Duas mulheres candidatas, duas derrotas. Ambas são do Partido Democrata e ambas perderam a eleição para um mesmo opositor homem, Donald Trump. A amostra é curta, mas o padrão existe e o facto é que os Estados Unidos da América nunca foram capazes de eleger uma mulher presidente.

José Miguel Júdice, jurista e político, admite que "há uma misoginia na sociedade americana que não é afirmada, até mais do que racismo". Ana Gomes, diplomata, acredita que o "efeito patriarcal tradicional dominou", mais ainda no caso de Harris que, "não é só ser mulher, é uma mulher negra".

"O efeito patriarcal foi muito disseminado através das redes sociais, com figuras defensoras do antifeminismo tóxico, com complexos de masculinidade, que sublinham isso de uma forma completamente incapaz de aceitar uma mulher na presidência, ainda por cima mulher e negra. Não tenho dúvidas que esse foi um aspeto que funcionou e que fez muito jovens machos de todas as cores, incluindo negros, votarem Trump", diz.

"Há uma misoginia na sociedade americana que não é afirmada, até mais do que racismo"José Miguel Júdice

Mas nem todos são desta opinião. Há oito anos, Gonçalo Castel-Branco fez parte da equipa de Hillary Clinton e da máquina de cerca de 20 mil pessoas, entre voluntários e profissionais, que envolveu a sua candidatura à Casa Branca. Empresário e observador atento, pensa doutra forma.

"O paralelo entre Kamala e Hillary não é serem mulheres, mas sim serem más candidatas. E essa é uma análise talvez mais importante. Não tenho dúvida de que é mais difícil para uma mulher do que para um homem ser presidente dos Estados Unidos. Um pouco como no colégio eleitoral, tem ali um ou dois pontos a menos só por ser mulher, mas não foi por ser mulher que Kamala perdeu e, provavelmente, não foi por ser mulher que Hillary perdeu".

Há um conjunto de fatores que pode fazer perder uma eleição, e Gonçalo Castel-Branco menciona alguns: "É importante recordar que num país com 344 milhões de habitantes, 240 milhões de pessoas com idade para votar e onde votam 160 milhões, esta eleição foi decidida, mais uma vez, por 300 ou 400 mil votos em três ou quatro estados. Isto mostra quão renhida foi a eleição, o que não aparece quando se olha para o quadro do colégio eleitoral".

"O paralelo entre Kamala e Hillary não é serem mulheres, mas sim serem más candidatas"Gonçalo Castel-Branco

O que falhou então? Kamala Harris perdeu essencialmente por dois motivos, acredita Gonçalo Castel-Branco, por causa de Joe Biden e porque o Partido Democrático se afastou daquilo que são os dois principais problemas dos americanos, a economia e a imigração. Enquanto os republicanos de Trump falaram para o país real, a esquerda fixou-se em guerras culturais das quais muito poucos querem saber.

"Kamala perde porque Joe Biden a deixa numa posição impossível. Não dar a Harris o palco que Obama lhe deu quando Biden era vice-presidente foi um erro óbvio. E sair da eleição tão tarde e não sair da presidência, que era o que devia ter feito, colocou Kamala numa posição de pouca visibilidade, com três meses para construir a sua narrativa e sem se poder afastar do presidente, porque ele ainda lá está e ela ainda é sua vice-presidente", diz.

Ou seja, Kamala Harris "não se pôde afastar de um legado economicamente complicadíssimo. A economia e a imigração eram os dois grandes temas da campanha, por mais que os democratas quisessem acreditar que era o aborto, e por isso Joe Biden coloco-a numa posição em que era praticamente impossível ela ganhar".

"Há aqui um tema: o Partido Democrata e as esquerdas mundiais têm vindo a deixar-se seduzir, à falta de narrativas mais importantes, por guerras culturais. Hoje, esquerda e direita não se definem pelos direitos das minorias versus elites, definem-se por guerras culturais versus problemas das pessoas reais. Os republicanos de Donald Trump têm sabido agarrar estas guerras e posicionar-se como o partido das pessoas reais, do interior, versus as elites, que pensam em guerras que não interessam a ninguém, como a dos pronomes ou de assuntos das micro minorias", diz.

"O que temos é um realinhamento global, nomeadamente no que diz respeito à disparidade de género, à guerra que opõe mulheres a homens através do rebaixamento dos homens - uma guerra em que a esquerda assume um absolutismo moral à luz da qual os que moderados são automaticamente racistas ou misóginos se não aceitarem todas as suas posições em todos os momentos. Há um limite de vezes que podemos dizer a homens (particularmente homens mais novos sem curso superior) que eles são lixo até eles decidirem juntar-se aos que lhes dizem que não são e tentar travar esse movimento com apelos à decência democrática num ambiente em que cada um só quer saber do seu número de likes e quanto dinheiro tem no banco é profundamente inútil", explica.

"A lição desta eleição, para mim, é que num ambiente “bros" versus "brat queens", homens versus mulheres, os Donald Trump deste mundo estão muito melhor posicionados para tirar de casa homens sem curso superior, mas também homens do TEC, do MMA, dos podcasts, os "bros", enquanto as candidatas mais preparadas e decentes como Kamala Harris têm real dificuldade em conseguir levar às urnas mulheres com curso superior e brancas, sem as quais não se ganham eleições nos USA. No fim do dia, isso foi mais do que suficiente para fazer a diferença", resume Gonçalo Castel-Branco.

Margarida Bentes Penedo, política, está de acordo e recusa-se a ver qualquer relação entre as derrotas das duas candidatas e o facto de serem mulheres. "Não tem nada, absolutamente nada, a ver. Isso é o prolongamento de uma construção mental que foi derrotada na terça-feira, que é a cultura woke. O que une Hillary Clinton e Kamala Harris não é serem mulheres, é serem democratas e progressivamente cada vez mais woke".

O que foi derrotado, por isso, "não foram as mulheres, mas o que elas simbolizam, o pensamento woke, que é uma construção mental de fantasia e de absurdo e de cancelamento e de perseguição e de um poder despótico, sem processo judicial. Foi isso que as pessoas recusaram".

"O que une Hillary Clinton e Kamala Harris não é serem mulheres, é serem democratas e progressivamente cada vez mais woke"Margarida Bentes Penedo

Ao contrário, "o que Trump apresenta aos americanos é a naturalidade das coisas, aquilo que as pessoas reconhecem, as referências que têm como certas". E lembra a entrevista de Joe Rogan, que "apresenta um Trump que não tem nada a ver com aquilo que dizem dele. Trump não é um boneco de plástico, não é um proxy, um repositório e repetidor de uma coleção de ideias correspondentes a um partido". 

O professor catedrático António Goucha Soares, com quem falámos a propósito dos pesos e contrapesos na administração que aí vem, acredita que o estatuto da mulher nos Estados Unidos não é inferior ao estatuto da mulher na generalidade dos países ocidentais" e considera que o facto de se tratar de duas mulheres é meramente "circunstancial".

"A senhora Clinton cavalgou a sua campanha um pouco com essa bandeira da igualdade de género, enquanto a senhora Harris caiu de tal forma de pára-quedas nesta campanha que nem sequer se fez valer do facto de ser mulher ou de questões étnicas. Basicamente, era pouco conhecida e tentou afastar-se das questões fraturantes e, portanto, também desses dois assuntos. Mas, ao contrário de Hillary Clinton, não foi uma candidata forte".

A vitória contundente de Trump também expressa essa fragilidade da candidata e os erros todos que o Partidos Democrata cometeu nesta eleição, uma substituição tardia, muito puxada por Hollywood e por toda aquela franja da América que o cidadão comum americano rejeita".

"O estatuto da mulher nos Estados Unidos não é inferior ao estatuto da mulher na generalidade dos países ocidentais"António Goucha Soares

Clara Raposo, vice-governadora do Banco de Portugal, tem tendência a concordar com esta posição: "Há um elemento de conservadorismo, e até machismo, enraizado na sociedade. Até, talvez, um retrocesso, o que é preocupante". A economista acredita que "tirar conclusões gerais é precipitado com uma amostra tão pequena", mas reconhece que só o facto da questão ser tema "é um problema".

"Há um elemento de conservadorismo, e até machismo, enraizado na sociedade. Até, talvez, um retrocesso, o que é preocupante"Clara Raposo

De facto, afirma, "para trabalho de natureza intelectual, não há qualquer justificação para que o género seja relevante, quanto mais fator de discriminação". Se é assim, deixamos outra pergunta no ar: por que motivo os 15 governadores que o Banco de Portugal teve até foram sempre homens e nunca houve uma mulher à frente da instituição?