Uma praça impressionantemente vazia, lavada pela chuva, um anoitecer em Roma e no mundo: “Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo de um silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos.”
O Papa Francisco fez, às 17h desta tarde de sexta-feira, 27 de março, uma “Oração pela Humanidade”, a propósito da pandemia de Covid-19 que atinge todo o globo. Sem nunca referir especificamente a doença, o Papa aludiu a vários problemas do mundo e à necessidade de reorientar prioridades e modos de pensar e agir.
Em plena Praça de São Pedro, Francisco esteve praticamente sozinho – apenas o responsável pelas celebrações litúrgicas do Vaticano o acompanhava. Num segundo momento, já no adro da basílica, havia mais alguns membros do clero. Um pequeno coro cantou e, ao fundo da praça, poucas dezenas de pessoas, debaixo da chuva, tal como no dia de eleição de Francisco, a 13 de março de 2013.
A oração começou com a leitura de um excerto do Evangelho de São Mateus, que narra o episódio em que Jesus e os apóstolos vão num barco. Por causa de uma tempestade, o barco corre o risco de se afundar e os discípulos ficam com medo.
“À semelhança dos discípulos do Evangelho, fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda”, afirmou o Papa na sua homilia. “Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento.”
Estamos todos no mesmo barco e não nos salvaremos se não nos unirmos, sublinhou Francisco. “Tal como os discípulos que, falando a uma só voz, dizem angustiados ‘vamos perecer’, assim também nós nos apercebemos de que não podemos continuar o caminho cada qual por conta própria, mas só o conseguiremos juntos.”
A tempestade que desmascara falsas seguranças
Ao longo da homilia, disponível na íntegra no portal do Vaticano na internet, o Papa ensaiou uma interpretação do texto bíblico, comparando-o com o tempo que o mundo está a viver: “A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade”, afirmou.
Com esta tempestade, também são postos a nu “todos os propósitos de ‘empacotar’ e esquecer o que alimentou a alma” dos povos, bem como as tentativas de anestesiar com hábitos aparentemente ‘salvadores’, incapazes de fazer apelo às nossas raízes e evocar a memória dos nossos idosos, privando-nos assim da imunidade necessária para enfrentar as adversidades.”
Perante a praça vazia e milhões que o escutavam através das televisões ou dos canais de vídeo do Vaticano, o Papa não se conteve no diagnóstico da crise e de um certo tipo de vida: “Avançamos a toda a velocidade, sentindo-nos em tudo fortes e capazes. Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não (…) despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. Agora nós, sentindo-nos em mar agitado, imploramos-Te: ‘Acorda, Senhor!’”
Na homilia de pouco menos de 17 minutos, acrescentou, com palavras duras: “Caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso ‘eu’ sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto” a pertença como irmãos, a que “não nos podemos subtrair”.
É chegado, por isso, “o tempo de reajustar a rota”, mas também de ver a forma como tantos são capazes “de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espectáculo”. São elas que, “hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, responsáveis, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”.
Muitos destes “companheiros de viagem exemplares, no medo, reagiram oferecendo a própria vida”, notou ainda. E acrescentou que este é o “tempo da prova como um tempo de decisão”, o tempo de “decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo que não o é”. É também o tempo da fé, vista não tanto como “acreditar” que Deus existe, mas sobretudo de confiar n'Ele.
Despertar a solidariedade, a esperança e a criatividade
“Perante o sofrimento, onde se mede o verdadeiro desenvolvimento dos nossos povos”, é preciso exercitar a paciência e infundir a esperança, não semeando pânico, mas corresponsabilidade, “readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração”, como fazem tantas pessoas nos quotidianos reinventados, acrescentou Francisco, insistindo ainda na oração e no “serviço silencioso” como armas vencedoras.
É fundamental, disse finalmente o Papa, “despertar e activar a solidariedade e a esperança, capazes de dar solidez, apoio e significado a estas horas em que tudo parece naufragar” no meio do “isolamento que nos faz padecer a limitação de afectos e encontros e experimentar a falta de tantas coisas”. É preciso ainda “permitir novas formas de hospitalidade, de fraternidade e de solidariedade”.
E dirigindo-se especialmente aos crentes, pediu: “Não apaguemos a mecha que ainda fumega, que nunca adoece, e deixemos que reacenda a esperança. (…) Abraçar o Senhor, para abraçar a esperança. Aqui está a força da fé, que liberta do medo e dá esperança (…), abandonando por um momento a nossa ânsia de omnipotência e possessão, para dar espaço à criatividade que só o Espírito é capaz de suscitar.”
No final, o Papa retirou-se do altar da praça para o adro da basílica, esteve largos momentos em oração diante da hóstia consagrada – para os católicos, símbolo da presença de Jesus – e dirigiu-se depois, com a custódia onde a hóstia estava colocada, a abençoar a cidade e o mundo. “Desta colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus. Senhor, abençoa o mundo, dá saúde aos corpos e conforto aos corações! Pedes-nos para não ter medo; a nossa fé, porém, é fraca e sentimo-nos temerosos. Mas Tu, Senhor, não nos deixes à mercê da tempestade. Continua a repetir-nos: ‘Não tenhais medo!’”
Enquanto o Papa se voltava dando a bênção nas várias direcções, os sinos da basílica libertaram os seus sons poderosos e ecoaram na praça. Vazia, lavada pela chuva, porventura também por uma esperança reencontrada.
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