Nasceu no Porto e viveu até aos 18 anos em Valbom, Gondomar, até vir para Lisboa estudar Relações Internacionais. Sempre foi boa aluna e entrou para o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) numa altura em que a média nacional era superior à de Medicina ou Arquitectura. Quando acabou o curso passou de aluna a professora.
Mónica Ferro tem 44 anos, é professora universitária e foi deputada pelo PSD. Nem sempre consensual. Fala ao SAPO24 do novo desafio e de uma agenda voltada para os direitos humanos, sobretudo das mulheres e jovens adolescentes. E aproveita para desmontar o mito de que há temas de esquerda e de direita – "embora a esquerda se tenha apoderado de alguns assuntos em matéria de discurso político".
É do Porto e veio estudar para Lisboa. Sempre quis seguir Relações Internacionais?
Vim para Lisboa para fazer Relações Internacionais no ISCSP. Os meus pais ofereceram alguma resistência, queriam a filha licenciada em Direito por Coimbra, tinham esse encanto. Sou a primeira licenciada da família, embora já tivesse na altura umas primas na universidade. Mas fiz-lhes esta grande partida e creio que só me perdoaram a escolha no final, quando viram que consegui um emprego mal acabei a licenciatura. Não percebiam o que era Relações Internacionais, apesar de o curso ser já muito apetecível na altura. Fui aluna de Adriano Moreira, o último ano em que deu aulas, estávamos em 1991, e a média de acesso foi a mais alta do país, superior a 18 valores. Começava então a ser descoberta a utilidade prática de uma licenciatura em Relações Internacionais.
Acabou por ficar a dar aulas depois de se licenciar...
Sim, fiquei a dar aulas. Primeiro na Universidade Internacional, depois, quase em simultâneo, no ISCSP. Por isso a opção de regressar ao Porto nunca se colocou de uma forma muito séria. Só aí é que os meus pais perceberam que a minha escolha não tinha sido um capricho de juventude.
Havia influências?
Nasci no Porto, tenho uma irmã quatro anos mais nova, e fui viver para Valbom. A minha infância foi toda passada em Gondomar, num sítio chamado Fonte Pedrinha, muito próximo da zona do Freixo. Tive uma infância muito banal, fiz todas as brincadeiras típicas, só nunca aprendi a andar de bicicleta, uma coisa que me deixa frustrada. Sobretudo quando me dizem que alguma coisa é como andar de bicicleta; como não tenho experiência, não me tranquiliza nada.
As suas filhas e o seu marido não pensaram já em ensiná-la a andar de bicicleta?
Penso que lá em casa já está mais ou menos convencionado que tenho muito pouco talento para executar tudo o que sejam tarefas que impliquem coordenação de mãos ou de pés. Está aceite. Também não tenho talento nem apetência - e não me seduz nada – para tecnologias e aplicações. As minhas filhas riem-se de mim e acham até singular o facto de a mãe, que é tão independente numa série de coisas, não ter, por exemplo, carta de condução. Ando de transportes públicos, metro, autocarro, táxi. A sorte é que sempre vivi no centro da cidade, o que facilita as coisas.
As Relações Internacionais eram uma vocação?
Fui sempre uma aluna com um desempenho relativamente bom a todas as disciplinas, não tinha uma vocação, não sentia uma vocação. Nunca disse "quero ser economista" ou "quero ser advogada" ou "quero ser médica". Fui-me passeando pelas diversas matérias, gostava de uma série de disciplinas, de História, de Geografia, e acabei por destacar o Direito e a Economia, aquelas com as quais brinquei mais tempo. Fiz Relações Internacionais com uma especialização em Economia. Mas nunca tive um chamamento, aquela coisa de dizer gostava muito de ser isto ou aquilo. Embora sempre tenha sentido falta disso.
Mas gostava da lógica internacional de determinados temas, dessa orientação?
As Relações Internacionais, desenhadas como estavam, eram uma espécie de curso feito à minha medida. Tínhamos Direito, tínhamos Economia e o curso respondia a essa minha vontade de continuar a estudar estas matérias orientadas numa lógica internacional. Ainda brinquei um pouco com a ideia de que gostaria de administrar uma grande empresa, uma multinacional. Mal acabei o curso fui convidada para dar aulas e achei isso apelativo. Houve pessoas no ISCSP, como o professor Adelino Maltez, que foram semeando em mim essa ideia desde o primeiro ano da universidade. "A Mónica é material para dar aulas", dizia ele. E estas coisas deixavam-me entre o orgulhosa e o esmagada. Também devo muito a uma pessoa que faleceu há pouco, o professor Luís Fontoura, que além de meu professor foi uma espécie de patrono, ajudou-me muito no início da carreira, ofereceu-me livros, deixou-me trabalhar e estudar no seu gabinete e levou-me para a Universidade Internacional. Tive a boa sorte de ter estas pessoas no meu caminho.
Como se dá a sua passagem para a política, como militante do PSD?
Sou militante do PSD há muitos anos. Estava ainda na universidade quando me juntei à JSD [Juventude Social Democrata], mas nunca tive uma vida partidária muito activa. Por outro lado, sempre colaborei com os gabinetes de estudo, colaborei nas revisões do programa do partido, participei em algumas iniciativas de reflexão sobre política internacional, cooperação, direitos humanos, que era o que gostava e as áreas em que a minha licenciatura e a minha experiência podiam ajudar.
Nunca gostei de discursos muito socializantes, no sentido de ter o Estado muito presente na economia, por exemplo.
Porquê a JSD e o PSD?
A verdade é que dentro da JSD e do PSD fui sempre considerada uma espécie de ponta esquerda do partido. Esta é até uma boa oportunidade para desmontar alguns equívocos. Quando entrei para a universidade tinha a ideia de ter também uma participação política – e aqui política significa partidária, porque a actividade política não se esgota nos partidos. Os partidos políticos eram verdadeiras escolas de formação; havia encontros, aprendia-se como o país funcionava do ponto de vista da organização político-governativa. E a JSD era a área ideológica com a qual me identificava mais, a social-democracia era o meu espaço, onde me sentia bem, aquele que conciliava a liberdade com a solidariedade. Nunca gostei de discursos muito socializantes, no sentido de ter o Estado muito presente na economia, por exemplo. Sempre pensei que a economia funcionaria melhor tendo o Estado como regulador e que devia, isso sim, ter uma rede social para aqueles que ficassem excluídos do processo de desenvolvimento. Mas sempre acreditei que a livre iniciativa era a melhor das receitas económicas.
De certa forma a questão dos direitos humanos já estava presente...
Tinha uma grande vontade de trabalhar a questão dos direitos humanos, isto esteve sempre no meu espírito. E tornei-me militante. Participei em iniciativas, fui a congressos e constitui um núcleo de amigos com quem me identificava - na mensagem e no estilo de fazer política. Quando comecei a dar aulas verifiquei que não tinha tempo para dedicar à minha carreira e à vida partidária, como gostaria. Mas continuei ligada à JSD e ao PSD e durante alguns anos construiu-se uma grande equipa que trabalhava sobretudo a área dos direitos humanos, direitos das mulheres e uma agenda muito mais liberal nestas matérias, como veio a verificar-se no Parlamento.
A culpa é do centro-direita, que sempre deixou que a esquerda tomasse como reféns estas questões [de estilos de vida]
Na Assembleia da República votou sempre alinhada com uma agenda mais liberal, no que diz respeito a estilos de vida, costumes... Menos conservadora do que seria de esperar?
Gerou-se a ideia de que cabe à esquerda pensar e tratar estes temas, o que não é verdade. A culpa é do centro-direita, que sempre deixou que a esquerda tomasse como reféns estas questões e que fosse a esquerda a ter um discurso público e articulado sobre estas matérias. Esforcei-me para que houvesse uma voz do PSD, uma voz social-democrata, mais ao centro, que pudesse ter também um discurso sobre temas como a participação política das mulheres, as quotas, a interrupção voluntária da gravidez, a procriação medicamente assistida alargada a solteiros ou a adopção por casais homossexuais. Foram sempre temas que me interessaram, que fui debatendo na sociedade civil e nas organizações da sociedade civil. Nunca achei que fossem temas de esquerda. Eram matérias às quais a esquerda estava a dar mais visibilidade, mas que deviam ser discutidas por pessoas de direita, de centro e de esquerda. Foi isso que me motivou a dar ainda mais visibilidade ao assunto. Já era colunista em alguns jornais, fazia comentário político na RTP e penso que foi isso que levou o PSD a convidar-me para integrar as listas, por Lisboa, às eleições em 2011.
Integrou as listas por algum regime de quotas?
Não tenho dúvida de que entrei para as listas porque havia um grupo de pessoas que achava que era importante ter uma voz na área da política internacional, da cooperação para o desenvolvimento e dos direitos humanos. Mas também porque há uma política de quotas. Olhamos para as listas e, apesar de aquela que eu integrava ter mais de 33% de mulheres nos lugares de topo, elas estão organizadas dois homens, uma mulher, dois homens, uma mulher.
É a favor do regime de quotas?
As quotas são um instrumento que permite às mulheres estarem representadas a 33% no Parlamento. Duvido que se deixássemos cair a política de quotas agora a representação das mulheres se mantivesse no nível actual. Ainda não estamos preparados para abandonar a política de quotas. Olho sempre para as quotas não como uma bala de prata, a solução, mas como medida temporária para permitir criar massa crítica. Penso que essa massa crítica ainda não está criada no país, ainda precisamos de mais uns anos até as nossas jovens, sobretudo as que fazem parte das juventudes partidárias ou de organizações não governamentais, que são tão articuladas e tão politicamente envolvidas, poderem afirmar-se sem a necessidade de uma política de quotas.
A política de quotas não garante, por exemplo, que uma mulher seja substituída por outra mulher no mesmo cargo. Porquê?
Esse é um dos problemas da política de quotas como a temos em Portugal, uma das grandes debilidades. O regime diz que pelo menos 33% de cada género tem de estar representado no Parlamento, o que significa que se quiséssemos ter uma lista com 80% de mulheres isso não seria possível. Pensamos sempre na perspectiva das mulheres porque são elas que estão subrepresentadas, mas também não seria possível inverter a situação. Algumas pessoas pensam que o feminismo é o machismo ao contrário, mas não é. Feminismo é igualdade de oportunidades. Mas, de facto, a lei não obriga a que se sair uma mulher ou um homem do Parlamento, por exemplo, este seja substituído por alguém do mesmo género. Uma mulher não tem de ser substituída por outra mulher, como um homem não tem de ser substituído por outro homem. Uma lei de paridade, até nestas circunstâncias, só é eficaz se uma saída prematura for compensada por alguém do mesmo sexo. Esta é uma das falhas da lei, que só faz sentido se for para criar iguais oportunidades de participação.
Falou na constituição das listas. Vêm aí as eleições autárquicas, onde há muito mais homens que mulheres. Mas também é preciso que elas se cheguem à frente, não?
Em relação às autarquias há uma coisa curiosa do ponto de vista de análise. A política das autarquias é uma política de proximidade. Por tradição são as mulheres que desempenham a maior parte das tarefas no lar, são quem acumula as tarefas domésticas com o emprego fora de casa, são quem trata dos seus doentes e, por isso, na prática, deviam estar mais bem equipadas para esta política de proximidade. Mas não. Um estudo feito a propósito das últimas eleições autárquicas revela que o candidato autárquico é homem e tem 45 anos de idade. Estranho que quando se está a fazer as listas se diga que não há mulheres, não se encontram mulheres. Surpreende-me porque conheço muitas mulheres que trabalham em associações, em organizações não governamentais, em todo o tipo de agrupamentos ligados à comunidade. Mas parece que não conseguimos trazê-las para a actividade político-partidária e de candidatura. Então, está na altura de começarmos a perceber porquê.
"Senhora presidente, a minha mãe disse-me que é possível um homem ser presidente da República. É verdade?"
Tem alguma resposta?
É interessante. Eu diria que esta ainda é uma sociedade muito patriarcal, crescemos a ver os homens nos lugares de tomada de decisão. O nosso modelo de exercício de poder ainda é protagonizado por homens. Lembro-me de uma história repetida por Tarja Halonen, que foi presidente da Finlândia 12 anos. Contava que ao fim de estar sete ou oito anos no poder recebeu um postal de um menino de oito ou nove anos que lhe dizia: "Senhora presidente, a minha mãe disse-me que é possível um homem ser presidente da República. É verdade?" Ou seja, este rapaz cresceu com uma mulher presidente, para ele o exercício de poder político era feito por mulheres. Em Portugal temos a experiência inversa.
Mas já temos candidatas a. É um avanço?
As últimas eleições presidenciais foram uma pedrada no charco, tivemos duas candidatas fortes [Marisa Matias e Maria de Belém], duas mulheres com muita visibilidade política. Isso inspira jovens e menos jovens e, à falta de melhor expressão, normaliza a presença das mulheres na política. Mas é verdade que ainda temos um certo preconceito e muitas vezes até ouvimos mulheres dizer que não gostam de trabalhar com mulheres, que é uma coisa que me transcende. Penso que tem a ver com estas construções socioculturais e também com o facto de a actividade política estar organizada de uma forma que não dá muito espaço para que as mulheres estejam tão libertas à participação: continuam a trabalhar mais horas dos que os homens em casa e no emprego e, desempenhando a mesma tarefa, ganham menos do que eles. Não sou eu que o digo, é o Instituto Nacional de Estatística. Esta dupla jornada é muito silenciosa e está culturalmente enraizada, tanto que algumas mulheres afirmam "o meu marido até me ajuda lá em casa", tendo interiorizado que o papel principal, a obrigação social é dela. Tudo o que o marido faz é uma espécie de bónus que a vai libertar daquilo que é, na realidade, sua competência. É preciso desconstruir isto. O meu ideal era um mundo em que não fosse excepção ver uma mulher primeira-ministra, presidente ou o que quer que fosse.
Acredita que isso já será possível na geração das suas filhas?
Vai ser mais fácil. Embora tenha de admitir que estou surpreendida com a lentidão da mudança social. Sei que a mentalidade não se muda por decreto - quem nos dera. Os decretos dão uma ajuda, um empurrão a estas questões, mas não substituem toda a mudança sociocultural que tem de acontecer. Adriano Moreira alertava-nos para o facto de o tempo legislativo ser sempre mais rápido do que o tempo de mudança social. No caso da participação das mulheres está a resistir. Muito.
Isto leva-nos a Genebra e ao seu novo cargo. Quando decidiu candidatar-se?
Quando comecei a dar aulas fui-me especializando em organizações internacionais e, muito concretamente, nas Nações Unidas. Tenho uma matriz liberal, não institucionalista, como disse. Na Assembleia da República há um grupo interparlamentar, constituído por deputados de todos os partidos, que trabalha a questão da população e desenvolvimento, matérias ligadas ao enquadramento das mulheres, da violência contra as mulheres, participação dos jovens, casamentos infantis, mutilação genital feminina, saúde sexual e reprodutiva. Já tinha trabalhado com este grupo na universidade, onde ajudei a criar algumas organizações não governamentais, uma das quais era a interlocutora do Fundo das Nações Unidas para a População [FNUP] em Portugal. Quando cheguei ao Parlamento houve uma espécie de consenso sobre eu integrar esse grupo e, como cabia ao PSD indicar o presidente, fiquei eu. Enquanto parlamentar participei em várias conferências a convite do FNUP, embora não tenha feito nenhuma das viagens organizadas pelo fundo, e quando voltei para a universidade continuei a acompanhar a sua actividade e a escrever sobre estes temas.
Conhecia bem a agenda do fundo...
Quando o lugar de directora de Genebra vagou - eu tinha uma grande admiração pela pessoa que lá estava – decidi candidatar-me, sabendo que isto iria implicar uma mudança de 180 graus na minha vida, porque continuo a trabalhar a mesma agenda mas noutro noutro sítio, com outro enquadramento institucional. O prazo era 24 de Outubro, Dia das Nações Unidas, e pensei logo que seria um dia auspicioso para entregar a candidatura. Foi um concurso internacional, primeiro de análise curricular, depois de entrevista, selecção por uma organização de recursos humanos internacional, com testes psicotécnicos, jogos de simulação e entrevistas de competências, e, finalmente, uma entrevista com o director do fundo. A organização chegou à conclusão que eu poderia desempenhar o papel, coisa que em breve vou tentar provar como certa.
Está previsto começar a 1 de Abril?
Sim, estamos a apontar para aí. Falta finalizar os aspectos administrativos, exames médicos e outros detalhes.
Como será com a sua família?
As minhas filhas ficam cá a terminar o ano lectivo. Ponderámos se seria adequado mudá-las para fazer três anos num ano lectivo noutro país, num registo de ensino completamente diferente, com aulas em inglês e francês, e chegámos à conclusão que não valia a pena, era um esforço demasiado. Quando terminarem as aulas em Portugal juntar-se-ão a mim e farão o próximo ano lectivo em Genebra. Caetana, a mais nova, vai fazer sete anos e está no primeiro ano. A Carlota tem 11 anos, faz 12 no Verão, e está no sexto ano. Vai ser uma grande aventura para elas. Mas são ambas meninas muito pró-activas e nesta idade a mudança é mais fácil. Isto também é algo que me tem deixado ansiosa, não sou só eu que vou mudar, é uma família que muda. Ainda ontem ao jantar falávamos sobre isso e elas perguntavam porque é que têm de ir.
O que respondeu?
Respondi a única coisa que me pareceu possível: porque somos uma família e as famílias fazem as coisas em conjunto. Mas, não vou mentir, elas não gostaram da ideia.
Porquê, quais são os motivos delas?
A primeira reacção foi: "E os nossos amigos? E a nossa casa? E as nossas coisas?" A Carlota perguntava: "E os meus livros?" A mais nova perguntava: "E a minha trotinette?" É engraçado perceber o que as afecta. Mas é todo o ambiente: os amigos, a família, a D. Gorete, que está connosco lá em casa e me tem ajudado com as meninas desde que a Carlota tem um ano, é o meu braço direito. Também quiseram saber o que lhe acontecia e tive que lhes explicar que fica em Portugal mas que vai ser sempre da nossa família. Colocámos a verdade toda em cima da mesa. Dissemos-lhes que este é um lugar de carreira, no qual poderei ficar muitos anos, mas que é algo que não é irreversível. Como tudo. E que pressupõe que consigamos ser felizes e produtivos noutro país. Uma vez mais, não vamos mudar apenas porque a mãe tem um desafio profissional muito interessante, vamos mudar porque pode ser bom para toda a família. E houve um argumento muito forte, porque elas gostam muito de viajar – estão numa idade em que querem estar constantemente a marcar viagens - que foi o facto de Genebra ser perto de Itália, de França, uma belíssima plataforma para conhecer outros países.
E o seu marido?
Estamos a planear que vá e comece activamente à procura de emprego. Tem cá obrigações profissionais importantes, é administrador de uma escola e de uma universidade e tem compromissos, mas o ideal é ter a família unida. Penso que vai haver uma fase de habituação até para mim, é uma cidade completamente diferente, com uma lógica de trabalho muito distinta. Usando uma expressão que se tornou popular quando eu estava no Parlamento, embora não pelas melhores razões, vou literalmente sair da minha zona de conforto. Mas tenho a noção, olhando para todas as organizações das Nações Unidas, que não arranjava outra tão à minha medida, com uma agenda com a qual me identifico na totalidade.
(...) todos os dias morrem 300 mil mulheres de causas ligadas à gravidez, ao parto e ao pós-parto e mais de 90% destas mortes ocorrem no mundo em desenvolvimento. (...) parece-me imperdoável não salvarmos a vida da maioria destas mulheres
Quais os temas que a mobilizam? Tem ideias concretas sobre o que quer fazer?
Numa fase inicial vou perceber qual a minha real capacidade de acção. Vou trabalhar sobretudo com questões ligadas aos direitos das mulheres, como a eliminação da violência, a gravidez jovem, o fim dos casamentos infantis, da mutilação genital feminina. Muito numa lógica de enquadramento das raparigas e das mulheres. É uma agenda de saúde sexual e reprodutiva. Parece impossível, mas na década de 70 Portugal tinha uma taxa de mortalidade materna verdadeiramente inaceitável para um país europeu e foi com a ajuda da Organização Mundial de Saúde, do Fundo das Nações Unidas para a População e com vontade política que nos tornámos num dos países do mundo onde é mais seguro estar grávida e dar à luz. Mas todos os dias morrem 300 mil mulheres de causas ligadas à gravidez, ao parto e ao pós-parto e mais de 90% destas mortes ocorrem no mundo em desenvolvimento. Olho para isto e penso: eu sei como é que se faz. Portanto, parece-me imperdoável não salvarmos a vida da maioria destas mulheres. É uma agenda que me mobiliza e Genebra é o centro ideal, porque é a capital do mundo dos direitos humanos, da saúde e das questões humanitárias.
Esse é outro ponto, vivemos numa época de emergência humanitária...
É um ponto crucial. Há uma imagem que tento passar: nos campos de refugiados e nos campos de acolhimento as mulheres continuam a dar à luz. Mais de 25 milhões estão em idade sexual reprodutiva. Ou seja: precisamos de lhes levar contraceptivos, de lhes dar consultas de planeamento familiar, de levar kits para fazer partos e cesarianas, de levar pensos higiénicos. Fala-se em resposta humanitária e todos se lembram - e bem - de comida e de medicamentos, mas as necessidades específicas das mulheres continuam a ser ignoradas. E não pode ser. Nos campos de refugiados montam-se escolas, a Unicef tem até uma campanha muito interessante: "Não podemos perder esta geração". Mas se não existirem casas de banho para meninas e não lhes fornecerem pensos higiénicos elas não podem ir à escola. E isto está tão fora do nosso radar... Costumo ser optimista e ver sempre o lado positivo das situações e, como disse, a vantagem é que sabemos o que fazer para mudar isto. E isso dá-me energia, dá-me força.
Para onde caminha a Europa em matéria de direitos humanos e o que se espera dos países europeus?
Espera-se que a Europa assuma um papel. Muitos dos que pedem asilo procuram-nos porque vêem na Europa um espaço de paz, de bem-estar, de segurança e de prosperidade. Desse ponto de vista, e para quem nos olha do lado de lá do Mediterrâneo, que é um mar suficientemente pequeno para não separar povos, a Europa é um Eldorado, um sítio onde querem estar para refazer as suas vidas. Por isso a Europa ou a União Europeia, a configuração que se quiser, tem de ter um papel muito assertivo na mesa das negociações da paz. Não nos podemos demitir disso. Não vamos conseguir construir um mundo mais digno para estas pessoas se o que as leva a fugir são, esmagadoramente, os conflitos armados ou a violação dos direitos humanos. Temos a obrigação e o dever de socorrer os que nos procuram e precisam da nossa ajuda.
Isso também pressupõe meios, financeiros e não só. Dispomos deles?
Pressupõe que se criem as condições para que possamos ajudar as pessoas no sítio onde elas estão, mas também que possamos recebê-las com alguma dignidade. A circunstância de muitos países europeus estarem a atravessar crises financeiras afecta muito a solidariedade. Penso sempre na Grécia, que está na linha da frente, a receber todos os dias milhares de pessoas nas suas costas, nas suas ilhas, ao mesmo tempo está a braços com a maior crise económica de sempre. É um drama humano. Penso que a solidariedade europeia falhou nos momentos mais difíceis. Quer a solidariedade intra-europeia, quer a solidariedade internacional.
Não me lembro de outro momento em que o projecto europeu estivesse tão posto em causa como agora
Como é que se consegue socorrer os de fora quando mal chega para os de dentro? Como é que a União Europeia pode socorrer países terceiros, ajudar estrangeiros, quando não consegue ajudar os seus Estados-membros?
Não me lembro de outro momento em que o projecto europeu estivesse tão posto em causa como agora. A saída do Reino Unido, a Holanda, as sondagens em França, uma Itália fragmentada, a Alemanha igual, onde a política de acolhimento e de integração de refugiados da chanceler Merkel lhe tem valido a descida nas sondagens... Em todo o lado estão a aumentar os movimentos que, mesmo não sendo xenófobos, são muito populistas e o projecto europeu está ameaçado por dentro. Isto não vai significar o fim da Europa, acredito que não signifique o fim da Europa, mas significa que o ímpeto de integração diminuiu. E é preciso notar que a Europa é o maior contribuinte mundial em matéria de assistência humanitária. Pensando nas minhas funções a breve trecho, interessa-nos uma Europa unida, com voz forte, porque os valores europeus são valores de direitos humanos. Na mesa das negociações a Europa tem de poder falar deste acervo civilizacional. Mas interessa-nos a saúde financeira da Europa, porque nos preocupa a falta de financiamento em várias áreas de trabalho das Nações Unidas, inclusive do Fundo das Nações Unidas para a População.
E o Reino Unido, um dos principais contribuintes líquidos, vai sair da UE, embora não saia das Nações Unidas. Isso preocupa-a?
Estas áreas estão cronicamente subfinanciadas. Um enfraquecimento da Europa pode significar o enfraquecimento de um grande contribuinte. Quando o Reino Unido decidiu sair da União Europeia preocupou-me o facto de ser um contribuidor líquido da UE e um grande contribuinte para matérias como a saúde sexual e reprodutiva. Não estou a ver que as contribuições do Reino Unido para as Nações Unidas sejam afectadas, mas as contribuições para a União Europeia e, consequentemente, da UE para esta agenda, podem estar comprometidas. Uma Europa forte é uma Europa assertiva, mas é também uma Europa rica. Uma Europa generosa. E não é o que está a acontecer agora.
Há uma forma – ou uma fórmula – de compensar os financiamentos que vão "caindo"?
Vou roubar as palavras do mais alto funcionário das Nações Unidas, António Guterres: temos de combater os discursos populistas - curiosamente usados para desvalorizar os políticos, os tais que dizem ser tecnocratas, pessoas que vivem distantes da realidade, mas ao mesmo tempo usados para capturar o poder, o que não deixa de ser interessante. Temos de combater estes discursos de exclusão. Guterres utilizou uma expressão: "O mundo é tanto mais rico quanto mais multicultural, multiétnico e multirreligioso". Subscrevo totalmente esta visão. Mas também disse que as Nações Unidas têm de comunicar melhor, as organizações internacionais têm de aprender a mostrar como é que todos os dias afectam positivamente a vida de milhões de pessoas. O secretário-geral anterior, Ban Ki-moon, tinha a vida facilitada, porque ele próprio era um filho das Nações Unidas e contava que saiu da sua aldeia, na Coreia do Sul, durante a guerra e que foi graças às Nações Unidas que teve uma casa, roupa, um sítio para estudar. Isto significa, em algumas matérias, tornar a organização mais eficiente, responsável pelas coisas que não correm bem, mas também um processo de autocrítica e de auto-reflexão. E mostrar para que serve o dinheiro e a voz política que damos às organizações internacionais.
Credibilizar para ganhar novas fontes de financiamento?
Fazer com que os gastos da organização estejam cada vez mais centrados nas pessoas, criar sinergias para que as máquinas burocráticas pesem cada vez menos naquilo que são os orçamentos. Estamos a falar de crise de financiamento, mas também há países que ainda têm muita disponibilidade para ser mais solidários. Ainda agora, com esta questão dos eventuais cortes do Reino Unido, alguns países escandinavos e o Canadá vieram imediatamente dizer que têm margem de manobra para financiar estas áreas.
Temos de deixar de ver a solidariedade como caridade e passar a vê-la como cooperação
A solidariedade deve ser vista como um investimento?
Temos de deixar de ver a solidariedade como caridade e passar a vê-la como cooperação. Olhar para estas questões numa lógica de investimento e de cooperação internacional. Mesmo para os empresários a solidariedade e cooperação é algo muito interessante, porque permite criar sociedades e mercados mais estáveis, aproveitar mercados para escoar produtos, aproveitar mão-de-obra. Este é o discurso que uso quando não consigo convencer ninguém pela narrativa dos direitos humanos; vou lá pelo economês e mostro que há interesse económico em fazer cooperação. A violência contra as mulheres tem um custo estimado em problemas de saúde, produtividade, tribunais e por aí fora.
Há pouco falou do Estado enquanto regulador. Não posso deixar de lhe perguntar sobre a regulação/supervisão em Portugal, nomeadamente a das instituições financeiras.
A minha análise traduz-se nisto: o que temos não está a funcionar. Estamos a falhar no sentido de garantir que problemas como os que têm levado a intervenções na nossa banca, por exemplo, sejam detectados a tempo e resolvidos. As pessoas já perceberam que cada vez que é preciso uma intervenção para corrigir um problema é o dinheiro delas que é posto em causa. A ideia que existia há uns anos de que o problema económico-financeiro que acontecia nas empresas públicas era algo distante, já não existe. O Estado não tem uma máquina de imprimir dinheiro na cave, o dinheiro das intervenções é dinheiro dos nossos impostos. Os recursos não são ilimitados e eu diria que muito do descontentamento popular que temos em Portugal com os políticos, com esta classe de empresários, vem desta consciência, que é muito recente. É preciso criar um modelo de alerta precoce e eficaz. E criar mecanismos de responsabilização.
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