Da obrigatoriedade da notificação dos casos de gripe à aposta na higiene dos doentes, passando pela organização dos serviços de saúde e a inibição das migrações militares e agrícolas, as medidas de Ricardo Jorge, enquanto autoridade de saúde, ajudaram a minimizar os efeitos de uma pandemia que em meses fez mais baixas do que os quatro anos da I Guerra Mundial.

A ameaça não podia ser maior. Em 1918, Ricardo Jorge referia-se ao vírus — cuja agente na altura era desconhecido — como algo que “quase instantaneamente se derrama por uma cidade inteira e salta por cima de todas as barreiras”.

E perante tal adversidade, Ricardo Jorge vai mais longe, promovendo o fim de contactos como os apertos de mão e os ósculos (beijos).

A ação de Ricardo Jorge, patrono do atual Instituto Nacional de Saúde, que tem o seu nome, estende-se ainda à requisição de espaços públicos para acolher os doentes.

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Em Lisboa, o Convento das Trinas acolheu 300 camas e o Liceu Camões quinhentas. Nada chegava, nem os caixões. Num só dia, contaram-se 200 enterros em Lisboa.

Francisco George, que ocupou o cargo de Ricardo Jorge entre 2005 e 2017, recorda-o como “uma figura importante, com grande prestígio no país devido à forma como tinha combatido e resolvido a peste bubónica no Porto, na viragem do século XX”.

Já como diretor-geral da Saúde, nomeado por António José de Almeida, Ricardo Jorge “tomou medidas, a mais significativa delas foi a mobilização dos quintanistas [estudantes do quinto ano] da Faculdade de Medicina para estarem na linha da frente no combate à gripe”.

“Ricardo Jorge, como diretor-geral da Saúde, enquanto autoridade da saúde em Portugal, cumpriu e fez tudo aquilo que tinha de ser feito”, afirmou, recordando que, na altura, “o país não tinha recursos”. “Era terrível, porque não permitia financiar atividades que pudessem reduzir o sofrimento do nosso povo”, lamentou.

Fernando Almeida, presidente do conselho de administração do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), tem no seu gabinete um retrato do patrono do instituto que dirige. Sobre a sua obra, recorda “a invulgar capacidade de tentar conduzir as coisas”.

“É um homem que merecia muito mais do que teve. O trabalho que implementou foi um trabalho totalmente inovador e que, para a época, foi mal percebido, porque quem é inovador é sempre mal percebido. Foi porventura um dos homens que evitou grandes catástrofes”, considerou.

Da figura de Ricardo Jorge, Fernando Almeida destaca ainda a sua “capacidade de resiliência”.

“Só pessoas com uma grande convicção é que conseguem implementar medidas como os cordões sanitários”, referiu, sublinhando que há cem anos fazia falta um diagnóstico, pois inicialmente até se pensava que a doença era provocada por uma bactéria.

A historiadora Fernanda Rollo, que se tem destacado na investigação a este período da história, considera que “ninguém está preparado para dar resposta a uma pandemia desta natureza. Ninguém, nenhum país estava preparado”.

E recorda que “há uma continuidade de surtos epidémicos que vêm do século XIX. As pessoas não estão preparadas, não têm conhecimento nem instrumentos para lhe fazer face”.

Segundo a atual secretária de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, o esforço do combate à pandemia acabou por ser protagonizado por Ricardo Jorge, “um dos homens que nunca é demais elogiar e outros homens que começam por chamar as atenções para as questões de saúde pública”.

Em 1918 “não temos serviços públicos organizados, as infraestruturas não estão preparadas para ter um impacto deste”, disse, acrescentando aquilo que considera determinante: “Não temos ciência, não temos conhecimento organizado para compreender, para prevenir o impacto da pneumónica em Portugal, tal como não se tinha no contexto internacional”.

A virologista e diretora do Museu da Saúde, Helena Rebelo de Andrade, refere que algumas das medidas tomadas na altura para combater a “gripe espanhola” ainda hoje são “muito atuais”.

No início, “o que se recomenda é o doente ficar em casa, em repouso, ter uma dieta saudável, tomar tisanas, semelhante ao que hoje se recomenda”, disse. “Recomendava-se os caldos de galinha, água com açúcar, sumo de limão, de laranja, os gargarejos mentolados. E para a terapêutica para a redução da febre eram utilizadas soluções de quinino e os salicilatos”, adiantou. Na segunda onda pandémica, em outubro, eram recomendadas para os casos graves injeções com soluções arsénicais e usadas injeções de cafeína e de adrenalina.

Na altura, Ricardo Jorge recomendou sete medidas: A obrigatoriedade da notificação dos casos, através dos delegados de saúde de todo o país, que teriam de concentrar a informação na Direção-Geral da Saúde, transmitindo-a telegraficamente, a higiene dos doentes e a inibição das migrações militares e agrícolas.

A requisição dos espaços públicos para instalação de hospitais, a organização dos serviços de saúde, a distribuição do serviço médico e farmacêutico nos distritos para atendimento dos mais pobres e a formação de uma comissão de socorro para o acompanhamento da epidemia foram outras medidas tomadas por Ricardo Jorge.

Helena Rebelo de Andrade sublinha ainda uma outra faceta de Ricardo Jorge. “Durante a pandemia, como diretor-geral da Saúde não concorda com o fecho da fronteira com Espanha, que os espanhóis impuseram. Como não pode expressar politicamente a sua discordância, escreve nos jornais com um pseudónimo, Dr. Mirandela, para se insurgir contra o que chama de muralha da China”, contou.

A virologista não tem dúvidas de que da resposta à pneumónica foi possível tomar “muitas lições”, tendo em conta “a atualidade de algumas medidas, ainda hoje”.

A “gripe espanhola”, também conhecida por pneumónica, por conduzir à pneumonia na fase final da doença, atingiu o mundo em 1918, matando 50 milhões de pessoas. Em Portugal, a pandemia matou entre 509 mil e 70 mil pessoas em seis meses, dez vezes mais do que a I Guerra Mundial (1914-1918).

Camões, o liceu que virou hospital

O Liceu Camões, em Lisboa, foi transformado em hospital para acolher os doentes com a “gripe espanhola”, em 1918, interrompendo assim um ano letivo que, mal começou, registou baixas de alunos e professores atingidos pela pandemia.

No arquivo do Liceu Camões, agora designado de Escola Secundária Camões, estão reunidos vários volumes de atas que se referem à “gripe espanhola”, uma pandemia que atingiu o mundo em 1918 e que, só em Portugal, causou entre 50 mil a 70 mil mortos.

Francisco Pereira, professor de História nesta escola e responsável por este arquivo escolar, considerado “o mais antigo e mais volumoso do país”, mostrou à agência Lusa algumas dessas atas, que contam uma parte do passado deste estabelecimento de ensino, inaugurado em 1909, embora fruto de aspirações republicanas.

Devido às faltas de alunos e professores, que aos poucos iam sendo atingidos pela gripe, o primeiro período foi atípico e, segundo contam as atas que constam do arquivo escolar, não teve notas, pois “praticamente não se deram aulas”, afirmou Francisco Pereira.

“Houve professores que morreram, professores, alunos. Nesta altura faleciam pessoas às centenas, nem havia como enterrá-las”, disse o professor de História, sublinhando que nos documentos é referida a epidemia em curso, mas nunca se atribuía as faltas dos professores ou dos alunos à doença, o que considera “curioso”.

“Nas atas, refere-se a falta das pessoas, mas não se diz porquê. Dá-se conta da morte de alunos, mas não se diz de quê. Fala-se da necessidade de ser usado o liceu por causa da epidemia, mas não se diz de que epidemia se fala”, observou.

O agravamento da pandemia obrigou as autoridades a medidas excecionais e o Liceu Camões foi transformado em hospital improvisado, uma decisão para a qual contribuiu as instalações modernas e amplas, desenhadas pelo arquiteto Ventura Terra.

“Os doentes eram em tal número que houve necessidade de procurar instalações hospitalares de improviso e o liceu fechou na altura para ser transformado em hospital”, recordou Francisco Pereira.

Por aquelas instalações passaram cerca de 500 doentes. Um dos espaços mais usados foi o ginásio, construído em consonância com “as mais modernas conceções do que devia ser um espaço para a prática desportiva”.

Construído com uma forma tridente, as três alas paralelas que compõem o Liceu Camões, e que são hoje espaços de salas de aula, além do ginásio (ala central), foram ocupadas pelos “epidemiados”, assim designadas as pessoas atingidas pelo vírus da gripe, que na altura ainda não tinha sido identificado.

Os doentes masculinos ocuparam o ginásio e as salas de aula do primeiro andar, enquanto o piso térreo e as salas de aula da ala sul acolheram as doentes.

Devido a esta situação, prosseguiu Francisco Pereira, “o período letivo praticamente não começou, teve muito pouco tempo de aulas, porque em outubro já estava instalado aqui o hospital”.

Além das características arquitetónicas, o facto de o liceu estar construído numa zona afastada, onde apenas existia um matadouro, terá contribuído para a sua utilização como hospital improvisado. Atualmente, a Escola Secundária Camões está em plena zona urbana de Lisboa.

Questionado sobre a principal marca desta pandemia, que em todo o mundo terá custado a vida de 50 milhões de pessoas, Francisco Pereira escolheu “o silêncio”. “Procura-se por uma espécie de manto. É uma coisa velada. Não se fala”, disse. “Eu próprio tenho histórias da doença na família, de pessoas que morreram da epidemia e ainda hoje a minha mãe não gosta que se fale nisso”, referiu.

Cruz Vermelha foi fundamental no apoio aos doentes

O transporte das vítimas, o apoio aos órfãos e os cuidados prestados pelas ‘damas-enfermeiras’, onde quer que estivessem os doentes, foram algumas das ações dos voluntários da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) durante a “gripe espanhola”, em 1918.

“Os voluntários da CVP desempenharam um papel fundamental”, afirmou à Lusa o presidente da CVP, Francisco George, recordando o trabalho desenvolvido pelas ‘damas-enfermeiras’, voluntárias que acudiam aos doentes, onde quer que estes se encontrassem.

Muitas delas acabaram por morrer, afirmou, enquanto exibia dois dos vários bustos alusivos a estas voluntárias, que se encontram nas instalações da CVP.

“Colunas de ‘damas-enfermeiras’ saíam de Lisboa a caminho dos sítios mais afetados, nomeadamente no Minho, e fizeram um trabalho notável”, disse o ex-diretor-geral da Saúde.

Outra tarefa das ‘damas-enfermeiras’ foi cuidar das crianças no orfanato improvisado na Ajuda, em Lisboa, onde viviam os que tinham perdido os pais na pandemia.

Este orfanato, recordou, foi várias vezes visitado pelo Presidente da República de então, Sidónio Pais, que durante as suas deslocações distribuiu cobertores.

“Sidónio visitou estes estabelecimentos da CVP, incluindo o orfanato da Ajuda, onde distribuiu cobertores. Era o medicamento que na altura era mais distribuído e necessário, tal a pobreza do país”, disse.

Francisco George não entende a razão pela qual a figura das ‘damas-enfermeiras’ é tão “pouco descrita” na literatura. Contudo, “ficou para sempre inscrita como heroínas na luta contra a doença”.

“Estavam na frente, não só na frente da guerra, dos hospitais de campanha, como também na frente dos orfanatos e dos hospitais que tratavam da pneumónica”, adiantou.

À CVP foi ainda atribuída por Sidónio Pais a tarefa de transportar os “epidemiados”, como eram designadas as pessoas atingidas pelo vírus da gripe, em ambulâncias criadas na época e que eram puxados por voluntários da instituição até aos hospitais, nomeadamente os improvisados criados para esse fim.

Na sede da CVP, além de boletins clínicos dos doentes com “gripe espanhola” e fotografias dos hospitais e orfanatos improvisados, consta ainda uma ambulância que transportou muitos dos “epidemiados”.

A pneumónica matou mais pessoas do que a I Grande Guerra (1914-1918). É também conhecida por gripe espanhola, porque foi nesse país que surgiram as primeiras notícias sobre a doença, uma vez que nos outros países, em guerra, existia controlo da informação.

A origem da infeção ainda hoje não é conhecida, existindo várias teorias.

(Notícia atualizada às 07h50)