morte daquela gente toda".

Ficamos sempre felizes porque ainda temos uma história para contar...

Uma sorte, conheci um senhor extraordinário com uma vida fabulosa. Veio da província com 12 ou 13 anos e foi viver para casa do padrinho, por quem foi educado, que era guarda no Estabelecimento Prisional de Lisboa. Viveu na prisão - por isso tinha de respeitar o horário de entrada e de saída dos presos - e só saiu de lá para se casar. Conheceu todo o tipo de pessoas, de Cunhal a Alves dos Reis. Vim fascinado com a conversa. E foi ele que às tantas me disse: "Se calhar o senhor até já me viu antes". "Então porquê?" "Conhece "O Pátio das Cantigas"?" "Não conheço eu outra coisa". "Pois, eu era aquele miúdo que recolhia as esmolas e fazias as contas..." "Pois sei... Então, e os óculos?" Porque o miúdo usava óculos. "Ah, os óculos eram falso, achavam que eu ficava mais rechonchudo, mais patusco com uns óculos redondinhos". Isto tudo por causa da CP e de os comboios não chegarem a horas. Mas é uma vantagem de uma vez na vida. Como eu não ia conseguir garantir que todos os dias as pessoas teriam histórias destas para as entreter nos atrasos, que são diários, o melhor era pôr os comboios a funcionar a horas. Não consigo perceber porque há atrasos na CP.

Qual é o problema da CP, a carruagem não está pronta a horas porque se atrasou o maquinista, a limpeza, o revisor, a bilheteira? Não sei. A entrada é às 5 horas e chegam às 5h10? Passa a ser às 4h30

Tirando os acidentes, que já não são poucos.

Tirando os acidentes, não consigo perceber. Os comboios têm um intervalo de segurança - como se tivessem um pau à frente e outro atrás, não se pode entrar nesse espaço. Mas é possível reduzi-lo. Mesmo que as pessoas demorem mais uns minutos numa estação, há folga para esse minuto ser recuperado. Os horários estão feitos para os comboios andarem certinhos. Se me disserem: "O comboio arrancou atrasado". Bom, isso é outra coisa. Arrancou atrasado porquê, porque é português? Uma vez a Isabel Vaz [CEO do grupo Luz Saúde] disse-me que aumentou a capacidade do bloco operatório dos hospitais de dois para três turnos garantindo apenas que as várias equipas envolvidas, da limpeza à anestesia, passando pela cirurgia, começavam todos o seu trabalho rigorosamente à hora certa. Qual é o problema da CP, a carruagem não está pronta a horas porque se atrasou o maquinista, a limpeza, o revisor, a bilheteira? Não sei. A entrada é às 5 horas e chegam às 5h10? Passa a ser às 4h30.

Dizem que não há material suficiente.

É o que eles dizem, que as supressões de comboios são porque não existe material circulante suficiente. Mas se a empresa sabe que não há, não vai enganar as pessoas, avisa e diz que durante os próximos três anos não vai haver. Para quê marcar dez comboios por dia se sei que só vai haver oito? É ridículo. Tudo isto é ridículo. Agora há obras na via e em vez de 2h45 para o Porto vamos demorar 2h55. Mude-se o horário. "Ah, mas vai ser só por um mês". Pois, exactamente, mudam-se os horários só por um mês. O que não posso é comprar um bilhete a pensar que vou chegar às 11h45 e, afinal, chego ao meio dia, porque isso atrasa-me a vida. O serviço público da CP poderia melhorar incomensuravelmente se as pessoas tivessem treino e fossem educadas para isso. Por exemplo: não há palavras em inglês, tirando no início da viagem, em que há um disco. E é isto um país que se diz dedicado ao turismo?! Em comboios onde há uma quantidade enorme de estrangeiros, que não falam português, tirando os brasileiros. Fico envergonhado, a CP é Comboios de Portugal, é o meu país. Uma vergonha. Várias vezes tive de explicar para onde vai um comboio ou por que motivo o comboio não aparece a horas. Ter justificações em inglês devia ser obrigatório.

Onde muitas vezes lhe foi pedida ajuda foi no julgamento de processos ligados a bancos. Tem continuado a testemunhar como perito nestes casos?

Ultimamente não, penso que os processos estão a terminar. Mas há litigâncias que vão surgindo. Estou envolvido num processo arbitral de um banco contra o Estado, em que o comprador reclama uma indemnização: o BIC comprou o BPN e diz que foi penalizado pelo Estado. Pediram-me para apoiar o júri, constituído por três professores de Direito, nas dúvidas que tivesse e que são de natureza contabilística e financeira. Não testemunho como perito, sou assessor do colectivo e fora da presença dos advogados. Falo com os jurados para os poder ajudar na decisão. E posso inquirir as partes, peritos ou testemunhas, o que é muito engraçado. Se fizer as perguntas certas isso ajuda a esclarecer as coisas e a tomar uma decisão. Claro que às vezes isso não é bem aceite, uma vez o advogado de uma das partes disse: "Desculpe, o senhor já está a fazer perguntas que não pode".

Não era uma boa pergunta para o cliente que ele representava.

Expliquei que não sabia quais os limites das minhas competências e que teriam de ser eles a dizer-me. "Sou um cego nesta sala e os senhores ajudem-me e digam-me o que posso e não posso perguntar". E o presidente lá foi dizendo. Sou independente, muitas vezes a pergunta não agrada a uma das partes, mas ajuda a perceber a história, que é o que eu quero, esclarecer, perceber o problema. E o juiz pode não estar dentro do assunto e não colocar a pergunta certa. É muito interessante. No fundo, é ter o melhor de dois mundos.

o que se passou foi muito feio, houve coisas que Carlos Tavares soube pela comunicação social, não é bonito, é uma coisa terrível

Nestes processos de falências ou quase falências de bancos ninguém parece ter ficado mal. E Carlos Tavares, ex-presidente da CMVM, até foi fazer a reforma do sistema financeiro e é presidente do conselho de administração da Caixa Económica Montepio Geral. Tudo normal?

Carlos Tavares foi um bocado causticado com todos os processos. Não foi mais por uma estratégia errada de Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, que ao subalternizar a CMVM no processo [de decisão], subalternizou-a também na responsabilidade. Mas o que se passou foi muito feio, houve coisas que Carlos Tavares soube pela comunicação social, não é bonito, é uma coisa terrível. Repare, no caso dos bancos cotados há duas visões: uma da CMVM, outra do Banco de Portugal. A CMVM impõe transparência, informação, não quer assimetrias, enquanto o Banco de Portugal, que quer garantir a solvabilidade e a solvência do sistema bancário, não quer nada de transparências, quer é resolver os problemas suavemente, recatadamente. Há aqui duas posições em confronto, qual a que prevalece? É uma questão de poderes. Quando há problemas, no dia em que prevalece a posição da CMVM, que é a da transparência, o problema transforma-se numa calamidade. Veja o que aconteceu com o Banif, vai tudo a correr levantar dinheiro e pronto, acabou-se.

Acabou-se com o Banif, mas antes com o BPN, o BPP, o BES e sabe-se lá.

Mas, mais uma vez, ao subalternizar formalmente e institucionalmente o papel da CMVM, Carlos Costa deu espaço para subalternizar a responsabilidade de Carlos Tavares. Que acabou por ser chamado a promover a tal reforma do sistema financeiro, que até agora deu bola. E agora está no Montepio. Mas suponho que lhe deram aquilo para o manter ocupado e também pelo seu conhecimento: ele conhecia os números.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

A questão é esta: em Portugal onde fica a responsabilização?

Não tenho uma resposta. Como é que eu tenho visto isto? As coisas estão a mudar, a justiça está a mudar. Até há pouco tempo só tocavam nos presidentes dos clubes depois de eles saírem, era uma regra de ouro. E, apesar dos problemas que tem tido, está fazer um caminho, penso que as pessoas estão a começar a convencer-se de que não há intocáveis. Até há uns anos era impensável haver processos contra responsáveis de futebol ou figuras de Estado. Hoje, às vezes por coisas que me parecem até um pouco desproporcionadas, como o caso dos secretários de Estado e dos convites da Galp para assistir aos jogos de futebol, há demissões.

Resta saber se as demissões foram por isso. Há mais convites e eles lá continuaram.

Pois. Mas a nossa sociedade também tem um problema, é muito pequenina. Há aqui uma questão que é quase de inevitabilidade: a quantidade de conflitos de interesses que surge naturalmente é gigantesca. E isto torna inviável a sociedade. Porque das duas uma: ou nós restringimos muito aquilo que cada um faz ou rapidamente estamos a ter incompatibilidades. As pessoas, às vezes, nem se apercebem dessa incompatibilidade e as informações são usadas com alguma injustiça. Apesar de tudo tenho visto uma evolução na justiça e não é por acaso que se falou tanto na mudança da procuradora-geral da República. Agora, há coisas arrepiantes, como as entrevistas ao Sócrates. Aí a justiça perde força e poder.

Para a sociedade portuguesa Ricardo Salgado era um modelo, não só pelo que tinha, mas pelo que representava em termos de ética, de comportamento social, de pessoa de bem. Ao ser responsável por lesar um sem número de pessoas (...) deixou a sociedade, as pessoas que acreditavam nesse modelo, à toa

E a demora dos processos? Lembro-me de que falámos sobre Ricardo Salgado há três ou quatro anos - disse que se soubesse o que veio a saber-se então não lhe teria dado o honoris causa. Está tudo na mesma.

Aí está outro caso de alguém que representa muito mais socialmente, pelo imaginário social, do que o valor económico que tem. Para a sociedade portuguesa Ricardo Salgado era um modelo, não só pelo que tinha, mas pelo que representava em termos de ética, de comportamento social, de pessoa de bem. Ao ser responsável por lesar um sem número de pessoas, ao destruir esse modelo, essa imagem, deixou a sociedade, as pessoas que acreditavam nesse modelo, à toa. Desbaratou isso, a sociedade ficou sem cristo, não há outro que o substitua. E isso, do ponto de vista sociológico, é grave.

Não imagina como é que algumas pessoas falavam comigo antes e depois de eu já estar instituído presidente do ISEG. Eu só dizia: "Mas estes tipos são parvos. Parvos"

Depois há o outro lado: quem manda construir toda essa imagem em cima de alguém?

Isso é uma inevitabilidade do poder. O poder é extraordinário e a pessoa tem de ter muito cuidado para afastar esse tipo de coisa. Já tive poder, embora num círculo restrito. Não imagina como é que algumas pessoas falavam comigo antes e depois de eu já estar instituído presidente do ISEG. Eu só dizia: "Mas estes tipos são parvos. Parvos". Aqueles que me continuam a considerar são aqueles que não mudaram o comportamento antes, durante e depois de eu ser presidente do ISEG ou ter qualquer outro cargo. São essas as pessoas que aprecio.

De onde vem esta subserviência?

Quando a pessoa tem poder representa mais do que eu. E quando, por sua iniciativa, essa pessoa decide aproximar o poder, a coroa – não é dar migalhas, mas dar atenção – o outro já se sente beneficiado.

Mas isso, por si só, não seria necessariamente mau.

Não, mas vai significar duas coisas: que alguém está a receber e que outros não estão a receber. Há um efeito de dou e crio inveja. O presidente do conselho de administração de uma empresa desce do 20.º ao 7.º andar, entra numa área funcional e ouve-se: "Bom dia, senhor presidente" ou "Bom dia, senhor doutor". Ele vai por ali fora e, em vez de ir ao gabinete do director, que já é um sinal, pára no caminho e fala com uma funcionária. Fez duas coisas: iluminou a funcionária com a sua coroa e deixou todos os outros às escuras, e com inveja: "Olha lá, vais ser promovida?" É isso que está aqui em causa, o poder. Quando tenho amigos que são nomeados ministros ou secretários de Estado ou presidentes de empresas - ou a minha grande amiga da faculdade é a actual presidente do ISEG – estimo-os duplamente. Mas, tirando os momentos formais, trato-os de maneira igual, porque só assim sou leal com eles. É o tal problema dos reis nunca sabem se o parceiro com quem casam é por amor ou conveniência. Quando se tem poder tem de se ter cuidado para afastar esse tipo de lambidelas e graxas e tentar procurar o que é genuíno. O pior é que com o tempo as pessoas deixam de o fazer porque é cómodo.

E por muito dinheiro que o Costa dê aos portugueses, o que os portugueses fazem é comprar coisas importadas. É como atirar água para a areia, desaparece

Cómodo está o primeiro-ministro. Greve de bombeiros,  greve de médicos, greve de enfermeiros, greve de professores, greve de juízes. António Costa diz que está tudo bem. Está?

Tudo corre bem, e tem corrido melhor do estimei, porque sou mau previsor numa matéria: mais de 40% do PIB português são exportações. Como temos uma economia mais aberta, torna-se cada vez mais difícil perceber o que vai acontecer. Mas se formos ver o que tem estado a acontecer estritamente ao crescimento da procura, excluindo importações, que é um dado muito importante (quanto cresce o consumo retirando as importações, quanto cresce o investimento retirando as importações, quanto crescem as exportações retirando as importações - porque muitas importações é para voltar a exportar), descobrimos que a procura interna, consumo público, privado e investimento, tem estado a crescer na casa dos 1%. É esta a nossa dinâmica de crescimento interno e a diferença para os 2,1% ou 2,4% ou 2,7% tem sido a procura externa líquida. Ou seja, se a procura externa se contrair a ponto de crescer praticamente zero, que foi o que aconteceu neste último trimestre, acabou-se. E por muito dinheiro que o Costa dê aos portugueses, o que os portugueses fazem é comprar coisas importadas. É como atirar água para a areia, desaparece. Não faz retenção, não há poupança para criar investimento interno, produzir e criar valor acrescentado. A malta recebe e passa tudo para fora, compra iphones, compra carros, compra viagens. Até os pobres, que não têm dinheiro, vão comprar à loja do chinês. É dramático. A única coisa que deixa cá um pouco é a restauração.

Em que medida é que o orçamento do Estado corrige estas questões?

Não corrige, ponto. Do ponto de vista estrutural o orçamento do Estado não corrige nem isto nem outras grandes questões nacionais. E acredito que mais cedo ou mais tarde vamos ser confrontados com elas.

Está a falar de quê, quais são essas grandes questões?

Começo já pela população. Ou também podemos admitir que não queremos saber disto para nada... Também não é o orçamento deste ano ou do próximo ou do outro que vai fazer a diferença. Nenhum orçamento por si vai resolver o problema da população, nenhum. Mas vinte orçamentos seguidos vão fazer a diferença. A questão, aqui, é que nunca se começa. E se o PS começa, o PSD vai dizer que estava tudo errado. Se começa o PSD, vai ser o PS a voltar atrás. Uma medida com a qual estou absolutamente de acordo é com o benefício para o repatriamento de portugueses. Por mim seria apenas mais limitado: não para beneficiar o regresso dos que foram com a crise, mas sim para beneficiar o repatriamento de portugueses que tenham menos de 45 anos de idade.

Em idade fértil...

Exactamente, é isso mesmo. E que venham com filhos. Até fazia uma tabela: se tem dois filhos, tem direito a um desconto tal, se tem um filho, menos desconto, e por aí fora. Mas tem de se incentivar mesmo. E que venha gente com filhos crescidinhos, porque não se fazem portugueses já com sete ou dez anos de idade, da mesma maneira que não se pode fazer hoje vinho de 2012. Isto seria válido para qualquer família que quisesse vir para Portugal. Como os australianos fizeram: mulheres são bem-vindas, homens não. Jovens mulheres, todas as facilidades. Casais com filhas, sim. Casais com filhos, não venham, já cá temos homens a mais. Temos de ver as coisas assim, e é errado pensar que devem vir só aqueles que foram com a troika, isso é não perceber o problema, não ver the big picture, que é: estamos a ser dizimados, a perder população a pau. Daqui a 40 anos, em 2060, embora o processo não seja linear – vai haver mais alterações nos próximos 20 anos do que nos 20 subsequentes -, a idade mais comum em Portugal, segundo o INE, será de 83 anos. Em 2060, já eu estou aposentado há 25 ou 30 anos, se estiver. Já viu o que é aguentar as pensões de reforma desta gente? Vamos ter de importar população; admitindo que toda a população na faixa activa está a trabalhar, ainda temos de ir buscar quase 400 mil trabalhadores. Olho para os números e fico a sentir-me profundamente mal, já sei o que vai acontecer.

A gente mais velha tem dois problemas: pensão de reforma e saúde. E as eleições vão ser ganhas à custa destas duas medidas

O que vai acontecer?

A gente mais velha tem dois problemas: pensão de reforma e saúde. E as eleições vão ser ganhas à custa destas duas medidas. Veja lá se Assunção Cristas não começou já a falar nestes temas... O CDS já percebeu isto e está atento. Há tempo convidaram-me e fiz uma intervenção: "O CDS, como partido conservador, tem uma vantagem; normalmente os mais velhos são mais conservadores, fazem a deriva da esquerda para a direita e, portanto, vão ter aí mais gente. O ponto é garantir pensões de reforma e cuidados de saúde, essa é a chave". Ninguém quer saber da educação, veja o Brexit: não querem mais Europa, querem mais saúde. E quando olho para orçamento, olho para essas questões. Como o investimento...

O que tem o investimento?

Melhorou um bocadinho em 2017, mas este ano já não vai melhorar e não se consegue estimular. Se calhar paga-se muito pelo Web Summit e é uma parolice, mas se é esse o nosso desígnio, então vamos apostar nisso. Mas apostar a sério. Portugal é só para virem ver ou é para captar gente para cá? Temos de ser consistentes. Sou muito renitente em relação ao Web Summit, tenho dúvidas, mas uma vez que existe há que aproveitar. Fui presidente do conselho de administração da Taguspark e insisti e consegui que a Taguspark tivesse um stand no Web Summit. Se queremos captar gente, vamos mostrar que temos espaços excelentes, boas praias, estamos perto do Estoril e Cascais, a 20 minutos do aeroporto, somos um campus tecnológico. Tenho de contribuir com toda a minha boa vontade e dinâmica para que aquilo seja um sucesso. Mas não é um sucesso de três dias de malta a beber cervejas e a ver umas coisas, é mesmo para fazer daquilo um espaço para os agarrarmos e trazê-los para cá. E quem vier tem acesso directo ao SEF, que é logo ali. Este país precisa de gente jovem, com produção de valor acrescentado per capita e produtividade. Podemos até diminuir os postos de trabalho, se conseguirmos compensar isso em produtividade. E assim podemos pagar melhor e as pessoas descontam mais, porque o ganho da produtividade compensa. Ganhar mais para aguentar os mais velhos per capita, é o que temos de fazer. Se não tivermos esta lógica agora, depois será tarde de mais.

Mas, volto atrás, as medidas que se discutem são todas de curtíssimo prazo.

As medidas... Cansa-me, aborrece-me ver os ministros todos contentes com o resultado. O resultado para mim é horrível. Tenho uma lista de 20 perguntas, respondem à primeira: o défice é óptimo. Depois faço as restantes 19: Está tudo muita bom? Não. Têm 20 valores no primeiro grupo do teste e falham os outros 19 grupos, estão contentes porquê? Podem dizer que os portugueses percebem: "Estamos muito contentes porque conseguimos fazer uma coisa um bocado à custa do vosso sacrifício, que é cumprir o défice. Mas não estamos contentes com as outras coisas".

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Quem vai ganhar as próximas eleições legislativas?

O primeiro-ministro, António Costa, porque percebeu as regras do jogo. O orçamento do Estado passou a ser 20 milhões de mãos esticadinhas; ele olha, vê onde há mais mãos e atira umas migalhas. E isto é uma coisa horrível, porque não é assim que se gere um país. Ora baixem lá as mãos: quem é que tem as mãos lavadas? Mostrem lá as unhas... E são esses que levam o dinheiro. Só que não há coragem para fazer isso. Vão ver o que acontece ao dinheiro nas mãos desses senhores e qualquer dia está tudo de mãos lavadas. Ao contrário, se eu puser dinheiro nas mãos de qualquer um, dentro de dois ou três anos está tudo pior. Para que hei-de cuidar das mãos se recebo de qualquer maneira? Mas António Costa percebe bem as regras do jogo. Até que há um dia... De vez em quando sofremos uns abanões. Um dia acaba-se o milho. E depois aparece um senhor alemão a gritar que é preciso "terr as maos limpaz". E pronto, são uns malandros. Mas é assim que funcionamos, somos incapazes de ter disciplina.

não sei o que quer António Costa e tenho dificuldade em dar-lhe o voto assim, sem ele dizer para que quer o poder

Onde nos leva António Costa?

Muitas vezes pergunto: para que quer Costa o poder? Ainda não tive resposta. E esse é para mim outro grande mal de Portugal: para que queres o poder? Se eu tivesse o poder durante 20 anos, se eu tivesse essa capacidade, o que eu faria com isso? O primeiro-ministro não diz o que faria nem o que quer fazer. Se perguntar a um trotskista ou a um bloquista ele responde: "Quero o poder para que toda a gente se vista de calças de ganga" ou "Para que todos se vistam de igual". Outro dia escrevi isto: imagine que tem o poder de decidir entre duas coisas: salário igual para todos e descem os mais altos ou ampliam-se as diferenças salariais, mas os que ganham menos sobem? Se fizer esta pergunta a um político ele torce-se todo. Eu não me importo absolutamente nada de aumentar a discrepância, desde que o que ganha menos passe a ganhar mais, porque é com esses que me preocupo verdadeiramente - quero lá saber dos que ganham muito, não quero amputar pessoas. Mas não sei o que quer António Costa e tenho dificuldade em dar-lhe o voto assim, sem ele dizer para que quer o poder. A sensação que tenho é que quer o poder para ganhar eleições, mas isso não é objectivo nenhum, é ganhar eleições para ganhar eleições para ganhar eleições. Não é nada. E vai ganhando as eleições à custa de parcerias - agora dá mais umas migalhas aos sindicatos, porque é do partido comunista que precisa, mas se refeitas as eleições achar que é do Bloco de Esquerda, acabam-se os sindicatos. Que governo é este? No fim do dia devia haver algumas regras básicas. O modelo social é importante e António Costa tem de o explicar para sabermos se temos mais ou menos economia de mercado, mais ou menos intervenção estatal, para perceber por que caminho nos leva.

foi a Europa que nos safou, deu-nos a mão, se não tivéssemos Europa tínhamo-nos espetado contra a parede na mesma e a transição tinha sido muitíssimo pior só com o Fundo Monetário Internacional

Antes das legislativas temos as eleições europeias. Há uns anos disse que a União Europeia ia desmoronar-se... Qual é hoje o grande risco da Europa?

Ainda não se desmoronou, mas a saída do Reino Unido é uma prova brutal para a União Europeia e para a sua raiz fundacional, é a saída de um dos aliados. Churchill deve estar a dar voltas na tumba todos os dias. Isto é de uma enorme falta de visão e há momentos em que os políticos, de facto, não podem ser populares. Não se pode ser populista o tempo todo, há coisas impopulares e é esse o ónus de ser político também: ser impopular. De outra forma o Teatro Nacional de São Carlos já teria fechado para dar lugar a qualquer coisa ligada ao futebol, dá prejuízo e provavelmente sempre dará. Espero que Itália não venha a abalar isto tudo ainda mais, porque a malta já começa a perceber que dizer mal da Europa dá votos. Mas foi a Europa que nos safou, deu-nos a mão, se não tivéssemos Europa tínhamo-nos espetado contra a parede na mesma e a transição tinha sido muitíssimo pior só com o Fundo Monetário Internacional, o FMI tinha-nos esfolado muito mais e a saída era muito mais dura. Mas quem ganhou com isto? Quem disse mal da troika. Nos outros países é a mesma coisa, quem diz malta de Bruxelas ganha votos. E uma coisa é dizer mal e acomodar-se Bruxelas, outra coisa é dizer mal e, em confronto, dar o passo seguinte referendar a saída.

E vetar o referendo, para não correr o risco de ter as pessoas a votar pela saída, é solução?

É mau, claro. Mas têm sido dados pequenos passinhos e espero que continuemos a dar mais passos no sentido da integração europeia. O modelo de construção da Europa é o de uma Europa cada vez mais cada integrada. As pessoas têm de sentir que a Comissão emana do nosso voto e repare que até agora ninguém votava no presidente da Comissão Europeia. Nas últimas eleições fiquei muito chocado por não termos visto em directo nos principais canais o debate entre os candidatos a presidente da Comissão Europeia que eram apoiados pelas principais famílias de partidos. Isto é fundamental e esta é a primeira ideia. As pessoas têm de ter a noção clara do candidato em quem vão votar. Espero ver mais disso nestas eleições, ver os candidatos a fazer discursos, a Lisboa – e, idealmente, ao Porto - como se faz nos Estados Unidos, ao lado do líder local, para as pessoas reconhecerem, para saber que orçamento, que ideias, que visão. Essa é a minha esperança.