Para entender o que se passa no Cais do Ginjal, é preciso voltar atrás no tempo. A situação remonta ao pós 25 de abril de 1974, quando as fábricas da zona começaram a fechar.

"As empresas industriais que ali existiam empregavam muita gente e mantinham uma atividade diária muito importante. Era um espaço muito vivo", diz Henrique Mota, presidente da Associação de Cidadania de Cacilhas - O Farol, em conversa com o SAPO24. Num pequeno café em Cacilhas, cumprimenta com um sorriso no rosto cada um que ali entra, enquanto recorda o que o Ginjal costumava ser, mostrando o livro “O Ginjal: Porta a Porta”. Nas páginas, estão gravados todos os pequenos e grandes negócios que ali existiam, para que nunca caiam no esquecimento.

Como era o Cais do Ginjal?

Foi por volta de 1860 que o Cais do Ginjal começou a ganhar a forma que tem hoje. Com o aforamento dos terrenos ribeirinhos, pequenos e grandes empresários começaram ali a desenvolver os seus negócios. A família Theotónio Pereira, uma das mais importantes na construção do cais, estabeleceu no Ginjal os seus armazéns de vinho e azeite, que funcionaram durante mais de cem anos.

Depois vieram fábricas de cortiça, um estaleiro naval, uma destilaria, uma fábrica de óleo de fígado de bacalhau, fábricas de gelo e armazéns frigoríficos, oficinas de reparação naval, entre outros. Todos estes negócios fizeram do Cais do Ginjal um importante polo comercial, industrial e económico. 

No entanto, por volta da década de 1970, a construção da Ponte 25 de Abril levou à rápida substituição do transporte fluvial de mercadorias pelo rodoviário. A grande atividade económica do Ginjal diminuiu drasticamente e, progressivamente, os edifícios foram caindo no abandono. 

Ali, permaneceram as famílias que moravam no Pátio do Ginjal, que chegou a ter mais de 100 moradores. É o caso de Júlia Capelo, a última moradora do Ginjal.

A última moradora do Ginjal

“Eu nasci, casei e tive os meus filhos no Pátio”, conta Júlia Capelo, de sorriso no rosto, ao SAPO24. Foi na ARPIFC - Associação de Reformados Pensionistas e Idosos da Freguesia de Cacilhas, que revelou todos os detalhes de uma vida passada no Ginjal. Da infância até aos 65 anos, quando foi obrigada a sair e tornou-se, assim, juntamente com o marido, a última moradora do Ginjal.

Nasceu em 1947 no Pátio do Ginjal. Aqui existiam 13 casas, segundo Júlia, que conta pelos dedos e em voz alta, enquanto visualiza na sua cabeça o pátio que tão bem conhece. Depois de casar, aos 23 anos, mudou-se para a zona ribeirinha, num dos prédios em frente ao Rio Tejo. Os pais trabalham nos armazéns Theotónio Pereira e foi também no pátio onde cresceu que conheceu o marido, Henrique, que trabalhou até aos 14 anos numa latoaria por baixo do apartamento onde moravam, e foi depois trabalhar para o Grémio, também naquela rua. 

“Ele vivia em baixo e eu em cima. Apesar da pobreza que havia, éramos crianças felizes. Fome, pelo menos, nunca tivemos. Ajudávamo-nos uns ao outros.”

Júlia, por sua vez, nunca trabalhou no Ginjal. Trabalhava numa tipografia no Bairro Alto, no entanto assume que “detestava” ir para Lisboa: “Eu tinha muita pena, porque de todas as pessoas que lá moravam, era só eu e outra que íamos para Lisboa. E eu não queria nada ir trabalhar para Lisboa.” 

Os motivos não eram propriamente associados à capital, mas sim ao rio que separava as duas margens. Numa ida a Lisboa, quando tinha nove ou dez anos, para ir buscar a tia que regressava dos Açores, a mãe de Júlia sentiu-se mal no barco. O mar estava muito mau e Júlia “criou pânico”. 

“No entanto, nunca passei mal de barco. Parece que Deus sempre me protegeu”, recorda Júlia, sempre de sorriso no rosto.

Foi em 2015 que finalmente se despediu do Ginjal. Depois de 5 anos de tentativas por parte do grupo proprietário, Júlia e o marido aceitaram uma indemnização e mudaram-se para Cacilhas, não indo para muito longe.

“O meu marido não queria nem por nada sair de lá, mas eu tanto insisti que acabou por sair… Hoje estou satisfeita. Já não havia luz no caminho todo. Já havia muita degradação e já não havia ninguém a viver lá. Éramos só nós”, explica Júlia, quando questionada sobre o porquê de ter saído. 

Tinha 65 anos quando saiu e admite não ter sido pressionada para tal. Não tem pena de ter tomado a decisão que tomou, mas também não vai ao Ginjal, mesmo morando tão perto, porque a entristece. 

“Só tenho visto por fotografias. Eu também arranjei uma boa casa, gosto da minha casinha pequenina. Não tem nada a ver com a outra, mas a outra também era muito grande para mim.”

A “outra”, que no fundo do coração, não deixa de ser sua. Ao mostrar uma fotografia da mãe à janela na casa do Ginjal, Júlia hesita ao dizer “Esta foi antes de chegar à minha casa… Para mim ainda é a minha casa”.

Júlia não voltaria atrás a não ser que o Ginjal fosse reconstruído, uma vez que o plano era ficar naquela que foi a sua praia “desde 1949 até 2015”. No entanto, as esperanças de um dia voltar a ver um Ginjal que a agrade são poucas.

“O projeto que eu vi estava muito bonito, ia ficar um espanto. A minha sogra, que também vivia lá, dizia - isto no vosso tempo ainda vai mudar, agora eu morro e isto ainda fica assim. E agora digo eu isso, eu morro e aquilo ainda fica assim.”

Pinturas de Júlia Capelo
Pinturas de Júlia Capelo Pátio do Ginjal, pintado por Júlia Capelo créditos: Júlia Capelo

O impasse de anos

Ao longo dos anos, foram anunciados vários projetos para a reabilitação do Cais do Ginjal. Entre o fim da década de 1990 e o início dos anos 2000, o grupo madeirense AFA comprou cerca de 90% dos terrenos e edifícios da zona ribeirinha.

Em 2008, foi iniciada a elaboração do Plano de Pormenor do Cais do Ginjal, um plano que previa a construção de um hotel, cerca de 300 casas, comércio, serviços, entre outros.  Numa segunda fase, em 2015, foi negociada a saída dos poucos habitantes que ainda moravam no Pátio do Ginjal, através do pagamento de uma indemnização acordada entre as partes.

12 anos depois do início do Plano, em 2020, o projeto foi finalmente aprovado pela Câmara Municipal de Almada e foi anunciado um investimento de 300 milhões de euros, quase todo privado, sendo suportado pelo Grupo AFA. No entanto, até ao dia de hoje, ainda não foram iniciadas as obras no Cais.

Ocupantes de longa data

Ao longo dos anos, várias pessoas foram ocupando os espaços abandonados no Cais do Ginjal. Hoje, os ocupantes contam ao SAPO24 que já há quem tenha nascido e crescido lá. No total, são cerca de 50 moradores, e os mais antigos já lá moram há mais de 30 anos. 

“Para os habitantes aqui de Cacilhas, não há hostilidade nenhuma em relação às pessoas que ocuparam o espaço, porque se ocuparam o espaço é porque não têm casa, e estão dentro de um problema atual que é a falta de habitação”, afirma Henrique Mota.

Em abril de 2023, o Grupo AFA afixou, nas portas dos edifícios dos quais é proprietário, avisos para a desocupação imediata e obrigatória dos mesmos. O alerta foi dado, já na altura, pela Câmara Municipal de Almada e pela Proteção Civil, uma vez que existia risco de derrocada, devido à degradação do cais.

No mesmo aviso, a AFA informa que “não se responsabilizam por quaisquer danos que possam ser causados a pessoas e bens que se localizem nos imóveis”.

Quem são os habitantes do Ginjal?

Onde era o Clube Náutico de Almada, e antes disso, um armazém da família Theotónio Pereira, é hoje o Gira Ginjal. Podia ser “apenas” uma coletiva de arte, mas é mais que isso. Aqui, fazem-se esculturas, pinturas, música, artesanato e poesia. Mas não só, o espaço é também um local de acolhimento para aqueles que chegam e não têm onde ficar. 

Yasser Fati chegou há 12 anos. Esta é a sua casa, mas as portas estão sempre abertas para quem quiser entrar.

“Cheguei aqui há um mês, e estava na pior fase da minha vida. O Fati deu-me um sítio para ficar e um prato de comida quando tinha fome”, diz Marco, um jovem tatuador e artista brasileiro, ao SAPO24.

O ambiente tinha tudo para estar pesado. Esta semana, os moradores do Gira Ginjal foram avisados pela Câmara Municipal de Almada que iriam ser despejados. Chega ao fim um projeto de anos, e os ocupantes não escondem a preocupação de não saberem para onde vão. A tristeza está presente, mas a rádio não deixa de tocar, o barro continua a ser esculpido e as portas continuam abertas para quem quiser entrar. 

Sofia, uma amiga dos moradores, conta-nos que não dormem há quatro dias, desde que receberam o aviso para saírem, devido ao risco de derrocada na zona degradada. Na última madrugada, Marco aproveitou as horas de sono perdidas para homenagear, uma última vez, aquele o acolheu. Foi através de um grafitti de Fati na entrada, onde se lê “Paizinho”.

Yasser Fati, pintado pelo artista Markink
Yasser Fati, pintado pelo artista Markink Grafitti do artista Markink à porta do coletivo Gira Ginjal créditos: Markink

“A escola não tem condições de ter alojamento para as pessoas. É um campo de refugiados? Qualquer dia parece que estamos em Gaza, ou no Médio Oriente”

“Ele fez o trabalho que o Estado não fez, como é que não havia de merecer uma homenagem?”, diz Marco. 

Depois de ter sido decretada situação de alerta por parte da autarquia, que anunciou o encerramento dos acessos ao Cais do Ginjal até pelo menos dia 1 de maio, foi também ativada uma Zona de Concentração e Apoio à População. A CMA anunciou que a Escola Secundária Anselmo de Andrade vai acolher os moradores, durante cerca de duas semanas, até serem encontradas alternativas que serão estudadas pelos serviços sociais. No entanto, os habitantes queixam-se da falta de clareza nas soluções apresentadas e afirmam que a Câmara não lhes deu garantias de habitação depois do período de 15 dias.

À medida que andava pelos corredores do antigo armazém, onde é possível encontrar as mais variadas peças de arte, Fati não esconde a sua frustração com a situação: “Nós não somos gado para nos amontoaram. Somos pessoas e merecemos dignidade”.

Quem também contesta a solução de abrigo, é Henrique Mota: “A escola não tem condições de ter alojamento para as pessoas. É um campo de refugiados? Qualquer dia parece que estamos em Gaza, ou no Médio Oriente.”

Fati também não confia nas soluções prometidas pela Segurança Social. O amigo Abel, eternizado nas paredes do espaço, morreu repentinamente no que Fati descreveu como um ataque cardíaco. Diz que o “desespero” que a Segurança Social lhe causou foi uma das razões.

“30 anos de descontos e não tenho direito a uma habitação? Trabalhei dia e noite, 16 horas por dia.”

Por aqui, há também queixas sobre a valorização da arte, mas não das pessoas que a produzem. Sofia conta que esta semana esteve lá uma representante da cultura da Câmara de Almada, que pediu para empacotar o que conseguissem para que as obras fossem preservadas num armazém. No entanto, segundo os moradores, a situação foi diferente quando a Câmara foi até ao local com papéis de despejo para serem assinados. Fati afirma que lhe foram dados os papéis, indicou que ia guardá-los para lê-los, e então assinaria, caso concordasse. Segundo o que conta, os papéis foram imediatamente arrancados das suas mãos no momento em que disse isto. 

“Não podem vir aqui, empoderar-nos e depois darem-nos um pontapé no cu”, diz Fati. 

No Gira Ginjal, todos afirmam que não querem razão, porque como diz Fati, “a razão não existe”. No entanto, querem respostas. 

Paulo Santos é outro dos moradores do Ginjal. Vive aqui desde que nasceu, há 32 anos e garante que esta é a morada da família há três gerações. Atualmente, vive com a mulher Sara e os dois filhos.

“Não saio para ir para um pavilhão. Só saio para uma casa. Eu trabalho, desconto, tenho contrato de trabalho, estou efetivo numa empresa. Posso pagar renda, nunca disse que não pagava, mas com os nossos ordenados precisamos de uma casa com renda justa”, diz Paulo.

A tia está doente, e não tem condições para andar “de posto em posto”. A senhora, que acabou por vir à porta ver o alarido que acontecia em frente à sua casa, afirmou que “só em medicamentos” paga cerca de 150 euros por mês, tornando-se impossível encontrar habitação acessível. 

O que será do Cais do Ginjal?

“A questão principal é a possibilidade de ser criado ali um bom desenvolvimento económico que traria mais riqueza, trabalho, uma requalificação do espaço, e está tudo parado. Em vez de se unirem para resolver os problemas, as entidades entendem que cada um é dono  das coisas à sua maneira, e esquecem-se que quem é dono das coisas é o povo”, afirma Henrique Mota, que tem o desejo de ver o Ginjal com a vida que costumava ter. 

Os recursos são muitos e as possibilidades são infinitas, no entanto, só o futuro dirá o que acontecerá ao Cais do Ginjal. Contactámos o Grupo AFA para perceber em que fase se encontra o projeto e quais os próximos passos, no entanto, não obtivemos resposta. 

Já para quem mora em Cacilhas, como é o caso de Henrique Mota, o desejo é só um: “Gostaríamos de ver este problema resolvido o mais depressa possível. Isto é um grande atraso de vida e está a pôr em causa o desenvolvimento não só de Cacilhas como do próprio Concelho da Almada. O Cais do Ginjal faz toda uma ligação. Devia ser uma alternativa à 24 de Julho.”

Artigo editado por Rute Sousa Vasco