Escritos originalmente em latim e grego, os apócrifos foram combatidos a partir do século IV e excluídos a partir do século XVI. Com isto, a Bíblia conta apenas com quatro evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e João.
Fora dela, circularam outros, atribuídos a nomes como Pedro, Tomé e Filipe, que davam a ver a figura de Jesus Cristo sob prismas diferenciados.
"Etimologicamente, a palavra 'apócrifo' significa oculto, escondido, secreto. Porém, no contexto da teologia, e da teologia bíblica em particular, usa-se a expressão 'evangelhos apócrifos' para distinguir dos evangelhos canónicos, ou seja, aqueles que foram considerados inspirados e que por isso mesmo fazem parte do Cânone Bíblico. Assim sendo, os evangelhos apócrifos partilham com os outros evangelhos o género literário (evangelho), bem como alguns temas, linguagens, figuras e personagens", explica ao SAPO24 o padre David Palatino, biblista e docente na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (UCP).
Ao longo dos anos, percebeu-se que "os apócrifos são muitos e apresentam uma grande pluralidade", pelo que é "difícil de contabilizar e apontar um número concreto".
Na sua maioria, estes textos, "compostos entre o final do século I e o século V d.C., tentaram preencher algumas lacunas que os evangelhos canónicos possuíam, nomeadamente no que diz respeito aos relatos da infância de Jesus ou em relação a Maria e José".
"Estes evangelhos mostram grande variedade de pensamento sobre a pessoa e obra salvífica de Jesus. O que se nota é que os evangelhos apócrifos valorizam mais os detalhes 'sobrenaturais' de Jesus, e não tanto a Sua humanidade", acrescenta o biblista.
Com isto, resta perceber o porquê de a Igreja ter afastado estes textos. Segundo o docente da UCP, "não foram incluídos no cânone porque não dizem nada de novo relativamente aos evangelhos canónicos. Mas a sua não inclusão prende-se sobretudo na questão relativa aos critérios de canonicidade: a autoridade (do autor), a antiguidade, a ortodoxia, a sua leitura na liturgia e na Igreja e a difusão na unidade católica. Os quatro evangelhos canónicos cumprem estes requisitos, os apócrifos não (pelo menos na totalidade)".
Por isso, apesar de não estarem incluídos na Bíblia, "os apócrifos não são inimigos dos evangelhos canónicos, mas também não são propriamente irmãos. Mantém um grau de parentesco relativo, talvez ao nível dos primos".
E há pormenores na tradição cristã que advêm destes textos, "como por exemplo as figuras de S. Joaquim e Santa Ana, pais de Nossa Senhora e avós de Jesus, ou a presença do burro e da vaca no momento do nascimento de Jesus. A virgindade perpétua de Maria é também um elemento de cariz dogmático reforçado nos evangelhos apócrifos", aponta o padre David Palatino.
Apesar disso, "a Igreja não lhes reconhece a autoria divina, não os considera divinamente inspirados, mas tem por eles grande apreço, não proibindo a sua leitura". Nesse sentido, existem "reservas naquilo que é apresentação da verdade salvífica comunicada na Bíblia" e não são vistos como tendo "grande valor teológico enquanto canal da revelação de Deus".
E são alguns destes apócrifos que surgem agora numa tradução de Frederico Lourenço. Para o biblista e docente da UCP, este é "um contributo útil para a divulgação e conhecimento destes livros que podem ter a sua utilidade no contexto dos estudos bíblicos e da teologia cristã".
Na nota introdutória da edição bilingue, publicada pela Quetzal, que chega agora às livrarias, Frederico Lourenço explica o objetivo da obra.
"A sua finalidade é dar a ler o material greco-latino em edição bilingue, com um comentário crítico-histórico tão imparcial quanto possível", nota o tradutor, que considera que "o material existente em grego e latim é suficientemente interessante para merecer uma leitura e análise, porque, sendo certo que nenhum evangelho apócrifo até agora encontrado (nem mesmo o de São Tomé) pode ser comparado, em termos de importância, com os quatro evangelhos do Novo Testamento, não deixa de ser verdade que a leitura destes textos marginalizados nos deixa vislumbrar o modo fascinante e diferenciado como várias gerações de cristãos entenderam e veneraram a figura de Jesus", pode ler-se.
"Para lá da minha admiração pessoal por Jesus, posso garantir que me esforcei por apresentar estes textos de maneira objetiva (para que cada pessoa forme a sua opinião), ao mesmo tempo que procurei respeitar a sensibilidade de leitores religiosos", escreve Frederico Lourenço.
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