PREFÁCIO

Por José Milhazes

A guerra que vá definitivamente para o caralho!

Parto para a escrita deste prefácio com as duas últimas frases do texto do livro do doutor Gustavo Carona: «Há infinitas maneiras de ajudar o mundo, comecemos por contar uma história. E nunca deixemos de sonhar». Duas frases belas que, neste caso concreto, escondem por detrás de si missões de alto risco, cujo objectivo é salvar pessoas de conflitos que assolam vários continentes.

A meu ver, este médico humanitário do Porto tem tanto de aventureiro como de nobre e, como não podia deixar de ser, uma leve dose de loucura.

O autor apresenta todas as razões que o levaram a deixar a sua existência confortável na pacífica cidade do Porto para se dirigir, como voluntário da conhecida ONG Médicos Sem Fronteiras, a longínquas zonas de guerra, zonas onde existem apenas o ontem e parcialmente o hoje, que pode terminar dentro de segundos, minutos ou horas; onde se acredita com dificuldade no amanhã ou no futuro.

Todavia, acho que há mais uma razão a acrescentar: a entrega total aos outros, e aqui é mesmo totalíssima, pois estamos a falar de conflitos armados, muitas vezes sem frentes claras de combate e sem qualquer tipo de regras e leis da guerra, guerras civis onde o ódio e a violência fazem revelar os mais diabólicos sentimentos humanos, onde a crueldade não tem limites.

O nosso médico constata a determinada altura: «Pela intensidade e proximidade da guerra, a minha missão na Síria foi dos maiores desafios que já tive até hoje, porque trabalhávamos e dormíamos com bombas a cair ao nosso lado. Há pessoas que acham que isto é coragem, ou ausência de medo, mas não é. Isto é motivação. Coragem é o que sobra da motivação quando esta ultrapassa o medo, mas medo temos todos».

Este livro apresenta algumas facetas relevantes do trabalho dos médicos e enfermeiros humanitários. Por exemplo, é um autêntico manual para aqueles que irão seguir esta vocação, não só do ponto de vista médico, mas também pessoal e humano. Gustavo Carona leva-nos para as salas de operações e faz-nos sofrer por aquelas crianças e mulheres que estão em risco de vida, operações essas que nem sempre terminam como nos filmes de Hollywood. No livro, os voluntários não são imaginados, mas reais, têm nome e choram lágrimas verdadeiras perante a vitória da morte.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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É o exemplo desta jovem Maria «vamos chamar-lhe assim, tinha 22 anos quando a conheci e chegou à maternidade de Bangui em circunstâncias muito especiais. A razão pela qual a Maria foi enviada para a maternidade de Bangui foi para fazer um aborto, prática ilegal na República Centro-Africana. O assunto é sensível e, eticamente discutível, mas, dadas as circunstâncias, na minha humilde opinião, o caso da Maria não me leva sequer a pestanejar sobre a decisão. Durante meses, a Maria foi raptada por um dos mais famosos grupos armados, foi violada uma e outra vez, por um, por dois, por todos.

Uma e outra vez, vezes sem conta, até a despejarem algures, nas condições em que eu a conheci. A Maria estava altamente desnutrida, não teria menos de 1,65 m e pesava 19 quilos».

Gustavo e a equipa médica lutaram vários dias e noites para salvar Maria, muito perto das mãos da morte. E é nestes momentos que todo o mundo, com as suas desgraças, pode cair em cima de ti.

Mas este não é, afinal, o limite da dor que pode sentir um médico humanitário na sua carreira peregrina de mais de dez missões, pois pode ainda ser maior. Foi em Mossul, no Iraque, quando não conseguiu evitar a morte de uma criança: «O que mais me impressiona das dez guerras que já vivi por dentro é algo que nunca poderá ser captado por uma fotografia ou analisado por números de mortos, feridos, incapacitados, violações, órfãos, e por aí fora. Esta dor que se sente na pele que eu penso que poderia ser a minha é horrenda, mas não é o que mais me impressiona. Não são os corpos estilhaçados, desmembrados. Não é o cheiro a corpos queimados. Não são os que morrem à fome. Não são os que morrem por doenças que se tratam com poucos euros. Não são os filhos a chorar a morte dos pais, ou os pais a chorar a morte dos filhos. O que mais me impressiona são as crianças que não choram, que não têm expressão, que parecem vazias de emoções.»

Mas até no inferno das guerras há momentos de alegria e de esperança: o nascimento de trigémeos saudáveis numa maternidade da República Centro-Africana.

«Foi com um aperto no coração e uma lágrima no canto do olho que vimos sair do hospital mãe e pai de sorrisos consolidados e três bebés deliciosos, que deram um sentido especial às nossas vidas e aos nossos esforços do dia-a-dia. Mesmo no meio de tanta tristeza, se olharmos com atenção, a vida é bela», escreve Gustavo Canora.

E até nestas situações não podia faltar o futebol! Não tanto porque o nosso médico é um daqueles portistas ferrenhos, que leva sempre consigo o cachecol do seu tão querido FCP para todas as missões, mas pelo facto do desporto-rei, ou mais propriamente o nome de Cristiano Ronaldo, lhe ter salvado a vida em Mossul, no Iraque.

O médico portuense, que palmejou a Síria, Paquistão, República Centro-Africana, Burundi, Iémen, Iraque, etc. para ajudar vítimas da guerra vive segundo o lema «Não vale a pena viver, se não for por algo por que estejamos dispostos a morrer». Isto não é fanfarronice, mas apenas amor, humanidade e motivação.

E se me permite, caro doutor e amigo, é preciso gritar com mais força: «A guerra que vá para o caralho!», e desta vez definitivamente.

Oeiras, 11 de Agosto de 2023

NOTA INTRODUTÓRIA

Por Catarina Carona

Tenho a sorte de ter um irmão. Tenho a enorme sorte de ter um bom irmão. Mas, mais do que isso, tenho uma sorte rara por esse irmão ser um grande ser humano, que tem dedicado a sua vida a tornar o mundo num lugar mais humano, mais bonito.

Desde pequeno que nos contagia com a sua alegria e paixão por tudo o que faz. Em criança, tudo o que queria era viver aventuras e correr riscos, e mal sabíamos nós que, de facto, essa ia ser a sua forma de viver a paixão pela medicina, e pelo amor ao próximo. Acompanhá-lo ao longo dos anos tem sido uma enorme aprendizagem, pela pessoa que se tornou e pela mensagem que consegue passar. Começar a escrever sobre as suas missões humanitárias foi para ele uma forma de não esquecer o que viveu e viu, e de dar voz aos que não têm, alertando o mundo para outras realidades mais difíceis que a nossa aqui em Portugal e na Europa.

No início do seu percurso pela escrita, através do seu blogue, fomos seguindo as suas histórias e vivendo com ele momentos marcantes, alegres e tristes. Mais tarde, veio um primeiro livro e tantos outros textos e crónicas que demonstraram que, além das suas capacidades técnicas e humanas, voltadas para a medicina e ajuda humanitária, havia também uma alma poética que nos tem surpreendido continuamente. É para mim sempre um prazer ler as suas histórias, e não são raras as vezes em que me emociono ao ler as suas palavras, mesmo já sabendo o desenrolar dos acontecimentos.

São histórias muito humanas que não deixam ninguém indiferente e que nos transformam de alguma maneira. Ensinam-nos sobre os vários aspectos da vida em sítios bem distantes, mas, mais do que isso, ensinam-nos a olhar de outra forma, de uma forma mais pura, mais aberta, sem julgamentos, e essa para mim tem sido, talvez, a maior aprendizagem de todas quando leio o meu irmão.

Este é um livro que nos agita, que nos deixa desconfortáveis, mas que também nos enche de sonhos e vontade de mudar, e de olhar melhor o mundo à nossa volta. Espero que os leitores sintam o mesmo e que estas histórias não fiquem esquecidas.

Ler os textos do Gustavo é, acima de tudo, inspirador e transformador. Enche-nos a alma de energia boa.

INTRODUÇÃO

Começar a fazer missões humanitárias foi a melhor coisa que me aconteceu na vida, porque passei a viver de uma forma muito mais apaixonada. Viver inspirado é a maior riqueza que podemos almejar neste espaço de tempo estranho que acontece entre o nascer e o morrer. De 2009 a 2013, andei pelo leste do Congo, o noroeste do Paquistão, o sul do Afeganistão e o noroeste da Síria. Fui amadurecendo enquanto médico ao acabar a especialidade de Anestesiologia, e, ao colocar-lhe em cima a especialidade de Medicina Intensiva que escolhi, também, para ir tentando ser mais útil e completo como médico em missão. Há muitas pessoas diferentes e com motivações muito díspares que trabalham para este objectivo comum. Eu apenas posso contar a minha história e dizer que é uma mistura de muita coisa que faz com que o meu sonho não cesse de ser alimentado. A curiosidade e a ambição talvez expliquem grande parte. Foi a necessidade de ver, conhecer, compreender, sentir, e, às vezes, quase engolir o mundo, que me leva à ambição. Eu quero ser rico, eu quero sempre mais, eu tenho mais olhos do que barriga, mas o tesouro que eu procuro e tento acumular não se guarda no banco, mas, sim, no coração. Há pessoas que acreditam no destino, eu creio mais no acaso. Foi por coincidência que me foram acontecendo coisas na vida que me levaram, sempre, a tomar as decisões mais importantes com o coração. A decisão de ser médico, a de querer partir em missão e, a mais difícil de todas, a de continuar em missão. Consistência. No amor, na amizade, no trabalho, no desporto, no que quer que seja. Nada se faz sem consistência. O meu coração e as minhas emoções foram sem- pre dizendo, por acaso, que eu devia continuar a ir. Todos nós temos várias caras, várias facetas, várias versões de nós próprios. Para mim a minha melhor versão, aquela em que eu gosto mais de mim, quando me vejo ao espelho, é em missão, porque estou profundamente apaixonado pela vida, pelo meu sentido de vida e pela vontade de dar vida a quem a doença empurrar para perto da morte. Há muito egoísmo neste aparente altruísmo. Faz-me bem ir em missão. Estou feliz em missão. Eu morro de amor pelo meu trabalho em missão. É paixão.

Livro: "Olhem Para o Mundo com o Coração"

Autor: Gustavo Carona

Editora: Oficina do Livro

Data de Lançamento: 16 de outubro de 2023

Apresentação: Lisboa,  21 de outubro (sábado), às 18h00, no Auditório 3 da Nova Medical School

Preço: € 16,90

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Pela intensidade e proximidade da guerra, a minha missão na Síria foi dos maiores desafios que já tive até hoje, porque trabalhávamos e dormíamos com bombas a cair ao nosso lado. Há pessoas que acham que isto é coragem, ou ausência de medo, mas não é. Isto é motivação. Coragem é o que sobra da motivação quando esta ultrapassa o medo, mas medo temos todos.

No final da minha missão na Síria, a balança entre o medo e a motivação desequilibrou-se para o lado errado, por ironia da vida, lá está, quando já estava no meu querido Porto. Dois dias depois de eu ter deixado a Síria, foram raptados pelo Estado Islâmico, de dentro da casa onde eu vivi, cinco colegas e amigos. Três mulheres e dois homens. Sofri horrores a imaginar o que lhes estaria a acontecer, e em silêncio, porque foi tudo feito secretamente para que o seu resgate fosse realizado com sucesso e porque queria esconder esta informação da minha mãe, pois não sei se ela aguentaria o facto de um rapto desta brutalidade me ter passado de raspão. Três meses depois, as minhas colegas foram libertadas, enquanto os homens tiveram de esperar mais dois meses para recuperarem a sua liberdade, e só aí voltei a respirar. Mas, quando isso aconteceu, eu já não era o mesmo. Cometi a loucura de comprar a casa da minha querida avó endividando-me até ao pescoço, comecei um negócio ligado ao desporto com uns amigos e mudei de hospital no Porto por problemas de amor. Consciente ou inconscientemente estava a ancorar-me nas minhas raízes para nunca mais fazer sofrer as pessoas de quem mais gosto. Sabia que só uma âncora muita pesada e bem fundeada me faria não voltar a voar. A ideia de morrer e, pior ainda de sofrer, não me agrada nada, mas o que dominava a minha mudança de paradigma era o medo de estrangular as emoções das minhas pessoas que não pediram para ser expostas ao risco de rapto, agora tão real e palpável.

Mas, e há sempre um mas, também não consegui esquecer tudo o que fui aprendendo e maturando em cada missão: todas as vidas são iguais e têm o mesmo valor. E a minha vida não é, nem pode ser, mais importante do que a vida daqueles ao encontro dos quais eu vou. Quantos é que morrem por eu ter medo? Mais do que um. Então não é justo. A balança do medo e da motivação reequilibra-se e afunila o meu pensamento numa pergunta: «Vou desistir ou lutar com mais força?» Este livro é a resposta.

O MEU SONHO HUMANITÁRIO

Foi de um sonho perdido que nasceu um maior. Da minha dor, frustração e revolta, nasceu a vontade de ser médico para um dia poder ajudar outras pessoas a sonhar, já que o meu sonho estava perdido. Da vontade de ser médico brotou a vontade de salvar vidas. E, desta, nasceu a vontade de olhar para o mundo. Ao fazê-lo, irrompeu o desejo de dar voz a quem devia ter e não tem. Nasceu o desejo de trazer ao meu mundo o mundo real que a maioria finge não existir, mas existe.

Por isso escrevo. Escrevo pelas vozes que carrego dentro do meu coração que teimo em não esquecer. E por eles sonho. Sonho em pôr os corações e os olhos de quem me lê, de quem me ouve, onde tenho os meus.

Porque a única certeza que tenho é que não sou especial. Se eu for capaz de mostrar o que vi, explicar o que senti e partilhar o que vivi, todos vamos perceber que somos capazes de caminhar por um mundo melhor. Isto não é sobre mim, é sobre «nós».

Nós somos o problema e somos a solução.

Tudo o que temos de nada nos vale, se perdermos a humanidade. Acredito que nos devemos moldar pelas verdadeiras inspirações, que só se aprendem com os exemplos e só se memorizam com o coração.

Acredito que é ao olhar de frente as tristezas que seremos mais felizes.

Acredito que temos de viver em verdade.

Acredito que o conhecimento é a nossa arma mais poderosa. Acredito que o tamanho do nosso sorriso define o nosso valor.

Acredito que a humildade é uma inteligência maior.

Acredito que temos de lutar para que a bondade entre dentro da maldade.

Acredito que temos de alargar o nosso conceito de pertença e de família.

Acredito que a nossa casa é o mundo.

Acredito que cada um de nós tem um poder imenso, e que, se não for usado como parte da solução, será inevitavelmente parte do problema. O problema é que há demasiada gente sem tecto, um número infinito a morrer à fome, milhões a fugir de bombas e incontáveis a sofrer o inimaginável. Acredito que temos de viver por algo por que estaríamos dispostos a morrer. E nunca vou desistir! Pelo simples facto de que já prometi a mim mesmo e a demasiadas boas pessoas (sem que elas saibam) que as suas vidas e as suas mortes não valem menos do que as pessoas que eu mais amo nesta vida. Tudo o que interessa está no coração. Que nunca deixemos de sonhar!