Conquistaram o direito de voto, foram eleitas chefes de governos nos cinco continentes, foram distinguidas em todas as categorias dos prémios Nobel e viajaram até ao espaço. Nos últimos 100 anos, o papel das mulheres na sociedade tem mudado muito, saindo de casa para o mundo do trabalho e conquistando o seu lugar próprio na sociedade atual.
No entanto, nas maiores religiões mundiais, as mulheres continuam a ter papéis secundários, sendo muitas vezes marginalizadas ou mesmo oprimidas pela pressão social que sobre elas é colocada. Em várias religiões, as mulheres estão impedidas de aceder ao ofício de ministros de culto, em outras não podem rezar ou mesmo entrar em locais de devoção ao lado dos homens.
Apesar disto, segundo dados do Instituto Europeu da Igualdade de Género, as mulheres são as que mais participam em serviços religiosos (não contando com batizados, casamentos e funerais). Isto acontece em todos os países europeus exceto na Turquia, Kosovo (dois países maioritariamente muçulmanos) e Sérvia (onde predomina o cristianismo ortodoxo).
Nesta mesma linha, um estudo do Pew Research Center, um instituto de investigação dos Estados Unidos, dá ainda conta de que a tendência das mulheres serem mais religiosas que os homens não é universal, tendo em conta o que se passa nos países maioritariamente muçulmanos e o papel dos judeus ortodoxos de Israel: nestas sociedades, é esperado que os homens vão a serviços religiosos à sexta-feira ou ao sábado, respetivamente, enquanto as mulheres podem cumprir deveres religiosos fora do local de culto.
Recentemente, num tempo em que as redes sociais motivam o ativismo e a solidariedade entre crentes, mulheres em todo o mundo têm encontrado novas maneiras de desconstruir barreiras e tradições. O movimento #MeToo chegou a muitas confissões, como é caso dos evangélicos nos Estados Unidos e da Igreja Católica, em vários países da Europa, nos EUA e na Índia, por exemplo.
Neste último país, milhares de mulheres lutam pelo direito de entrar nos templos hindus, como exemplifica a manifestação que formou, em Janeiro, uma corrente humana de 620 quilómetros. Até há pouco tempo, as mulheres com idade para ser menstruadas (entre os 10 e 50 anos) estavam proibidas de entrar no Templo Sabarimala, um dos locais de peregrinação mais sagrados do hinduísmo.
Uma comunidade judia ortodoxa de Jerusalém (Israel) permitiu que a oração de sexta à noite (início do Shabath judaico) as mulheres animem as orações na sinagoga.
Mas quão grandes são as diferenças de género dentro de cada religião? E o que querem as mulheres crentes em cada uma das confissões? Até 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, o 7MARGENS irá traçar um retrato de qual é a situação das mulheres e os debates existentes sobre os seus papéis dentro de diferentes tradições religiosas. Hoje falamos do mundo católico.
Mulheres na Igreja Católica – Há uma metade do céu que não é salva?
“Há uma coisa que é preciso ter em conta: a Igreja Católica é uma instituição à escala global. A questão das mulheres dentro da Igreja não é vista da mesma maneira em todas as culturas, porque as necessidades são também diferentes de cultura para cultura. Portanto, é difícil falar do que as mulheres católicas gostariam de ter ou ser na Igreja sem ter em conta que, em diferentes espaços, desejam coisas diferentes”, afirma Teresa Toldy, doutorada em Teologia, autora do livro Deus e a Palavra de Deus na Teologia Feminista (ed. Paulinas).
“Quando se fala de pobreza, por exemplo, sabemos por dados oficiais que os grupos populacionais mais desfavorecidos são as mulheres e crianças. Essa é uma preocupação que o Papa Francisco tem, quando diz que os pobres estão no centro da Igreja”, diz a professora da Universidade Fernando Pessoa (Porto). “Nos ambientes culturais em que a pobreza é a questão mais relevante de todas, esse é um foco muito importante – apesar de aí ainda faltar explicitar de uma maneira mais concreta que a esmagadora maioria dos pobres são as mulheres”, acrescenta.
Por contraste, Teresa Toldy aponta a realidade de além-Atlântico: “Quando falamos das mulheres católicas nos Estados Unidos, por exemplo, as questões que se colocam são diferentes. Aí pode colocar-se a ênfase na necessidade de as mulheres estarem mais em lugares de decisão na Igreja, na possibilidade do acesso das mulheres ao ministério ordenado.”
Relações sexuais e papéis de género no seio da Igreja Católica têm sido assunto de debate e controvérsia na instituição. A influência cultural da Igreja Católica tem sido larga, particularmente na sociedade ocidental.
De acordo com a teologia cristã, tanto homens como mulheres são criados à imagem de Deus, o que implica que nenhum é inferior ao outro e têm igual dignidade.
No que toca à vida religiosa, as mulheres têm um papel importante na educação católica, orientação espiritual, ensino da teologia, ação social e administração de paróquias – mesmo se estas realidades são mais recentes, nascidas sobretudo nas últimas quatro ou cinco décadas, depois da realização do Concílio Vaticano II (1962-65). Em 1994, a Congregação do Vaticano para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos declarou que as mulheres podiam servir, na missa, como acólitas e ajudantes de altar. Além disso, podem viver uma vida consagrada como freiras.
Segundo a edição de 2017 do Anuário Pontifício, o livro onde o Vaticano colige as estatísticas da Igreja em todo o mundo, as mulheres constituem mais de metade (56 por cento) das pessoas consagradas dentro da Igreja.
Porque não podem as mulheres ser ordenadas
Em várias intervenções e no documento final do mais recente Sínodo dos Bispos dedicado ao tema dos jovens (Outubro de 2018), ficaram apelos para uma maior participação das mulheres na vida interna da Igreja, mas poucas sugestões concretas foram dadas acerca de como esta presença poderia ser reforçada. Sete freiras fizeram parte da equipa que redigiu o documento final do sínodo, cujos participantes com direito a voto, eram apenas os homens: 260 bispos e outros clérigos.
Uma das maiores diferenças de género na Igreja Católica continua a ser a de as mulheres não poderem ocupar cargos na hierarquia. No artigo Parcialidade de género na Igreja Católica Romana: Porque é que as mulheres não podem ser padres?, Cheryl Y. Haskins, doutorada em direito pela Universidade de Baltimore, dá conta das duas principais razões que a instituição apresenta para que a realidade seja esta.
A primeira baseia-se na Declaração da Questão da Admissão das Mulheres para Ministério, de 27 de janeiro de 1977, ainda sob o Papa Paulo VI, segundo a qual, “em fidelidade a Deus”, a Igreja “não se considera autorizada a admitir mulheres para a ordenação”, argumentando que essa opção pode mesmo ajudar a definir melhor os papéis de homens e mulheres.
A segunda razão baseia-se na ideia de que Jesus não chamou mulheres para integrarem o grupo dos Dozes Apóstolos. Cheryl Haskins dá conta de que esta posição não tem em conta que as atitudes de Jesus não se conformavam com as tradições da altura nem com a lei de Moisés em vigor: ele conversava e interagia com as mulheres publicamente e afirmava a igualdade de deveres e direitos de mulheres e homens em relação ao casamento.
Para Teresa Toldy, há dois problemas relativos à falta de acesso ao ministério ordenado por parte das mulheres: “É um problema bastante importante a nível dos direitos humanos: a Igreja Católica é a única instituição global que diz que as mulheres não podem ter acesso por serem mulheres. Isto significa que a Igreja Católica não tem problema em transmitir um discurso que não é aceitável em qualquer outra instituição à escala global – ainda que haja instituições que o pratiquem sem anunciarem.”
A professora universitária acrescenta outro problema relacionado com os argumentos utilizados pelos documentos do Vaticano para impedir o acesso das mulheres ao ministério ordenado: “Os documentos afirmam que Jesus Cristo era homem e, como tal, não pode ser representado por uma mulher”. Ora, isto põe em causa um aspeto doutrinal fulcral, diz: “Há uma teologia clássica, na Igreja Católica, que afirma que aquilo que não é assumido não é salvo. Jesus Cristo assumiu a condição humana e salvou a humanidade. A partir do momento em que dizemos que Jesus Cristo assumiu a condição de homem (no sentido biológico) então temos uma questão doutrinal muito complicada. Se a masculinidade é importante para o papel que Jesus Cristo desempenhou e se esta frase da teologia clássica é verdadeira, então, será que Jesus Cristo salvou as mulheres, ou não?”
Em 2002, o Papa João Paulo II publicou um decreto canónico relativo à excomunhão de sete mulheres católicas que teriam sido ordenadas no rio Danúbio por Rómulo Antonio Braschi, um bispo argentino criador de uma igreja independente em Buenos Aires (elas fizeram um pacto de silêncio, para não pôr em causa o bispo ordenante e foram ordenadas num barco para não colocar em questão a jurisdição do bispo – se fosse em terra, ele estaria sujeito ao bispo do respetivo lugar).
Estas mulheres, chamadas de “As Sete do Danúbio”, fundaram a organização Roman Catholic Womenpriests (Mulheres Católicas Ordenadas) e, desde então, têm continuado a ordenar mulheres. Com o argumento de que foram ordenadas por um bispo legítimo, e recusando-se a aceitar a ordem de excomunhão. Na sua página na internet, pode ler-se: “Nós mulheres, já não estamos a pedir permissão para sermos ordenadas. Em vez disso, reavemos o nosso direito dado por Deus de guiar católicos, assumindo o nosso ministério numa perspetiva inclusiva, de acolhimento.”
Por causa disto, ao decreto de 2002 seguiu-se outro de 2008, que excomungava imediatamente quaisquer mulheres ordenadas padres.
A hipótese das diaconisas e a voz de outras mulheres
Recentemente, o Papa Francisco voltou a falar do assunto, afirmando que esta é uma porta fechada e que se pretendia manter fiel às decisões do Papa João Paulo II. Mas, ao mesmo tempo, já afirmou várias vezes que é importante haver mais mulheres em lugares de responsabilidade na Igreja.
Apesar disto, a hipótese de mulheres se tornarem diaconisas (um grau anterior ao sacerdócio, em que há uma ordenação, mas em que as pessoas não podem celebrar missa) nunca foi excluída e tem tido alguns progressos. Muitos historiadores e teólogos católicos têm discutido o assunto e mesmo o Papa Francisco também já colocou esta hipótese, em maio de 2016, ao criar uma comissão que pretendia estudar a prévia existência de mulheres diaconisas na igreja. Esta pretendia responder à questão de saber se elas também deveriam poder preencher o cargo hoje em dia.
“Há progressos enormes, que têm de se reconhecer. Agora temos de ver se é preferível que haja mulheres nesta mesma estrutura hierárquica ou se são necessárias transformações para que, mesmo que haja mulheres na estrutura, o paradigma não permaneça o mesmo,” afirma Teresa Toldy.
Ao Le Monde des Religions, Anne Soupa, jornalista especializada em conteúdo bíblico e autora do livro Consoler les Catholiques confessou achar que a Igreja se encontra presa numa “corrente conservadora”. Comentando um artigo marcante da revista do Vaticano Donne Chiesa Mondo (publicação mensal dirigida por mulheres e que trata do lugar das mulheres na Igreja e na teologia) acerca de freiras que denunciaram ter sido abusadas sexualmente por padres, a jornalista afirmou: “A oportunidade (para falar do papel da mulher na Igreja Católica) não foi aproveitada e o caso (ficou) fechado. A editora-chefe da revista foi chamada à Secretaria de Estado do Vaticano e foi ameaçada com despedimento caso continuasse a investigar.”
A 13 de fevereiro de 2019, a ministra irlandesa da Cultura e Herança, Josepha Madigan afirmou que a instituição “é cega no que toca à inclusão dos marginalizados ou estigmatizados: enquanto que muitas áreas da vida se abriram às mulheres, o papel das mulheres na igreja tem sido relegado exclusivamente pelo clero masculino. Esta forma de clericalismo está a magoar-nos a todos.”
E não são só as mulheres que pedem maior participação na Igreja Católica. Muitas vezes, quem o pede são homens como Luke Hansen, jesuíta estadunidense, que explicou no Dia Internacional da Mulher de 2018, que trabalhar numa prisão feminina o tinha feito repensar a maneira como via o papel da mulher na Igreja: “Se ouvirmos as mulheres, e particularmente as mulheres que conheci na prisão, ouvimos tantas histórias de violência sexual… Traz luz sobre a realidade das mulheres tratadas de maneira diferente e oprimidas e que sofrem uma desigualdade que tem um grande impacto nas suas vidas.” Luke Hansen acrescenta que isto mudou a maneira de ver o papel das mulheres na sociedade, mas também na Igreja: “Temos que pensar nas mensagens que estamos a enviar quando sistematicamente excluímos as mulheres de certos papéis na Igreja.”
No encontro sobre proteção de menores na Igreja, realizado no final da semana passada, no Vaticano, e relativo à crise dos abusos sexuais, algumas religiosas participaram como ouvintes e intervenientes, mas expressaram o desejo de poder votar em futuros sínodos: “Esperamos que algum dia possamos ser membros iguais aos homens do clero, que têm direito a voto”, disse Carmen Sammut, presidente da União Internacional de Superioras Gerais, numa conferência de imprensa em Roma.
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